A inutilização do ser

Por Francesco de la Cruz | 22/06/2011 | Filosofia

"Inútil, a gente somos inútil", essa é a canção que me vem à mente quando olho o mundo e percebo o sistema excludente e desumano quase que completamente intacto em suas estruturas, apesar do rastro de bilhões de pessoas sedentas ? literalmente, de água, mas também de justiça -, famintas e marginalizadas.

Automatizam-se os meios de produção e de prestação de serviços de modo a substituir pessoas que dependem do trabalho para sobreviver. Softwares ? a grosso modo, sistemas operacionais, aplicativos e programas de informática - e equipamentos modernos substituem funcionários administrativos, operacionais e de produção. Introduz-se o downsizing, o programa de qualidade total, o just-in-time integrado ao Kan Ban e outros sistemas ditos modernos e essenciais à sobrevivência das corporações (as empresas) dentro e fora de seus países de origem, mas por vezes destruidores de postos de trabalho. Amplia-se cada vez mais a mecanização da produção agrícola em grandes e médias propriedades de terra, dispensando, com isso, o trabalho dos que tiravam seu precário sustento labutando em terras alheias.

Nas mais diversas corporações (empresas) e instituições financeiras, nacionais e transnacionais, radicalizam-se os processos de terceirização e contratação por tempo determinado, sem vínculo empregatício. E como se não todo o sofrimento aos que dependem do trabalho para subsistir não bastasse, grassam as discriminações nos processos de recrutamento e seleção de candidatos(as) a emprego e, consequentemente, a exclusão dos discriminados pelos mais diversos motivos: idade, gênero, aparência, etnia, cor, classe social, pelo quantidade de tempo em que se está desempregado, pela quantidade de tempo em que ficou nos últimos empregos e muitos ... muitos outros.

Sofisticam-se sistemas financeiros de modo a enriquecer pouquíssimas pessoas a partir de expectativas de crescimento dos lucros e de aumento do capital das empresas das quais possuem ações, além do enriquecimento por meio de ataques especulativos a moedas tendentes à desvalorização, da especulação com comercial papers ou da venda de ações de empresas cuja contabilidade foi fraudada para demonstrar lucro e expectativas de lucro inexistentes. E todo esse enriquecimento de pouquíssimas pessoas se dá sem que haja investimento em atividades ligadas à produção de bens e de serviços no mundo real, como se fosse uma máquina de gerar dinheiro a partir do nada que se traduz na forma de expectativa.

Neste novo mundo em que detentores do capital minimizam cada vez mais seus custos, e aumentam exponencialmente seus lucros, existem apenas quatro entes: o empreendedor, o cliente, o funcionário altamente especializado e o capital humano dotado de qualidades ímpares para o sistema do capital. Somado a estes, impõe-se o ambiente político, econômico e institucional da elite econômica que controla o Estado: a coerção para que os contratos firmados sejam rigorosamente cumpridos, o Estado mínimo para as áreas de proteção à vida e à dignidade da pessoa humana, e Estado grande o suficiente para as ligadas à de segurança e de proteção à propriedade privada. O resto ... que resto? Existe algum resto?

Se não se incluem em qualquer dos quatro entes citados, simplesmente não existem. E se insistem em existir e se opor a esse sistema devem ser anulados ou aniquilados.Sob o sistema descrito, o ser humano em si, desvinculado do estar e/ou de ter potencialidade para estar cliente, empreendedor, funcionário altamente especializado ou capital humano dotado de qualidades ímpares para o sistema do capital (um artista, um jovem cientista promissor, um atleta ou jogador consagrado, só para citar alguns exemplos) é como um lixo orgânico putrefato e inútil (ou, se preferirem, lixo ambulante não-reciclável, conforme expressão criada por ... terá sido eu o primeiro a usar essa expressão em espaços de discussões cibernéticas?).

A maioria de nós pertence aos "a gente somos inútil", e isso se dá em razão da probabilidade significativa de passarmos da condição de prestadores de serviço, ou de empregados com remuneração suficiente para a própria subsistência e de poucos entes queridos, à de desempregados ou subempregados crônicos com remuneração insuficiente ou sem remuneração nenhuma - em ambas as condições, não são poucos os que cruzam a fronteira da vida minimamente digna em direção à sub-vida e à morte.

obs.: texto originalmente escrito em março de 2008