A IRONIA da Narrativa no Romance de José Saramago
Por Geraldo Gerraro Goulart | 12/08/2010 | LiteraturaO livro As intermitências da morte de José Saramago foi publicado em 2005. Esta obra é considerada uma romance, mas é claro que, em se tratando do escritor português José Saramago, o gênero é especificado por questões catalográficas. Na verdade, neste romance, o escritor passeia por outros gêneros de modo que poderíamos chamar a obra simplesmente de narrativa.
Um dos aspectos que torna essa obra inteiramente original é o fato de a personagem principal ser ninguém mais que a morte. Essa personagem revela traços de genialidade, humor e ironia, e é sobre esse humor e essa ironia da personagem morte, presente na narrativa, que pretendemos falar. Nossa expectativa é procurar encontrar de que modo a ironia da narrativa está a serviço do tema morte?
José Saramago nasceu em 1922 de uma família de camponeses do Ribatejo em Portugal, escritor mundialmente conhecido ele escreveu varias obras que figuram entre as mais relevantes do romance contemporâneo. O autor foi premio Nobel de literatura em 1988.
Como o próprio nome sugere, Intermitências, fala-nos de algo descompassado e descontinuo, interrupção provisória, intervalo (Houaiss, p.424). Na narrativa, o autor nos fala da interrupção provisória da personagem morte, personagem que é trabalhada por ele, nessa narrativa, de forma não menos que genial.
Falar sobre ironia de certo modo é falar sobre a vida. A vida, por vezes, é irônica. Basta que se imagine um homem que trabalha durante longos anos de sua vida tendo como finalidade viver uma velhice sossegada, mas ele, quando chega à velhice, percebe que não conseguiu cumprir o propósito que tanto almejou. Este indivíduo descobre então que necessita da boa vontade de outras pessoas para garantir o seu pão de cada dia e o pagamento de suas contas, de seus remédios. Isso, se não for internado em um asilo e abandonado por todos aqueles que até então o amava. Concluindo, para ele foi-se a saúde, a juventude, os filhos, os amigos e a esperança, sobrando apenas a doença, a velhice e a angustia da dependência e o sofrimento do abandono.
A morte por si também, às vezes, é uma ironia, pois pegam a muitos de surpresa, muitos que acham que ainda tem muito tempo de vida são surpreendidos por morte súbita em um acidente, um assalto, ou uma doença inesperada. Ainda, a ironia da morte se faz presente na vida daquele individuo que após anos de experiência percebe que é hora de sair do palco da vida sem ter ao menos a chance de transmitir seus conhecimentos à sua geração ou aproveitar daquilo que lutou tanto para conseguir. A vida é este ciclo irônico, onde os que morrem deixam o lugar desocupado para os que estão chegando.
Falar sobre ironia na literatura não parece tarefa fácil, diria até que é difícil tentar uma explicação sobre ela, parece que para compreender a ironia é necessário olhar em mais de uma direção, visto que no texto, por exemplo, a ironia pode, às vezes, estar implícita, camuflada, e dessa forma para ser percebida, dependerá muito de um olhar mais atento do leitor.
A ironia parece residir mais no diálogo que o individuo tem de si com a vida no que diz respeito às situações que norteiam seu dia a dia, sendo antes, marcas da emoção, da razão e do exercício filosófico que propriamente do literário.
Entretanto, é possível perceber em alguns textos a presença de situações irônicas e cômicas num jogo discursivo que reproduz as situações corriqueiras de alguma sociedade ou grupo social, como por exemplo, tirinhas de jornal e textos quadrinistas.
Pensa-se que a dificuldade em determinar a ironia não é pouca, isto talvez, devido às opiniões diversificadas sobre a determinação do que seja ou não ironia. Por isto mesmo não é raro situações de ironia estarem quase sempre coladas a situações de humor e sarcasmo. O que leva a entender a dificuldade em determinar no texto, quando se deseja, situações somente de ironia.
Imaginando este e outros fatos, explícitos e implícitos no romance, resolvemos falar sobre esta ironia presente na personagem morte trabalhada por José Saramago. Basta saber que a "morte", no romance, me parece tomar emprestada uma personalidade humana e passa a resolver não "matar" mais ninguém. A personagem morte "tira férias de suas atividades de matar" o que leva aquele país a uma serie de conseqüências irônicas, sarcásticas e desesperadoras.
José Saramago nos presenteia com uma personagem em situações inusitadas, a começar pela decisão de parar de matar as pessoas para chamar a atenção sobre si. A personagem ainda dialoga com seres humanos, através de cartas que chegam misteriosamente às caixas de correspondências, e por fim, ela se transveste em ser humano, numa representação de mulher apaixonada, ao descobrir porque aquele homem, antes alvo da sua gadanha, agora alvo da sua paixão, não morreu quando ela havia ordenado.
Pensamos ainda que seja justificável falar sobre o romance pelo fato de que a morte tem nele, uma apresentação idêntica à que sua similar tem no mundo real, e, de certa forma, tentar fazer uma analogia entre essa personificação romancista e a representação real de uma personagem real que também é chamada por nós de Morte.
Cabe lembrar que a forma como José Saramago nos apresenta sua personagem é muito divertida e no nosso mundo real escapa-nos muitas vezes essa "diversão ou comicidade"
Por fim, pensamos também nas conseqüências desenroladas com o termino do ato de matar a que a personagem morte submete todos os indivíduos da narrativa, e que raramente são pensadas por nós leitores. Ademais, é possível uma analogia também nesses aspectos ocorridos no romance com os que poderiam ocorrer de igual proporção, em nossa realidade, caso a possibilidade da não morte dos indivíduos fosse uma realidade nossa e não daqueles personagens da narrativa.
Imagino que a relevância do tema "ironia" neste romance, é uma tentativa de provocar e ao mesmo tempo brincar com o pensamento do leitor. Chamando este leitor a ponderar sobre fatos que, apesar de fictícios, podem ser imaginados em nossa realidade, basta pensarmos no avanço da ciência em relação ao congelamento de tecidos e embriões humanos, células tronco e outros materiais genéticos para detectar doenças e descobrir formas de melhorar e "prolongar" a vida humana.
Isto induz a nossa imaginação a pensar numa possibilidade, ainda que remota que a ciência, talvez, esteja caminhando para a possibilidade da longevidade humana. Se a ciência não disser o contrario, podemos imaginar como seria trágico para a humanidade não morrer?
A morte é assunto diário em todos os meios de comunicação. Todos os dias há pessoas morrendo nas mais diversas formas, isso, de certa forma, é uma espécie de manutenção do equilíbrio populacional considerada entre a quantidade dos que nascem versus a quantidade dos que morrem.
Morrer é tão habitual quanto nascer, ainda que não suportemos a dor e a saudade, pela perda daqueles a quem amamos. Entretanto, a morte, quando diretamente não atinge a nós, costuma passar despercebida da maioria. Isso, porque se tornou um hábito entre os vivos. Pois considerando que "Viver é ser mortal" não imaginamos o que aconteceria se ninguém morresse.
Faz-se necessário pensar também nos tipos de ironia que possam existir, na tentativa de estabelecer de modo um pouco mais claro, para o leitor, a qual tipo de ironia estamos nos referindo. Este exercício de compreensão é uma forma de procurar facilitar também a leitura e a assimilação, por parte deste mesmo leitor, sobre qual das ironias o texto de José Saramago faz referência. Além do mais, alguns tipos de figuras de linguagem como a antítese, o sarcasmo e a paródia têm em seus elementos básicos a ironia.
Uma outra dificuldade considerável está na "existência de vários tipos de ironia como, por exemplo "ironias socráticas, românticas, cômicas, do destino, do acaso, do caráter, trágica, cômica, filosófica, verbal, situacional, dramática ingênua", e por ai seguem mais algumas que não necessitam serem nomeadas aqui. (Duarte. Leila Parreira, Artimanhas da ironia. p 8).
Ainda há de se levar em consideração o porquê de se entender alguns textos como sendo textos irônicos, e se esse reconhecimento é feito motivado pela escrita do autor ou suporte que ele usa e a ideologia veiculada por ele. Ao pensar assim, supõe-se que numa tirinha de jornal, por exemplo, o texto irônico se torna bem mais evidente devido a sua ideologia, suporte e muitas vezes a simplicidade da mensagem.
Como parece existir vários tipos de ironia, torna-se então plausível tentar especificar em qual tipo de ironia se adequará o romance "As intermitências da morte" do escritor espanhol José Saramago. Ao que tudo indica essa especificação não encerrará, obviamente, tudo aquilo que se pode dizer sobre ironia neste romance.
Procurar dizer qual o tipo de ironia é apenas e tão somente uma tentativa de situar o leitor em um curso que lhe mostre um mínimo de direção e tentar dar-lhe o sobrenome do termo ironia no romance de José Saramago.
Ao que parece a ironia do romance de José Saramago apresentada em "As intermitências da morte" é do tipo ironia literária ou ironia do humor porque traz ao leitor "a consciência da relatividade do homem e do mundo" (Duarte. Leila Parreira, artimanhas da ironia p. 9).
A literatura é ótimo meio para se expressar figuras de linguagem e estilística como bem afirma Leila Parreira Duarte.
"Nenhuma linguagem se presta mais à presença da ironia que a literária por suas características de arte feita com palavras encenadas, as quais pretendem representar como verdadeiro um sentido fictício" (Duarte, Leila Parreira Artimanhas da ironia p 8).
O autor conscientemente vai conquistando o leitor para o seu ponto de vista sobre a atuação da morte num determinado país ficcional. Ele vai fazendo isso de forma milimetricamente calculada até que esse leitor, sem perceber, começa a fazer as mesmas conjecturas que os personagens do romance, adentrando de alma e corpo no jogo do autor e vivenciando as mesmas indagações, questionamentos, perplexidades e angústias inerentes à trama apresentada aos olhos e ao espírito, trama essa, que lentamente vai se desenrolando ao longo da narrativa.
A ironia de humor também chamada ironia de segundo grau, faz uma mistura, ao mesmo tempo, do trágico e do cômico. Segundo Leila Parreira Duarte enquanto o campo da ironia retórica é o do engano e o da sedução, o da ironia literária é o da denúncia dos jogos de engano, da desmistificação da sedução e do bordado em torno do vazio. O autor, através da literatura, faz que a ironia tente sobrepor um vazio e eliminar as frustrações existenciais, distanciando-se do medo e da angústia de morrer.
A ironia de humor se faz indispensável devido à incapacidade humana diante de algumas situações impossíveis de serem controladas. A morte seria uma dessas situações que ainda foge ao controle humano. Daí, ironizar o acontecimento iminente é uma tentativa de aliviar e, ao mesmo tempo, mascarar a dor, o sofrimento, a impotência e a dureza que se abate sobre esse ser humano.
A ironia mostrada ao leitor no romance de José Saramago "As intermitências da morte" é também humorística. Isso, se imaginarmos um país (o da ficção no romance) onde começa a ser feito o tráfico de corpos à "beira da morte" para morrerem e serem enterrados lá. Também, personagens da cúpula religiosa ficam aflitos ao perceberem uma possível falência na estrutura religiosa da nação já que o que mantém esta estrutura é a ação da morte ou fato das pessoas morrerem.
Tão irônico quanto este quadro é o fato de os hospitais ficarem lotados e não terem mais espaço para doentes, já que os doentes entram, mas não saem por não se curarem e não poderem receber alta, ao mesmo tempo em que outros doentes vão aparecendo e enchendo os corredores.
Morrer, todos morrem. Os vegetais, as borboletas, os pássaros e o homem. Mas ainda conseguimos ser insensíveis a muitas mortes que ocorrem, em As Intermitências da Morte, queremos crer que o escritor, talvez, esteja tentando reativar essa sensibilidade "já apagada" da nossa pele, e talvez esteja tentando nos mostrar que morrer, ainda que seja fato corriqueiro entre seres vivos, não deve ser menosprezada por aqueles que testemunham ou não a partida dos que morrem. A força que a morte possui no sentido de destruição deve ser considerada por todos os homens, uma vez que todos os humanos sentirão esta força, já que estamos todos na mesma fila a espera do mesmo golpe súbito, inesperado, trágico, irremediável, o golpe final.
A realidade da morte é uma tentativa de nos lembrar que é urgente viver e viver da melhor maneira que se pode. Trabalhar nessa narrativa o assunto morte, ainda que de forma simples, tem como objetivo procurar fazer com que o leitor imagine as sutilezas os detalhes e a complexidade gerada pela ação dessa personagem chamada morte tão menosprezada e achincalhada pelo gênero humano.
Talvez seja realmente possível reavaliar a necessidade do espanto, do susto e da perplexidade por sermos tão indefesos diante de duas forças tão poderosas como A vida e A morte. Assim, não esqueceremos de nos emocionar todas as vezes que alguém nascer e todas as vezes que alguém morrer, não nos esqueceremos de importar com a morte daqueles que amamos, e tão pouco esqueceremos de nos importar com a perda daqueles que desconhecemos e que compartilham conosco do mesmo estigma. Então, talvez, a vida será mais bonita, será vivida com mais intensidade, satisfação, amor e altruísmo.
Geraldo Goulart-2008.
gerrarogoulart@ig.com.br
Bibliografia.
1 ? Saramago, José, 1922 - As intermitências da morte. ? São Paulo: Companhia das letras, 2005
2 ? Boletim do Centro de Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da UFMG. ? v.1, n.1 (jun.1979). ? Belo Horizonte Faculdade de Letras da UFMG, 1979.
3 ? Peiruque, Elisabete Carvalho, 2007 Artigo "Saranago e as negações da morte" ? UFRGS: http://www.uefs.br/nep/labirintos/edicoes/01_2007/05_artigo_eleisabete_carvalho_peiruque.pdf
4 ? Soares, Maria de Lourdes, Artigo "amor e morte no romance de José Saramago" ? UFRJ : http://www.filologia.or.br/soletras/14/08.htm