A JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL COMO MECANISMO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA A PARTIR DA ADPF N.º 54

Por Conceicao de Maria Miranda Pereira | 18/07/2017 | Direito

Conceição de Maria Miranda Pereira[1]

José Carlos Santos Rodrigues[2]

Lorena de Viveiros Rios[3]                                                                                           

RESUMO

A Jurisdição Constitucional como mecanismo de efetivação do Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana a partir da ADPF n.º 54.  É abordada, inicialmente, através do processo constitucional como garantidor dos princípios fundamentais no Estado Democrático de Direito. Destarte, a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) é um instrumento garantidor da justiça constitucional, de modo que a ADPF nº54 atua enquanto mecanismo de efetivação do Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana no caso da interrupção de fetos anencefálicos. Isto posto, entendemos ser imprescindível a interpretação conforme a Constituição do Código Penal Brasileiro, uma vez que é notória a lesão ao preceito fundamental da dignidade da pessoa humana pelo Código Penal.

Palavras Chaves: Jurisdição Constitucional. ADPF. Justiça Constitucional.

1 INTRODUÇÃO

A conjuntura atual do Direito Constitucional brasileiro corresponde a algumas transformações, resultado das novas pretensões sociais, como a conquista de efetividade pelas normas constitucionais, bem como o reconhecimento de normatividade dos princípios e o desenvolvimento de novas ideias, no que diz respeito à interpretação constitucional (BARROSO, 2012). Consequentemente a isso, a Jurisdição Constitucional, enquanto exercício de interpretação e aplicação da Constituição por órgãos jurisdicionais, depara-se com a necessidade de adequar-se a esses novos anseios.

Dessa forma, os responsáveis pela interpretação e aplicação constitucional, no exercício de sua prestação jurisdicional, devem evitar sustentar-se em elementos puramente de razão e objetividade. Considerando o princípio estruturador da Constituição Federal de 1988: o Estado Democrático de Direito, faz-se indispensável assegurar, entre outros direitos fundamentais, o princípio da Dignidade da Pessoa Humana.

Porém, atualmente, o Poder Judiciário brasileiro perpassa por uma crise do Direito, diante de sua fragilização no atendimento aos interesses sociais, inclusive aos próprios Direitos Fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. Fato este, incoerente com o modelo de Estado Democrático de Direito adotado pelo Brasil, haja vista que o Estado apresenta o ônus de assegurar a existência dos mecanismos necessários para a implementação das normas constitucionais na sociedade, como por exemplo, os tribunais constitucionais e a suprema corte que também interpreta, e ainda vincula, estas normas

Com isso, surge o interesse em aprofundarmos os estudos nos casos de autorização da interrupção de fetos anencefálicos a partir da Ação de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental no Supremo Tribunal Federal (ADPF n.º 54), já que a discussão acerca da descriminalização do aborto está em voga e os casos são cada vez mais recorrentes.

Diante disso, nos propomos reconhecer a Jurisdição Constitucional como mecanismo de efetivação do Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana da ADPF n.º 54,  ao apontar o processo constitucional como meio de garantia dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, apresentando também a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) enquanto ferramenta de garantia à justiça constitucional, além de demonstrar a ADPF nº 54 como mecanismo de controle de constitucionalidade ao promover a efetivação do Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana no caso de autorização da interrupção de gestação de fetos anencefálicos.

 

2 O PROCESSO CONSTITUCIONAL E A GARANTIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO

 

O modelo de Estado Democrático de Direito, vigente no Brasil, tem como pilares a democracia e os direitos fundamentais, almejando assim a sonhada justiça na sociedade. De modo que, a proteção de tais direitos e seu efetivo exercício transformam-se no objetivo central deste Estado, sendo imprescindível o surgimento das garantias fundamentais (STRECK, 2002). 

As garantias constitucionais por sua vez tornaram-se importantes no processo, tendo em vista que uma parcela considerável destas garantias é de natureza processual, mesmo estando no texto constitucional. Fato este que implica na inseparabilidade do Estado Democrático de Direito e da justiça constitucional, uma vez que “[...] a justiça constitucional é condição de possibilidade do Estado Democrático de Direito, questão que vem à tona desde o momento em que se passa a entender as normas constitucionais são dotadas de eficácia [...] ”(STRECK, 2002, p. 99-100).

Considerando que, o Estado Democrático de Direito é alicerçado na democracia e nos direitos fundamentais. Inexiste a possibilidade de uma democracia sem a efetivação dos direitos fundamentais, do mesmo modo que não haveria de existir os direitos fundamentais sem a democracia. Nesta perspectiva, o modelo estatal supracitado fundamenta “a legitimidade de um órgão estatal que tem a função de resguardar os fundamentos (direitos sociais-fundamentais e democracia) desse modelo [...]” (STRECK. 2002, p. 106).

De modo que, o Estado Democrático de Direito possibilita o agir legítimo deste órgão estatal no sentido de inclusive realizar políticas públicas que remanescerem de inconstitucionalidade por omissão, por exemplo, tendo então a chamada justiça constitucional como um remédio contra as maiorias que agem em desconformidade com o texto constitucional (STRECK, 2002). Entretanto, a respeito da jurisdição constitucional, em meio a inequívoca necessidade de exercício, atingir ou não a plena efetividade dos direitos assegurados na Constituição por meio do processo constitucional disserta o jurista Vieira de Andrade apud Bolonha; Rangel; Zettel (2012, p. 159):

Assim, os preceitos relativos aos direitos, liberdades, e garantias são tipicamente e em regra, preceitos diretamente aplicáveis, que podem e devem ser objeto de uma concretização no nível constitucional e, portanto, é acessível à jurisprudência do Tribunal Constitucional. Diferentemente , a concretização jurídico-político é típica (embora só típica) dos preceitos relativos aos direitos sociais, remetendo a Constituição, em regra para opções políticas que, por sua natureza, são próprias do legislador: tratando-se de questões em que estão em causa uma sensibilidade e uma legitimidade políticas, a concretização dos preceitos há de pertencer em primeira linhaao legislador devendo o Tribunal Constitucional, por princípio, respeitar o poder da maioria, desde que esta não ultrapasse os limites constitucionais.

Neste mesmo sentido, considerando a supremacia da Constituição Federal Brasileira de 1988 no ordenamento jurídico nacional, a justiça constitucional é a instrumentalização dos valores presentes no texto constitucional e a fiscalização da conformidade ou não das leis às normas constitucionais, por meio da jurisdição constitucional. Tornando-se indispensável à intervenção do Judiciário como instrumento desta justiça constitucional no controle de constitucionalidade do ordenamento jurídico nacional (STRECK, 2002). 

3 A ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL (ADPF): INSTRUMENTO GARANTIDOR DA JUSTIÇA CONSTITUCIONAL

3.1 Noções Gerais da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)

O controle de constitucionalidade apresentado anteriormente assume no Brasil a forma mista ao admitir tanto o controle incidental (por qualquer poder) e como por via direta (proposto diretamente ao Supremo Tribunal Federal). O controle por via direta pode se dá por ação declaratória de constitucionalidade ou através da regulamentação da argüição de descumprimento de preceito fundamental (ADPF).

O processo e julgamento da ADPF são regulamentados através da Lei 9882/99, na qual define três hipóteses nas quais cabe esta modalidade de ação: “evitar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público, reparar lesão a preceito fundamental resultante de ato do poder público e relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, inclusive anteriores à Constituição” (BARROSO, 2010, p. 20-21).

Assim, a Constituição Federal prevê no § 1º do artigo 102 a competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para julgar a Argüição De Descumprimento De Preceito Fundamental no exercício da sua função de guarda ou protetor deste texto maior.  Entretanto, a Lei 9882/99 veda expressamente a alternativa de fazer uso da ADPF quando houver outro meio tão eficaz quanto no controle de constitucionalidade. Porém, a doutrina entende que a ADPF se evidencia como instrumento quando outra ação do sistema de controle abstrato-concentrado não puder ser tal instrumento (MENDES, 2000).

É importante mencionar que a decisão da ADPF terá efeitos contra todos e será vinculante, atingindo assim inclusive os demais órgãos do Poder Público. Dessarte, as decisões provenientes de uma ADPF são mais amplas que aquelas vindas de ADIn ou ADC, ao apresentaram vinculação apenas relativamente aos demais órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública direta ou indireta, sejam nas esferas federal, estadual ou municipal (MENDES, 2000).

A respeito do preceito fundamental é importante esclarecer que a expressão não é sinônima a princípios fundamentais, haja vista que os preceitos fundamentais conglomeram os princípios fundamentais e todas as demais disposições basilares presente na Constituição Federal. O preceito fundamental é similar a um “núcleo duro” no qual estão elencadas as normas constitucionais essenciais do regime constitucional (BARROSO, 2010).

A lei 9882/99 dispõe no artigo 2º, I que os legitimados na propositura da ADPF são exatamente os mesmos para a ação direta de inconstitucionalidade, ou seja, os elencados no artigo 103 da Constituição Federal:

I - o Presidente da República;

II - a Mesa do Senado Federal;

III - a Mesa da Câmara dos Deputados;

IV - a Mesa da Assembléia Legislativa ou da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

V - o Governador de Estado ou do Distrito Federal;

VI - o Procurador-Geral da Répública;

VII - o Conselho Federal da Ordem  dos Advogados do Brasil;

partido político com representação no Congresso Nacional.

          

Por fim, o ordenamento jurídico brasileiro, em meio as inovações, admite a figura do Amicus Curiae ou “ amigo da cúria” em sede de ADPF, tendo a função de ir além dos limites estritamente legais, tendo em vista que o mesmo não fiscaliza, somente aconselha, instrui, ajuda, elucida assuntos interessantes aos ministros na decisão conforme o caso concreto. Logo, a possibilidade de intervenção de interessados na ADPF é bastante importante, haja vista que permite a participação política de pessoas leigas quanto aos aspectos jurídicos, porém as mesmas representam sociedade sobre as quais serão discutidos assuntos socais, relacionados com os preceitos fundamentais constitucionais (ALMEIDA, 2006).

 

3.2  A ADPF enquanto instrumento garantidor da justiça constitucional

 

A ADPF é fundamental na garantia de efetivação dos princípios constitucionais, dos valores sociais presentes na CF/88 e de proteção às normas constitucionais, uma vez que as matérias não cabíveis por Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) ou por Ação Direta de Constitucionalidade (ADC) poderão ser analisadas conforme a Constituição Federal pelo STF. Assim a ADPF deve ser considerada como um instrumento para a realização da justiça constitucional, porém dever ser utilizado somente quando não couber qualquer outra ação do sistema de controle abstrato-concentrado (TAVARES, 2007).

 Isto sem mencionar que, a ADPF é imprescindível para a efetivação de princípios constitucionais basilares do Estado Democrático de Direito, como o princípio da Dignidade da Pessoa Humana. Haja vista que, no parágrafo único do art. 1º da Lei 98882/9 (regulamentadora das ADPF) tem como hipótese de cabimento da ADPF o controle de constitucionalidade por parte do STF à lei anterior a Constituição (MENDES, 2000).

            Nesta perspectiva, o ministro Gilmar Mendes em seu voto sobre o cabimento da ADPF 54, entendeu que “ a lesão a preceito fundamental não se configura apenas quando se verificar possível afronta a um princípio fundamental, [...] mas também a disposições que confiram densidade normativa ou significado especifico a esse princípio”. Logo, sempre que um direito fundamental da pessoa humana presente na Constituição Federal for violado será lesionado um preceito fundamental, sendo plenamente admissível a ADPF. O ministro Joaquim Barbosa em seu voto acerca do cabimento da ADPF 54 se manifesta:

A ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) há de ser utilizada pelo STF como instrumento especial por meio do qual esta Corte chamará a si a incumbência  de natureza toda especial: a de conferir  especial proteção a grupos minoritários, isto é, aqueles grupos sociais, políticos, econômicos que, por força de sua baixa representatividade ou da situação de quase impotência com que apresentam no processo político-institucional regular, não dispõem de meios para fazer valer de forma eficaz os seus direitos.

 

            Portanto, a ADPF garante a justiça constitucional quando efetiva os preceitos, ou seja, os valores essenciais nela elencados, acabando por ser um excelente instrumento de inclusão social quando propicia o pronunciamento da corte maior do país acerca dos direitos dos grupos excluídos.

 

4 A ADPF Nº54 ENQUANTO MECANISMO DE EFETIVAÇÃO DO DIREITTO FUNDAMENTAL À DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NO CASO DA INTERRUPÇÃO DE FETOS ANENCEFÁLICOS

 

4.1 A anencefalia

 

A anencefalia é um distúrbio decorrente do não fechamento do tubo neural, implicando na exposição do cérebro do feto, de modo que o diagnóstico pode ser realizado ainda nas primeiras semanas de gestação. O distúrbio implica na dissolução da massa encefálica em razão do líquido amniótico impedir o desenvolvimento das zonas cerebrais. Além disto, é válido mencionar que não existem tratamentos, cura ou qualquer sobrevida de feto anencefálicos. Na maioria dos casos estes fetos não resistem aos nove meses de gestação e quando isto ocorre vão a óbito após horas ou minutos do momento do parto (DINIZ, 2008).

É importante destacar que o Brasil é o quarto país no mundo em incidência da anencefalia. Durante a audiência pública da ADPF nº 54, o membro da Sociedade Brasileira de Genética Médica, doutor Salmo Raskin, apresentou o seguinte dado: 1 a cada 1000 nascimentos se observa a ocorrência da anencefalia, o que significa que a cada três horas nasce uma criança anencéfala no país (oito nascimentos por dia/ 3 milhões de nascimentos por ano) (BARROSO, 2010).

Outro dado importante é que o feto ter anencefalia é um dos casos mais recorrentes de requisição e autorização de alvará para abortamento por inviabilidade fetal no Brasil. Entre 55% e 65% do total de casos correspondente a essa patologia (BARROSO, 2010).

Ainda assim, o Brasil apresenta uma das legislações mais restritivas no aspecto do aborto de fetos anencefálicos, o que implica na sua ocupação no quarto lugar no ranking dos países do mundo que apresentam maior número de partos de fetos com anencefalia, em razão de sua rígida legislação que obrigam as mulheres a manterem a gestação de fetos inviáveis.

 

4.2  O aborto e os princípios fundamentais

 

Como sabemos, para que seja possível o cabimento da ADPF, faz-se necessário a lesão ou ameaça à lesão a princípio fundamental. Diante disso, destacamos a importância da identificação e análise dos princípios fundamentais que giram em torno do, ainda hoje criminalizado, aborto.

As discussões que permeiam, de um lado, a total criminalização do aborto e de outro a ampliação de situações permissivas legais, envolvem aquilo que se entende por vida.

De acordo com Barroso (2010), o que tem influenciado a opinião pública sobre esse tema da descriminalização do aborto, é a confusão entre as razões pró-vida e pró-aborto, o que faz com que frequentemente acredite-se que todo e qualquer aborto é moralmente errado.

Segundo Dworkin (apud Barroso, 2010, p. 66): “o grupo pró-vida parece crer que o feto é desde o instante da concepção um ser humano com plenitude moral, com direitos e interesses iguais aos de qualquer outro membro da comunidade moral”.

Sabe-se, no entanto, que o feto precisa da gestante e dos recursos da ciência para que possa desenvolver-se, a questão não está no fato de proteger sua vida enquanto ser, mas sim na de quem é a melhor maneira de proteger-se a vida humana em seu valor intrínseco (BARROSO, 2010).

A dignidade humana, como se percebe, é resultado da crença de que a vida humana tem um valor intrínseco. Uma vez retirada a dignidade, estou também cerceando a vida, e esta dignidade existe porque o ser humano tem capacidade de elaborar suas próprias leis e viver de acordo com elas (DINIZ, 2008).

Assim, para aqueles que defendem a ampliação de permissivos legais, desconsiderar a autonomia da mulher para decidir sobre seu corpo, é lesionar diretamente o princípio da dignidade da pessoa humana. Para Barroso (2010) aí está a justificativa que nos faz reconhecer que com a proibição do aborto, observa-se ameaça ou lesão de direitos fundamentais, tais como: a dignidade da pessoa humana, a liberdade a autonomia da vontade, vida e igualdade da mulher, entre outros constitucionalmente previstos, o quais serão abordados na versão completa.

 

4.3  O cabimento da ADPF 54

 

O cabimento corresponde ao ajuste da utilização da ADPF 54 COMO instrumento para requerimento de interpretação conforme a constituição dos artigos 124 e seguintes do Código Penal. Para tanto são necessários alguns requisitos, como: a legitimidade da parte para propor a ação, a suscitação de inconstitucionalidade do § único do artigo 1º da lei 9882/99, e a possibilidade de que, encaixado o tema neste parágrafo, a interpretação, pelo Supremo, seja feita conforme a Constituição.

Além disso, deve haver a análise da possibilidade de uso de outro meio hábil a solver a demanda. E por último, a observação se o tema envolve preceitos fundamentais da Constituição que será analisado posteriormente neste mesmo capitulo em maior profundidade, mas cabe ressaltar que “ diversos direitos das mulheres solidificados na constituição federal estão sendo violados, não só a criminalização do aborto neste caso, mas também tantos outros” (BARROSO, 2010, p. 63), sendo assim evidente o eminente risco de lesão a direitos fundamentais da mulher. 

Quanto a legitimidade não há dúvidas acerca da possibilidade de propositura da ADPF 54 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), haja vista que no artigo 103 da Constituição Federal, inciso IX elenca a “confederação sindical ou entidade de classe de âmbito nacional” como legitima nesta propositura. Além de por óbvio, os trabalhadores serem também grandes interessados na temática ao estarem sujeitos às penalidades previstas no artigo 126 do Código Penal.

O emprego do mecanismo da interpretação conforme ou declaração de constitucionalidade sob reserva de interpretação nem sempre implica na anulação das normas questionadas, na maioria das vezes apenas define a aplicação das normas de modo que não continue em contradição com os ditames constitucionais, enquadrando-se assim a Constituição Federal (BARROSO, 2010).

Assim sendo, o advogado Luiz Roberto Barroso solicita na petição inicial a declaração de inconstitucionalidades dos artigos 124, 126, 128 I e II do Código Penal através da interpretação conforme, objetivando autorizar a antecipação terapêutica de parto de fetos anencefálicos, não incorrendo mais neste crime os profissionais da saúde na conduta tipificada do aborto.

Diante do princípio da subsidiariedade, não há outro meio eficaz que possa sanar a lesão, ou seja, apto a resolver a questão de importância constitucional de forma ampla, geral e imediata. Visto que, a ação direta de inconstitucionalidade (ADIn) em regra substituiria a ADPF, porém o Supremo Tribunal Federal não autoriza a propositura de ADIn com objetivo de confrontar normas anteriores a Constituição Federal (BARROSO, 2010).

Além que, outros meios processuais como o Habeas Corpus por exemplo não seriam eficazes no caso em questão, o objeto da ADPF 54 em razão do grande lapso temporal que levaria o judiciário para resolver a questão, podendo até mesmo a ação perder o objeto e também em razão do ordenamento jurídico brasileiro admitir vários recursos nos diversos órgãos e instâncias poderia ocorrer a intromissão de indivíduos alheios, quando na verdade a temática interessa privativamente à mulher. Posicionando-se “ o ministro Barbosa afirma [...] que para ele a ADPF deve ser encarada como instrumento de alargamento da ação protetiva dos direitos fundamentais, que é missão primordial da jurisdição constitucional” (BARROSO, 2010, p. 57).

 

4.4 A Interpretação Conforme e a efetivação dos Direitos Fundamentais na ADPF 54

 

            A interpretação conforme ou declaração de constitucionalidade sob reserva de interpretação é uma possibilidade de pronunciamento do órgão responsável pelo controle abstrato de constitucionalidade a respeito de conflito entre normas de hierarquia diferentes.

Isto sem mencionar que, a interpretação conforme soluciona a problemática resultante da declaração de inconstitucionalidade decorrente da anulação de disposições legais que geram a lacuna no ordenamento jurídico. Haja vista que, através desta forma de pronunciamento o órgão nem sempre será obrigado a anular as normas impugnadas, considerando-se que através desta interpretação conforme pode haver a determinação para que a aplicação das disposições supracitadas de modo a não ferir a Constituição, enquadrando-se a mesma (BARROSO, 2010)

Desta forma, a ADPF 54 requer a interpretação conforme a Constituição dos artigos 124 e seguintes do Código Penal. Assim, apesar de se manter o texto faz-se necessária a interpretação de que a antecipação terapêutica de parto de feto com anencefalia não seja tipificada como aborto, sendo declarada inconstitucional a criminalização da pratica de aborto de fetos com anencefalia em respeito aos princípios fundamentais da Constituição Federal que podem ser efetivados através desta ADPF.

 

 

 

4.5 A Lesão Ao Preceito Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana pelo Código Penal

 

A ADPF nº 54 atua como mecanismo de controle de constitucionalidade ao promover a efetivação do Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana nos casos de autorização da interrupção de gestação de fetos anencefálicos, uma vez que há uma clara lesão à Constituição Federal pelos artigos criminalizadores do aborto presentes no Código Penal no caso sob análise da ADPF 54. Considerando-se que vários direitos das mulheres presentes na Constituição como o Direito Fundamental à Dignidade Humana estão sendo violados pelos dispositivos legais supracitados. (BARROSO, 2010).

A própria Constituição Federal, em seu art. 5º, classifica como inviolável o direito à vida. Por outro lado, o dispositivo não define quando tem início, ou termina, a vida. Faz-se necessário um esforço interpretativo para delimitar o conteúdo deste direito, já que não há um consenso quanto ao tema.  Dessa forma, quem preenche estes conceitos são outros atores sociais que não os juristas.

A anencefalia, por sua vez, é uma situação ainda mais complexa, visto que o Complexo Federal de Medicina tem uma resolução que determina ser o anencéfalo um natimorto cerebral, equiparando-o ao paciente com morte encefálica. Ainda que o anencéfalo possua tronco encefálico, que possibilita respirar autonomamente, as faltas das estruturas do encéfalo são suficientes para considera-lo como morto vegetativo.

Diante disto, é notória a lesão ao Preceito Fundamental da Dignidade da Pessoa Humana através dos artigos 124 e seguintes do Código Penal, uma vez que a criminalização do aborto regulamentada pelos mencionados artigos induz que a mulher tem o dever de manter em seu ventre um feto anencefálico, mesmo ciente que o mesmo não tem possibilidade de vida.

 Destarte, há um claro desrespeito a dignidade da pessoa humana na obrigatoriedade da manutenção desta gestação por longos e sofridos nove meses, já que a mãe sofreria por todos esses meses ao ter como evento certo a morte da criança após o nascimento.

 Nesta linha de raciocínio, o ministro Marco Aurélio, relator da ADPF 54, defende em seu voto que não previsão dos casos de anencefalia como quesito autorizador da interrupção de gestações no Código Penal haja vista que nas décadas de 30 e 40, período em que o código fora editado, não havia na medicina o conhecimento técnico para identificar anomalias desta natureza. Assim, faz-se necessário que o Direito acompanhe as mudanças e avanços científicos e sociais, para satisfazer as novas demandas que merecem regramento a fim de que direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana, pereçam.

Considerando-se que a dignidade humana é o corolário de todos os direitos os demais direitos humanos, já que mesmo violado qualquer outro direito humano o princípio da dignidade humana também será violado.

Nesse sentido, Barroso (2010) afirma que é exatamente por isso que esta situação foi a escolhida para ser levada ao judiciário, pois neste caso fica bastante claro que a defesa de uma suposta vida do feto não é mais que um argumento que envolve áreas do saber como a medicina, a antropologia e até a teologia, inclusive contrárias à ciência, não sendo possível de se perpetuar em um país laico.

Além disso, cabe ponderar se os riscos à vida e à saúde física e psíquica da mulher não merecem ser preservados, além é claro, da sua dignidade.

Portanto, impor a qualquer mulher o dever de manter uma gestação em seu ventre um feto anencefálico, ou seja, sem qualquer potencialidade de vida é uma violação ao princípio da dignidade da pessoa humana desta mulher que não poderia se quer decidir o destino de seu próprio corpo e seria obrigada a prolongar o sofrimento de manter uma gestação por período normal de um feto que a mesma teria certeza que nasceria morto ou morreria em pouco tempo após o nascimento (BARROSO, 2010). 

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

            Diante da problemática acerca do papel da Justiça Constitucional como instrumento de efetivação do princípio fundamental à Dignidade da Pessoa Humana no que tange a ADPF nº 54, notamos a importância do tema observada a conjuntura do Estado Democrático de Direito no qual nos inserimos. Dessa forma assinalamos o relevante papel dos Tribunais nesse contexto do atual Estado, pois o papel significativo reservado à jurisdição constitucional representa, certamente, um elemento decisivo para o enfrentamento dos dilemas atuais.

Assim, reconhecemos a Jurisdição Constitucional como mecanismo de efetivação do Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana da ADPF n.º 54,  apontando o processo constitucional como meio de garantia dos direitos fundamentais no Estado Democrático de Direito, apresentando também a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) enquanto ferramenta de garantia à justiça constitucional, além de demonstrar a ADPF nº 54 como mecanismo de controle de constitucionalidade ao promover a efetivação do Direito Fundamental à Dignidade da Pessoa Humana no caso de autorização da interrupção de gestação de fetos anencefálicos.

ALMEIDA, Eloísa Machado de. Sociedade civil e democracia: a participação da sociedade civil como amicus curiae no Supremo Tribunal Federal. Mestrado em Ciências Sociais, PUC/SP, 2006.

BARROSO, Luis Roberto. Constituição, democracia e supremacia judicial- Direito e Política no Brasil contemporâneo. Atualidades Jurídicas. Revista do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ano 1, n. 1, jul./dez. Belo Horizonte: Forúm, 2011.

BARROSO, Luiz Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da doutrina e analise criticada jurisprudência. 6ª ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2012.

BARROSO, Marcela Maria Gomes Giorgi.Aborto no poder judiciário: o caso da ADPF 54. Tese de Doutorado. Universidade de São Paulo,2010. Disponível em < http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/2/2140/tde-26082010-152613/publico/dissertacao_Marcela_Giorgi_Barroso.pdf>. Acesso em 10 mar 2015.

BOLONHA, Carlos; RANGEL, Henrique; ZETTEL, Bernado. Justiça constitucional e democracia de direitos. Rev. Direitos fundamentais e Justiça. Ano 6, nº 20, p. 156-172, Jul/Set. 2012. Porto Alegre: Editora HS.

DINIZ, Debora; VÉLEZ, Ana Cristina G. Aborto na suprema corte: o caso da anencefalia no Brasil. Rev Estud Fem, v. 16, n. 2, p. 647-52, 2008. Disponível em < http://www.scielo.br/pdf/ref/v16n2/19.pdf> Acesso em 17 abril 2015.

MENDES, Gilmar Ferreira, Inocêncio Mártires Coelho, Paulo Gustavo Gonet Branco. Hermenêutica constitucional e direitos fundamentais. Brasília: Brasília Jurídica, 2000.                                                                                                

STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica: uma nova crítica do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002.

TAVARES, André Ramos. Repensando a ADPF no complexo modelo brasileiro de controle da constitucionalidade., 2007. Disponível em < http://www.mackenzieonline.com.br/fileadmin/Graduacao/FDir/Artigos/andre_ramos2.pdf>. Acesso em 10 mar. 2015.

[1] autora

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[3] autora