A lebre de Buda

Por Osorio de Vasconcellos | 11/09/2009 | Crônicas

A lebre de Buda

 

Parece não haver solução de continuidade essencial entre os domínios do pensamento sonhado e do pensamento pensado, visto que ambos assentam sobre a mesma base psíquica.

 

A impressão de descontinuidade ocorre, porque o homem dorme e desperta sucessivamente.

 

Afinal, tirante algum estado intermediário de ordem contingente, o sono e a vigília são as únicas situações de que dispõe a mente humana, para exibir o seu poder de fogo na luta da existência.

 

Desperta, e esmagada por pressões de toda ordem, a mente humana ataca e defende sem trégua, com armas e artifícios de todo tipo, quando não se omite e se acobarda.

 

Dormindo, a mente é intimorata, não se omite nunca e, salvo em crises de apetite irracional,  prefere às armas convencionais os jogos de  salão, o acicate das máscaras, a elegância dos bailes a fantasia, e o melhor do simbolismo.

 

Um poeta chinês exprimiu com muita verve a intimidade essencial  dos dois mundos: “Noite passada, sonhei que era uma borboleta, e agora, não sei mais se sou um homem que sonhou ser uma borboleta, ou uma borboleta que, talvez, sonha agora ser um homem.”

 

E digo eu:  de repente trovador, não se sabe como, perdi o voo que me  levaria não se sabe aonde.

 

Sonolento, o trovador soube de um vôo alternativo, noturno, em aeronave clandestina, atrasado de ontem. Perdido o de hoje, seguiria no de ontem, compensando de forma subjetiva, mas necessária, o atraso, com tempo insuficiente, mas oportuno, para visitar os “velhos”  que, aliás, acabou visitando altas horas da madrugada, e que o receberam estremunhados, mas cordiais.

 

O encontro deu-se  ali mesmo nas cercanias do aeroporto, onde os “velhos”, depois de tanto tempo apartados e não sabidos, pernoitavam.

 

– Já vou. Adeus.

– Já? Dorme um pouco mais.

– Não, adeus.

– Que horas sai o avião?

– Não sei. Já deve ter saído. Adeus.

– Adeus.

 

Dava para ouvir o silvo débil das turbinas, mas a corrente atravessada não deixava chegar perto.

 

– Moça, é o avião de ontem?

– Não, é o de hoje.

– Ótimo. É nele que eu vou.

– Lamento, senhor. O senhor  perdeu o vôo outra vez.

– Outra vez? O mesmo vôo?

– Positivo, senhor, adeus.

– Espere um momento. Como é possível perder o mesmo vôo duas vezes?

 

Tarde demais. Era quase de manhã. A moça adormecera no balcão.

 

Bateu uma revolta. Desejou saltar sobre o balcão e sacudir a moça, mas sentiu respingos d’água sobre o rosto.

 

Então a mãe, que ainda vigiava da janela, indicou a estação de trens, enquanto o pai pilotava uma canoa rasa.

 

Uma praia, um rio que atravessar.  O trovador meteu a viola no saco e sentou-se na areia.

 

Nisso passou uma lebre em disparada. Parecia a  lebre da fábula de Buda, que corria, pensando ser o fim do mundo o barulho de uma fruta  que caíra ao chão.

 

O trovador sorriu, despojou-se,  e nadou na direção do Sol, que já clareava pro lado de lá.