A JUDICIALIZAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE: análise acerca da assistência farmacêutica

Por NATALIA BORGES VIEIRA | 15/05/2014 | Direito

A JUDICIALIZAÇÃO DO SERVIÇO PÚBLICO DE SAÚDE:  análise acerca da assistência farmacêutica

 

Maria Eugenia Gonçalves Mendes [1]

Natália Borges Vieira [2]

 

 

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Direito à saúde; 3 O papel do SUS e a assistência farmacêutica; 4 Judicialização; 4.1 Judicialização da saúde: fornecimento de medicamentos por ação judicial; 5 Críticas a judicialização excessiva; 6 Conclusão. Referências.

 

RESUMO:

Neste artigo aborda-se a judicialização do serviço público de saúde. Direito este que é constitucionalmente concedido aos brasileiros e que busca a sua efetivação através da assistência hospitalar e farmacêutica realizada pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Leva-se em consideração a análise sobre o direito à saúde sob parâmetro constitucional, o papel do SUS no fornecimento de remédios, além de abordar a judicialização e seus efeitos e críticas.

 

PALAVRAS-CHAVE:

Judicialização da saúde. Direito à saúde. Assistência farmacêutica.

 

1 INTRODUÇÃO

O fornecimento de remédios através de ação judicial é concebido como uma prática rotineira nos últimos anos. No Brasil, essas demandas são elevadas e vem aumentando consideravelmente. Após a inserção do direito à saúde na Constituição de 1988 houve uma exagerada interferência do Poder Judiciário em questões que não seriam, em primeiro lugar, competência sua, mas do executivo ou legislativo. A essa inserção do poder judiciário na busca pela efetivação de direitos individuais vem sendo vinculada a noção de judicialização.

No que diz respeito à saúde, a área que mais tem sido passível de ações judiciais é a de assistência farmacêutica, ou seja, a via que garante o acesso a medicamentos, que não encontram-se disponíveis na seara pública. Com a criação do Sistema Único de Saúde (SUS) houve a previsão de assegurar o direito do cidadão a assistência farmacêutica, porém, este direito são foi regulado com a Política Nacional de Medicamentos, e após 10 anos.

A igualdade de condições deveria impedir a existência de privilégios ou preconceitos de qualquer espécie nos serviços de saúde. No entanto, muitas ordens judiciais ferem este conceito por garantir a poucos indivíduos determinados serviços que não são oferecidos pelo SUS, beneficiando-os. Logo há constatação de que desde modo há um rompimento com os princípios básicos do SUS e especialmente com o da equidade.

 

2 DIREITO À SAÚDE

Foi somente na Constituição Federal de 1988 que o direito à saúde foi tratado com devida importância e foi elevado a condição de direito fundamental. A CF, em seu artigo 196, estabelece que “a saúde é um direito de todos e dever do Estado”.

De acordo com José Afonso da Silva, “a concepção de saúde adotada não é a simples curativa, aquela que visa a restabelecer um estado saudável após a enfermidade; mas a prestação social, no campo da saúde, volta-se especialmente para os aspectos da prevenção, e não da medicina curativa[3]”.

A saúde é um direito fundamental do homem, sendo dever do Estado (compreendendo a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios) prover as condições para o seu pleno e efetivo exercício. Como direito fundamental, pode ser exigível, inclusive pela ação judicial, pois merece plena eficácia.

O direito à saúde compreende a assistência farmacêutica, que trata da distribuição de medicamentos, assunto abordado no presente trabalho. A busca pela efetivação desse direito vem, cada vez mais, sendo exigida pelas vias judiciais. A ineficácia do Estado na prestação da assistência farmacêutica fez surgir um fenômeno denominado “judicialização da saúde”, que nada mais é que a provocação e a atuação do Poder Judiciário em busca da efetivação dessa assistência, como veremos mais a frente.

3 O PAPEL DO SUS E A ASSISTÊNCIA FARMACÊUTICA

O Sistema Único de Saúde (SUS) foi criado pela Constituição Federal de 1988 e em 1990 foi aprovada a Lei nº 8.080/90, a Lei Orgânica da saúde. Essa lei estabelece a forma de organização e o funcionamento do SUS, que é formado por um conjunto de ações e serviços públicos de saúde destinados para todos os brasileiros, prestados por órgãos e intuições públicas federais, estaduais e municipais. O SUS “constitui o meio pelo qual o Poder Público cumpre seu dever na relação jurídica de saúde, que tem no pólo ativo qualquer pessoa e a comunidade, já que o direito a promoção e a proteção da saúde é também um direito coletivo[4]”.

A Lei nº 8.080/90 não só estrutura o SUS e fixa suas atribuições, como também estabelece os princípios que orientam sua atuação, como os princípios da equidade e da universalidade. Esses princípios garantem a todos os cidadãos o acesso às ações e serviços de saúde de forma igualitária, impedindo a existência de privilégios e preconceitos nos serviços prestados de saúde[5].

Na criação do SUS, foi prevista assistência farmacêutica como direito de todo cidadão, que tem como função as atividades de seleção, programação, aquisição, armazenamento, distribuição e utilização de medicamentos. Para garantir a oferta de medicamentos com qualidade, investem em atividades de pesquisa e desenvolvimento, produção e registro de medicamento.  Ou seja, após passarem pela etapa de pesquisa e desenvolvimento, devem obter o registro sanitário no Brasil para que os medicamentos possam ser comercializados no mercado, e de acordo com a necessidade, poderão ser incorporados no sistema público.[6]

4  JUDICIALIZAÇÃO

É da cena contemporânea de cultura democrática a projeção do papel do juíz em quase todos os aspectos da vida social. “A “judicialização da política” ou “politização da justiça” seriam expressões correlatas, que indicariam os efeitos da expansão do Poder Judiciário no processo decisório das democracias contemporâneas”[7].  Mas, essa projeção não tem derivado como em certas avaliações apressadas, de pretensões de ativismo Judiciário. O fato de que, especialmente a partir dos anos 1970, os juízes – inclusive os do sistema da civil law, contrariando uma pesada tradição –, crescentemente ocupem lugares tradicionalmente reservados às instituições especializadas da política e às de auto-regulação societal, longe de significar ambições de poder por parte do Judiciário, apontam para processos mais complexos e permanentes.

É perceptível uma grande ambição em organizar as relações sociais, introduzindo relações de harmonia entre as classes, com suas fortes repercussões, sempre no sentido de trazer o Direito para o centro da vida social. Assim, põe-se o juiz na situação nova de um legislador implícito, com as naturais repercussões desse seu inédito papel na vida republicana, e, particularmente, nas relações entre os Três Poderes. Grande contribuição deu ao fenômeno da judicialização extrema foi a existência de instituições mal sucedidas, como por exemplo, família, igreja, etc. O que torna a sociedade de sobremaneira fragmentada e entregue às oscilações do mercado, onde a base das ideologias e da religião, mesmo o dos laços da família tradicional, perde força coesiva.

A invasão do Direito sobre o social avança na regulação dos setores mais vulneráveis, em um claro processo de substituição do Estado e dos recursos institucionais classicamente republicanos pelo Judiciário, visando dar cobertura a todas as searas da vida social. O juiz se torna protagonista direto da questão social. Sem política, sem partidos e vida social organizada, o cidadão se volta para ele, mobilizando o arsenal de recursos criado pelo legislador a fim de lhe proporcionar vias alternativas para a defesa e eventuais conquista de direitos. A nova arquitetura institucional adquire seu contorno mais forte com o exercício do controle da constitucionalidade das leis e do processo eleitoral por parte do Judiciário, submetendo o poder soberano às leis que ele mesmo outorgou.[8]

O Poder Judiciário, por mais que esteja pautado em boas intenções e com objetivo maior de proporcionar aplicabilidade a determinadas normas, não pode tentar suprir todas as deficiências sociais através de ordem judicial.

4.1 Judicialização da saúde pública: fornecimento de medicamentos por ação judicial

            Com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a interferência do Judiciário em questões de competências dos Poderes Executivos e Legislativos tornou-se frequente. Denomina-se judicialização essa nova atividade que o Judiciário vem exercendo no que diz respeito à garantia dos direitos fundamentais e individuais.[9]

“No campo específico da política de saúde, a judicialização tem se traduzido como a garantia de acesso a bens e serviços por intermédio do recurso a ações judiciais.[10]”  No que diz respeito à judicialização do serviço público de saúde, a assistência farmacêutica vem sendo alvo de inúmeras ações judiciais. É a assistência farmacêutica que garante o acesso de medicamentos que não estão disponíveis nos serviços públicos de saúde. O órgão responsável por essa assistência farmacêutica é o SUS.

O número excessivo de ações judiciais para a prestação do serviço público de saúde vem demonstrando suas falhas, como discorre o professor Luiz Roberto Barroso:

Por um lado, proliferam decisões extravagantes ou emocionais, que condenam a Administração ao custeio de tratamentos irrazoáveis – seja porque inacessíveis, seja porque destituídos de essencialidade -, bem como de medicamentos experimentais ou de eficácia duvidosa, associados a terapias alternativas. Por outro lado, não há um critério firme para a aferição de qual entidade estatal – União, Estados e Municípios – deve ser responsabilizados pela entrega de cada tipo de medicamento. Diante disso, os processos terminam por acarretar superposição de esforços e defesas, envolvendo diferentes entidades federativas e mobilizando grande quantidade de agentes públicos, aí incluídos procuradores e servidores administrativos. Desnecessário enfatizar que tudo isso representa gastos, imprevisibilidade e desfuncionalidade da prestação jurisdicional.[11]  

Essa judicialização excessiva da saúde vem gerando efeitos negativos, tanto para a organização do SUS, pois fere os princípios e as diretrizes desse órgão, como para a própria população brasileira, como veremos a seguir.

5 CRÍTICAS A JUDICIALIZAÇÃO EXCESSIVA

O direito a saúde, que compreende o fornecimento de medicamentos, é um direito fundamental de todo cidadão brasileiro, por isso deve ser exigido o seu cumprimento. Porém, a obtenção de medicamentos através de ações judiciais está se tornando cada vez mais frequente, e mostram como resultados alguns efeitos negativos.

Primeiramente, existe uma crítica financeira, que é denominada como “reserva do possível”, explicada a seguir pelas palavras do professor Barroso:

Os recursos públicos seriam insuficientes para atender às necessidades sociais, impondo ao Estado sempre a tomada de decisões difíceis. Investir recursos em determinado setor sempre implica deixar de investi-los em outros. De fato, o orçamento apresenta-se, em regra, aquém da demanda social por efetivação de direitos, sejam individuais, sejam sociais.[12]

Ou seja, alguns tratamentos médicos ou até mesmo medicamentos apresentam um custo altíssimo, liberando um tratamento para um indivíduo que entra com uma ação judicial, se privilegia um doente em detrimento de outro.

Outra crítica é que as ações judiciais para obtenção de medicamentos vão contra os princípios orientadores do SUS, como o princípio da equidade, o princípio da universalidade e o princípio da integralidade. A maioria das pessoas que vão pelo caminho da ação judicial apresentam melhores condições econômicas e tem acesso a informação. Ou seja, acaba-se dando preferência para indivíduos com melhores condições financeiras, em detrimento de outros que podem se encontrar em situações piores. Pois, para o SUS:

(...)todo cidadão é igual perante a lei e deve ser atendido de acordo com suas necessidades. Assim, os serviços de saúde precisam conhecer as necessidades dos diferentes grupos da população e trabalhar para satisfazê-las, oferecendo mais a quem mais precisa, contribuindo para a diminuição das desigualdades existentes. [13]

            Ou seja, os indivíduos atendidos através das ações judiciais são, na maioria, aqueles que se encontram em posições privilegiadas, aumentando ainda mais as desigualdades sociais.

Por fim, o Judiciário ao deferi as ações judiciais fornecem medicamentos, sem saber se o indivíduo utiliza exclusivamente o serviço de saúde pública e se ele depende realmente do fornecimento gratuito de medicamentos.[14] Pois, o Judiciário:

(...) não domina o conhecimento específico necessário para instituir políticas de saúde (...), não tem como avaliar se determinado medicamento é efetivamente necessário para se promover a saúde e a vida. Mesmo que instruído por laudos técnicos, seu ponto de vista nunca seria capaz de rivalizar com o da Administração Pública.[15]

6 CONCLUSÃO

 

De acordo com a análise dos processos referentes à judicialização percebe-se o quanto essas demandas judiciais têm efeitos sobre a formulação e execução da política de saúde. Com a inserção na Constituição de 1988, a saúde passou a ser direito fundamental social e o Estado tem o dever de assegurar o acesso universal e igualitário a todos que integram a rede atendimento integral SUS.

O direito a saúde, entretanto, não constitui apenas direito a assistência hospitalar, mas também pressupõe medicamentos. O problema é que a demanda tanto por assistência médico-hospitalar, quanto por medicamentos é maior que o sistema consegue suportar o que causa insatisfação geral que, consequentemente, deságuam no Poder judiciário. O judiciário intervém nesta questão como forma de obrigar o ente público a prestar atendimento como fora determinado em lei.

Esta situação acaba desencadeando um conflito entre os poderes, pois há restrição da autonomia deles em relação as decisões judiciais que obrigam o fornecimento de remédios ou a realizarem procedimentos médicos, o que traz impactos consideráveis a administração pública.  Por melhor que seja a intenção do judiciário, este não pode ser o responsável por todas as insatisfações da sociedade. Pois assim, fere o principio da tripartição dos poderes, trazendo desarmonia entre os mesmos.

REFERÊNCIAS

BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf> Acesso em 25 de maio de 2011.

CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e eqüidade. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 25, n. 8, ago. 2009. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0 102-311X2009000800020 &lng=pt&nrm=is o>.  Acesso em  25  maio de 2011.

KOERNER, Andrei; MACIEL, Débora Alves. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Revista Lua Nova. São Paulo. n. 57, 2002.

PEPE, Vera Lúcia Edais et al . A judicialização da saúde e os novos desafios da gestão da assistência farmacêutica. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 15,  n. 5, ago.  2010. Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-8 12320100005000 15&lng=pt&nrm=iso >  Acesso em  25  de maio de 2011. 

SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009.

VIANA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. Dezessete anos de judicialização da política. Cad. CEDES. Rio de Janeiro. v. 8, 2006. 



[1] Acadêmica do quinto período de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. E-mail: m.eugeniagm@hotmail.com

[2] Acadêmica do quinto período de Direito da Unidade de Ensino Superior Dom Bosco. E-mail: nataliabvieira@hotmail.com

[3] SILVA, José Afonso da. Comentário contextual à Constituição. 6ª ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2009. P. 767

[4] SILVA, Op. Cit., P. 770

[5] BARROSO, Luís Roberto. Da falta de efetividade à judicialização excessiva: Direito à saúde, fornecimento gratuito de medicamentos e parâmetros para a atuação judicial. Disponível em: <http://www.lrbarroso.com.br/pt/noticias/medicamentos.pdf> Acesso em 25 de maio de 2011.

[6] PEPE, Vera Lúcia Edais et al. A judicialização da saúde e os novos desafios da gestão da assistência farmacêutica. Ciênc. saúde coletiva,  Rio de Janeiro,  v. 15,  n. 5, ago.  2010 .   Disponível em <http://w ww.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232010000500015&lng=pt&nrm=iso>  Acesso em  25  de maio de 2011. 

[7] KOERNER, Andrei; MACIEL, Débora Alves. Sentidos da judicialização da política: duas análises. Revista Lua Nova.Sao Paulo. n.57, 2002.p.115

[8] VIANA, Luiz Werneck; BURGOS,Marcelo Baumann; SALLES, Paula Martins. Dezessete anos de judicialização da política.Cad. CEDES. Rio de Janeiro.v.8, 2006. p. 3-4. 

[9] CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Judicialização da política pública de assistência farmacêutica e eqüidade. Cad. Saúde Pública,  Rio de Janeiro,  v. 25,  n. 8, ago.  2009 .  Disponível em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-311X2009000800020&lng=pt&nrm=is o>.  Acesso em  25  maio de 2011.

[10] CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Op. Cit.

[11] BARROSO, Op.  Cit.

[12] BARROSO, Op. Cit.

[13] CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Op. Cit.

[14] CHIEFFI, Ana Luiza; BARATA, Rita Barradas. Op. Cit.

[15] BARROSO, Op.  Cit.