A JURISPRUDÊNCIA DIANTE DA DIVERSIDADE RELIGIOSA E A LIBERDADE DE CREDO

Por ANA MARINA SOEIRO PEREIRA - FRANCYANE SOUZA FERNANDES DOS SANTOS | 27/01/2015 | Direito

A JURISPRUDÊNCIA DIANTE DA DIVERSIDADE RELIGIOSA E A LIBERDADE DE CREDO


INTRODUÇÃO

 Desde o princípio, mantém-se a ideia de que existe um poder, um ser ou algo superior diante dos homens, orientando-os e protegendo-os de alguma maneira. As crenças eram representadas pela adoração a objetos, pessoas ou deuses. Tais preceitos foram disseminados e a evolução das civilizações contribuiu para que o aspecto religioso adentrasse e se constituísse dentro das mais diferentes culturas existentes na Terra. A partir daí, as religiões se formaram e passaram a fazer parte do cotidiano.

Teoricamente, cada um é responsável por suas decisões e possui a liberdade de pensar, opinar e agir conforme julgar melhor para si. Tal domínio se dá ainda nas escolhas relacionadas à qual religião seguir. Esses direitos são protegidos pela Constituição Federal e também pelo Código Civil, que reforçam a máxima de que o princípio da dignidade humana está, dentre outros aspectos, na aceitação, respeito e tolerância às preferências e opções de credo individuais. 

Infelizmente, não é o que se vê. Apesar dos persistentes diálogos sobre o assunto, uma parcela populacional não está preparada para conviver pacificamente com as diferenças religiosas. Partindo deste pressuposto, observou-se a necessidade de uma análise específica que envolvesse a discussão do tema e sua associação à jurisprudência brasileira. Ausentando-se a consciência social sobre a importância da liberdade e o respeito ao culto, cabe à legislação assegurar, de fato, tais valores para que todos possam exercer a sua fé.

 1 ASPECTOS HISTÓRICOS DAS RELIGIÕES

 Desde os primórdios das civilizações, o homem, intuitivamente, traz consigo a ideia de algo superior a ele. Foram registradas várias histórias sobre o surgimento das religiões. A primeira explicação é a de que o homem começou a ver as coisas a seu redor como animadas, idolatrando-as e tendo-as como divinas. A partir daí, o desenvolvimento religioso caminhou paralelamente à evolução da humanidade, primeiramente rumo ao politeísmo, a crença em diversos deuses (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000).

Hume (2005) completa afirmando que o politeísmo foi a primeira e mais antiga religião do mundo. Para ele, “é uma incontestável questão de fato que, há cerca de mil e setecentos anos atrás, todos os seres humanos eram politeístas. Quanto mais se recua no passado, mais se encontra a humanidade imersa no politeísmo” (HUME, 2005, p. 03). Os registros mais antigos ainda apresentam que somente após a existência deste sistema, dá-se lugar ao monoteísmo, a adoração num só deus.

Outros pesquisadores veem o surgimento da religião como consequência de fatores psicossociais. Este seria o modelo reducionista, que coloca a religião como um elemento produto das condições sociais do homem ou da vida espiritual que mantém. Nos estudos modernos sobre religiosidade, defende-se a ideia de que a religião seria um fator independente e com estrutura própria, que poderia ou não estar relacionado a outras questões, como a social e a psicológica (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000).

Manoel (2001) explica que o termo “religião” vem do latim “religare” e significa a crença em forças sobrenaturais. É o conjunto de doutrinas e práticas institucionalizadas, cujo principal objeto e maior objetivo é orientar o indivíduo moralmente, realizando a ponte de ligação entre o sagrado e o profano, a reaproximação entre a criatura e o criador, o homem e Deus, através dos ensinamentos religiosos. A religião, então, deve transformar o homem, melhorando sua qualidade de vida espiritual.

A Bíblia é um conjunto de livros considerados sagrados, e está dividida em Velho e Novo Testamento. O primeiro narra o período anterior à épocaem que Jesusviveu. O Novo Testamento fala de sua vida, suas mensagens e do início do movimento cristão, o cristianismo. Os primeiros cristãos foram os judeus. Estes acreditavam que Jesus era o Messias, o salvador esperado para salvar a todos. Neste período, as atividades cristãs cresceram e muitas comunidades foram fundadas, inclusive a Igreja Católica (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000).

A história da Igreja atingiu um momento decisivo em 313, quando o imperador romano Constantino, o Grande, deu aos cristãos a liberdade para a prática de sua religião e o Estado devolveu aos seguidores de Jesus muitos bens materiais – dogmas – que deles haviam sido confiscados em períodos de perseguição. Os dogmas são pontos fundamentais e indiscutíveis de uma doutrina religiosa. No catolicismo, estes foram responsáveis pelo aparecimento dos costumes sacramentais (GAEFKE, 2010).

Depois que a Igreja estabeleceu os dogmas, pouco a pouco ela foi se distanciando do povo, deixando de atender suas necessidades espirituais de conforto e assistência, para dar lugar a disputas do poder temporal. Frente a isso, surgiram líderes dentro da própria Igreja que começaram a lutar contra a política desenvolvida pelo clero (GAEFKE, 2010). Foi o primeiro passo para um importante movimento de reestruturação da Igreja, que culminou na Reforma Protestante, considerada a primeira revolução social do mundo moderno (COMPARATO, 2006).

Martim Lutero (1483-1546) foi um teólogo alemão e líder da Reforma, que culminou no surgimento do protestantismo. Lutero contribuiu consideravelmente para a transformação da Europa e de todo o ocidente, não somente no campo religioso, mas também nas áreas da política, economia e na questão social. Tal fato se devia à forte influência que o teólogo desempenhava nas alterações dos ideais, das práticas de vida e na atuação de instituições sociais que com ele tinham contato (COMPARATO, 2006).

No mundo ocidental, tendo como exemplo o Brasil, o predomínio religioso se encontra nas igrejas cristãs, a Católica Romana, a Metodista, Presbiteriana, Batista, dentre outras, e naquelas derivadas do protestantismo histórico, culturalmente denominadas igrejas evangélicas. Destas, algumas têm caráter pentecostal, como a Congregação Cristã no Brasil, e assim outras mais. Essas igrejas se constituíram historicamente como o canal de manifestação da religião e religiosidade no país (MANOEL, 2001).

 2 Diversidade religiosa e liberdade de escolha

O Brasil é possuidor de uma rica diversidade religiosa que se deu em função, também, da miscigenação cultural advinda das inúmeras imigrações que o país vivenciou ao longo da sua história. Atualmente, o conceito de liberdade religiosa está associado ao direito inalienável de manifestar suas convicções ou práticas religiosas independente da crença seguida. Isso se confirma com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que reconhece o direito à liberdade religiosa, incluindo a manifestação de suas crenças (MARTEL, 2007).

Entretanto, a liberdade religiosa nem sempre foi respeitada. Como visto, durante a Idade Média, houve o domínio pleno da Igreja Católica impedindo que as pessoas tivessem a liberdade de escolher a sua própria religião. Assim, foram considerados hereges todos aqueles que contrariavam os dogmas oficiais da Igreja, sob a pena de sofrerem as mais diversas perseguições. No período colonial também não foi diferente, haja vista que com a chegada dos colonizadores ao Brasil, veio com eles também a religião católica (FERNANDES, 2011).

O catolicismo passou a ser a religião oficial do Estado e tal fato permaneceu até meados de 1891, quando a Constituição passou a estabelecer uma ampla liberdade religiosa, separando as atribuições entre Estado e Igreja. A multiplicidade dos povos indígenas e o processo de colonização e imigração acentuaram a diversidade religiosa do país e, antes disso, a liberdade religiosa não era ainda exercida plenamente. Cabiam às outras religiões apenas o culto doméstico em respeito à religião católica apostólica romana (FERNANDES, 2011).

Neste sentido, o Código Civil brasileiro reitera as convicções sobre os direitos de personalidade de cada indivíduo, que não poderão ser transmitidos ou renunciados. Civilmente também, tais direitos são devidamente protegidos, havendo possibilidades de reclamação em caso de danos aos que tiverem sofrido ameaça ou lesão de qualquer natureza. O direito à liberdade de religião enquadra-se amplamente neste contexto, estampados nos artigos 11 e 12 do referido código (CURIA; CÉSPEDES; NICOLETTI, 2012).

Somadamente, o artigo 13 institui sobre o “ato de disposição sobre o próprio corpo”. Seria um resumo sobre a autonomia que se tem em tomar decisões particulares conforme seus interesses, vontades e preferências próprias, desde que não contrarie a vontade de outros. As liberdades que se têm, assim como a liberdade de credo, seriam uma consequência essencial deste artigo, que é a garantia que todo indivíduo possui em fazer valer o seu poder de decisão dentro da sociedade (LIMA, 2011).

 3 A Constituição e o princípio da dignidade humana

 O Brasil, como se sabe, é constituído por uma pluralidade de raças, culturas e religiões. Para que todas essas diferenças possam ser respeitadas, existe uma lei magna que regula, organiza e assegura os direitos e deveres dos cidadãos. Seria ela a Constituição, que prevê a liberdade plena de religião. Enfatizando o que  como foi dito anteriormente, a Igreja e o Estado estão oficialmente separados, sendo o Brasil um estado neutro e imparcial ao que se refere aos aspectos religiosos (Scherkerkewitz, 2011).

De acordo com Brasil (2011, p. 15), o artigo 5º, inciso VI, da Constituição Federal  diz que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias.” Percebe-se, então, que a liberdade religiosa é um dos direitos fundamentais da humanidade, e reconhecer este fato é fazer valer todos os dispositivos legais que contemplem a valorização do ser humano e da vida.

A boa convivência entre os credos e religiões é uma prova de que, a princípio, no Estado laico, o preconceito e a discriminação religiosa não imperam. Foi a partir da Constituição de 1824 que se admitiu integralmente a liberdade de crença; porém, parcialmente a liberdade de culto, sendo esta exclusivamente exercida nos templos pelos católicos. Em razão disto, as outras religiões só poderiam ser cultuadas se fossem praticadas em ambientes domésticos ou particulares (FERREIRA, 2002).

Na Constituição de 1891, houve um grande salto, uma vez que se estabeleceu uma ampla liberdade religiosa, acarretando a ruptura do Estado com a Igreja, proibindo qualquer subvenção às igrejas.  No tocante à Constituição de 1934, distinguiu-se liberdade de crença e a liberdade de culto, moderando as tendências do Estado laico. A Constituição de 1946 manteve os princípios da Constituição de 1934, acrescentando o livre exercício do culto a todas as pessoas, a liberdade de convicção religiosa, filosófica ou política (FERNANDES, 2011).

Conforme Ferreira (2002), a Constituição de 1967 continuou protegendo e garantindo a liberdade religiosa e a liberdade de consciência, assegurando aos crentes o exercício dos cultos religiosos, desde que não fossem de encontro com a ordem pública e os bons costumes. A Constituição de 1988 seguiu a mesma linha das suas antecessoras, instituindo uma divisão entre as religiões e o Estado, consolidando o conceito de Estado laico que se conhece atualmente. Assim, pode-se dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana chegou ao seu auge dentro do ordenamento jurídico, a partir da Constituição de 1988.

 Esta redação assegura os exercícios dos direitos sociais e individuais, a liberdade, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna e livre de preconceitos (BRASIL, 2011). O princípio da dignidade da pessoa humana nasce dessas características, ao proteger o ser humano e garantir sua dignidade. Neste sentido, Kant (2000) afirma que “O homem é um fim em si mesmo – [...] – dispondo de uma dignidade ontológica. O Direito e o Estado é que deverão estar organizados em beneficio dos indivíduos”.

 4 TOLERÂNCIA RELIGIOSA SOB O ASPECTO JURÍDICO

 Todo o estudo anteriormente abordado remete a uma questão básica, imprescindível no estudo das religiões, que é a da tolerância. A tolerância consiste no respeito por aqueles que possuem pontos de vista diferentes do seu. Atitudes tolerantes podem associar-se à prática fervorosa da fé, e até mesmo com a tentativa de conversão do outro. Entretanto, não combina com ações discriminatórias, como criticar a opinião de terceiros, as perseguições, o uso de ameaças ou agressões (GAARDER; HELLERN; NOTAKER, 2000).

Geralmente, a intolerância se dá pelo conhecimento insuficiente sobre um assunto, e os marcos da intolerância religiosa são históricos. Na Antiguidade, a perseguição dos primeiros cristãos por judeus e pagãos foi um exemplo. A Santa Inquisição também estabeleceu perseguições aos não-cristãos. O respeito pela vida religiosa dos outros, por suas opiniões e pontos de vista, corresponde a um direito fundamental e um pré-requisito para a existência pacífica entre os homens (GUALBERTO, 2011).

Neste sentido, a Constituição Federal e o Código Civil consagram como direito fundamental a liberdade de religião. O Estado deve se preocupar em proporcionar um clima de compreensão religiosa, garantindo a proteção e o livre exercício de todas as religiões (Scherkerkewitz, 2011). Ainda que o constituinte reconheça o caráter inegavelmente benéfico das religiões para a sociedade, deve haver uma divisão entre Estado e a Igreja, não podendo existir nenhuma religião oficial, o que caracteriza um regime de separação atenuada entre as duas esferas (SUIAMA, 2004).

Segundo Martel (2007, p. 13), “a liberdade religiosa é, sem razões para dúvida, dotado de jusfundamentalidade. Fazendo as vezes da liberdade de consciência e de manifestação do pensamento, a liberdade religiosa salvaguarda escolhas identitárias de indivíduos”. O autor ainda enfatiza que é a religião quem auxilia os indivíduos a interpretarem a si mesmos e a sua realidade. Ela contribui para a construção das maneiras de ser do mundo, gerando possibilidades de concepções morais, políticas e ideológicas.

CONCLUSÃO

Como visto, a religião é um aspecto que se faz presente na vida da humanidade desde os seus primórdios. A crença em uma força sobrenatural e onipotente é capaz de modificar o homem internamente e influenciar nas suas relações de convivência com o outro. Passados muitos acontecimentos e transformações históricas, os aspectos religiosos tomaram um ramo pluralista e hoje se pode perceber uma gama de distintas religiões.

Observa-se uma predominância de igrejas cristãs, cada uma com seus dogmas, concepções e rituais. Neste sentido, é fundamentalmente necessário que os indivíduos sejam plenamente livres para escolher o que seguir da maneira que lhes for cabível e apropriada. Civil e constitucionalmente, é garantido a todos o direito ao próprio corpo, que se estende à liberdade religiosa. Trata-se de um resguardo que vai ao encontro do princípio da dignidade da pessoa humana e do livre arbítrio.

Em contraste, vê-se até os dias atuais o desrespeito e intolerância para com o próximo, especialmente neste sentido. A tolerância deve ser o equilíbrio entre a liberdade religiosa e o respeito aos direitos humanos. Ser tolerante significa reconhecer, entender, aceitar e, mais do que isso, respeitar a pluralidade religiosa. Assim, não somente as ideias religiosas, mas também a tolerância, encontram proteção constitucional.

Neste estudo, foi possível compreender sobre as relações peculiares existentes entre a jurisprudência brasileira, a diversidade religiosa e a liberdade de credo, resguardada pelo direito que se tem ao próprio corpo. É necessário que este tempo de intolerância se altere e que haja harmonia diante das escolhas de cada um. É preciso ainda que o próprio Estado atue diante das discriminações, protegendo a livre escolha de credo.


REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: texto constitucional promulgado em 5 de outubro de 1988, com as alterações adotadas pelas Emendas Constitucionais nos 1/92 a 67/2010, pelo Decreto no 186/2008 e pelas Emendas Constitucionais de Revisão nos 1 a 6/94. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas, 2011.

COMPARATO, Fábio Konder. Ética: direito, moral e religião no mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

CURIA, Luiz Roberto; CÉSPEDES, Livia; NICOLETTI, Juliana. Vade Mecum: obra coletiva. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.

FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

FERREIRA, Pinto. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2002.

GAARDER, Jostein; HELLERN, Victor; NOTAKER, Henry. O livro das religiões. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

GAEFKE, Paulo Roberto. Curso de espiritualidade: a história das religiões. São Paulo: G. E. Bezerra de Menezes, 2010.

GUALBERTO, Márcio Alexandre. Mapa da intolerância religiosa: violação ao direito de culto no Brasil. São Paulo: Multiplike, 2011.

HUME, David. Obras sobre a religião natural. Lisboa: Gulbenkian, 2005.

KANT, Immanuel. Fundamentos da metafísica do costume. Lisboa: Edições 70, 2000.

LIMA, George Marmelstein. Existe um direito de dispor sobre o próprio corpo?, 2011. Disponível em: <www.direitosfundamentais.net>. Acesso em: 15 abr 2012.

MANOEL, Ivã. História, religião e religiosidade. RevistaBrasileira de História das Religiões 2001, v. 1, n. 1.

MARTEL, Letícia de Campos Velho. “Laico, mas nem tanto”: cinco tópicos sobre liberdade religiosa e laicidade estatal na jurisdição constitucional brasileira. Revista Jurídica 2007, v. 9, n. 86.

SCHERKERKEWITZ, Isso Chaitz. O direito de religião no Brasil. Revista PGE 2011, v. 5, n. 2.

SUIAMA, Sérgio Gardenghi. Limites ao exercício da liberdade religiosa nos meios de comunicação de massa. São Paulo: Procuradoria da República, 2004.


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