A INTERPRETAÇÃO DO INCONSCIENTE COMO UM JOGO DE PODER

Por Jacob Bettoni | 23/06/2009 | Direito

ARQUEOLOGIA DO INCONSCIENTE

A DUPLA CONSCIÊNCIA X INCONSCIÊNCIA: JOGO DE PODER POLÍTICO CONTRABANDEADO PELA PSICOLOGIA

Noergologista Jacob Bettoni

SUMÁRIO: os conceitos de produzir pensamento e conhecimento com autonomia e intencionalidade (ter consciência) ou não dispor dessa possibilidade (ter inconsciência), nasceram como conceitos políticos helênicos e posteriormente foram manipulados para serem contrabandeados e confundidos com inexistentes mecanismos psicológicos.

FILTRO PARADIGMÁTICO: Uma das primeiras lições que aprendemos com Thomaz Khun e Joel Barker é que paradigmas filtram nossa maneira de ver o mundo: só enxergamos as coisas que acreditamos existirem. É uma transição difícil para a maioria de nós evoluir da atual aceitação dos conceitos de consciência-inconsciência como sendo psicológicos, para desmascará-los como contrabando da Sociologia: precisamos do auxílio de alguns pensadores para conseguir.

PODER GERA SABER: O filósofo Michel Foucault ensina a ver em muitos conceitos psicológicos apenas jogos de poder, saberes-dependentes-de-par ou filocráticos: teorias criadas e propagadas por agentes do poder macro ou macrofísico objetivando exclusivamente consolidar o poder, entre os quais mais se destacam os saberes produzidos por interesses corporativos.

Os conceitos de consciência-inconsciência e seus derivativos são típico exemplo. Na civilização helênica todo o poder dos governantes emanava dos deuses olimpianos e no seu nome era exercido. Assim ter consciência era um monopólio desses deuses, um direito dos aristocratas e ser inconsciente era um dever dos cavernícolas, do povão. A percepção desse jogo de poder político estava escancaradamente clara até o evento conhecido como "escândalo filosófico", um de cujos episódios mais conhecidos é a morte de Sócrates por tentar democratizar o direito à consciência.

O POLÍTICO PLATÃO RECUA: Todavia, Platão mais que ninguém, conseguiu dar uma vestimenta filosófica, metafísica a estes conceitos políticos, detalhe que gerou dois presentes de grego para a cultura ocidental: a) a consolidação do maniqueísmo, da bipartição da realidade em dois níveis: o nível olimpiano privilegiado e o cavernícola estigmatizado; b) em conseqüência, as relações políticas entre os olimpianos conscientes e os cavernícolas inconscientes tornaram-se obscura ao camuflar-se de Filosofia, de Metafísica e posteriormente de Psicologia.

Foi graças a esse acordo de paz celebrado entre os governantes atenienses e o político Platão, que a dupla se consolidou e sobrevive até hoje como SABER- DEPENDENTE-DE-PAR: teorias e práxis existentes em função de uma relação de poder, de sorte que rompida a hierarquia do poder, o saber correlato automaticamente desaparece (hermenêutica do inconsciente alheio, psicocracia). Trata-se de press release convencendo cavernícolas que o domínio exercido por olimpianos é para o bem dos cavernícolas e não dos olimpianos, prática nascida da bifurcação da realidade inventada pela metafísica, quando a casta olimpiana privilegiada impunha submissão a parias cavernícolas, contrabandeando leis sociológicas de poder camufladas de leis psicológicas fraudulentas[1].

CONSCIÊNCIA, DIREITO OLIMPIANO; INCONSCIÊNCIA DEVER CAVERNÍCOLA: O conceito de ter consciência nasceu na cultura ocidental significando o privilégio de pensar autonomamente dispensando qualquer energia ou ente externo para produzir o próprio pensamento. Esse privilégio começou como monopólio dos deuses olimpianos, compartilhado na seqüência pelos homens nobres dotados de areté, os aristocratas. Os subordinados (o povão, os cavernícolas) tinham o dever de serem e agirem inconscientemente: isso significa que seus pensamentos, sentimentos e conhecimentos eram neles inoculados por alguma ente externo.

O CRIME DO CAVERNÍCOLA HESÍODO: O poeta, por exemplo, apenas psicografava passiva e inconscientemente os versos. Quem os criava ativa e conscientemente eram as musas olimpianas. Isso era mais do que filosofia; eram normas legais de procedimento. Hesíodo foi julgado porque infringiu esse dispositivo legal: escreveu uma poesia e assinou o próprio nome, o que era vedado para cavernícolas, sendo permitido apenas a aristocratas.

Um movimento filosófico-político iniciado por Hesíodo no Século VII-AC e expandido por filósofos gregos tentou gradualmente incluir uma parte maior da população entre os humanos que tinham o privilégio político de ter consciência. Entre os deuses a consciência estava democratizada: no Olimpo todos tinham o direito adquirido de ter consciência.

O CRIME DE SÓCRATES: CAVERNÍCOLAS TAMBÉM SÃO DOTADOS DE CONSCIÊNCIA: esse movimento democratizando o direito de ter consciência, fortaleceu-se na insurreição milesiana e atingiu o ápice com Sócrates, que com uma técnica conhecida como maiêutica pregava que qualquer pessoa podia conhecer a si própria, podia ter consciência, até mesmo escravos.

Isso abalava a estrutura dos poderes constituídos, os quais encetaram uma grande campanha contra os filósofos: o ensino da maiêutica foi proibido por lei; vários filósofos foram condenados à morte ou deportados; livros pregando a democratização da consciência foram confiscados e queimados. Os poderes constituídos queriam deixar claro que ter consciência era um privilégio dos aristocratas que governavam e ter inconsciência era um dever dos cavernícolas. Sócrates foi um dos mártires do movimento abolicionista da escravatura da mente das crendices do inconsciente.

Platão, apesar de amigo de Sócrates, ausentou-se de Atenas depois desses fatos conhecidos como escândalo filosófico, esperando a poeira baixar. Pertencente à tradicional estirpe aristocrática e com vocação política lançou estrategicamente a sua metafísica, um acordo de paz entre a filosofia e os poderes dominantes.

METAFÍSICA, O RECUO ENTREGUISTA DE PLATÃO: Isso constituiu um grande recuo: enquanto a maiêutica socrática pregava que a consciência e o conhecimento estão dentro de qualquer pessoa, a metafísica substituiu a maiêutica pelo método do geômetra: o conhecimento volta para o olimpo e a consciência retorna aos olimpianos e aristocratas, incluindo aqui os filósofos que deveriam governar o mundo. Tentou inclusive implantar em Siracusa a República Platônica, onde só a aristocracia dotada de consciência (filósofos) tinha acesso ao poder.

ficou restabelecido que ter consciência é privilégio aristocrata e ser inconsciente é dever do povão, conceitos filocráticos que pertencem ao campo da sociologia, criados por instâncias de poder como nos ensinará muito depois Foucault: são conceitos criados pelo poder a seu serviço.

Durante um milênio essa crença permaneceu intocada, até que Agostinho tenta democratizar o direito à consciência, defendendo que não só aristocratas, mas todos os humanos, até mesmo ateus, negros e mulheres, tem consciência, tese que lhe valeu antipatia generalizada.

TER CONSCIÊNCIA É DIREITO UNIVERSAL: O direito à consciência é uma luta política, nascida num contexto político, mantida num contexto político e seu vazamento para a área psicológica é um acidente de percurso tolerado por nossa cegueira perceptiva: o Artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem assegura: todos os homens são dotados de razão e consciência. No último quartel do Século XX surgem vários movimentos pleiteando a abolição de estigmas sustentados pelas teorias do inconsciente.

Do Século XV à metade do Século XX registramos o apogeu do inconsciente contrabandeado da Sociologia para a Psicologia, mas usado incessantemente a serviço sociológico do poder. A partir da metade do Século XX surge o apogeu da consciência. A guinada evoluiu do tudo é inconsciente (Carus) para tudo tem consciência (holotropismo).

Ambos monismos tiveram sua utilidade quando surgiram. O contexto que justificou seu nascimento não mais existe. Hoje são termos que desviam nossa atenção da essência dos fenômenos, constituindo fonte permanente de confusão, que ao invés de tudo explicar deixam tudo sem explicação. O éter também tudo explicava em Física; quando abolido deu lugar a pesquisas que desaguaram na descoberta de centenas de partículas subatômicas. Da mesma forma em Noergologia não se usa nem consciente, nem inconsciente – este por ser utopia, aquele por ser pleonasmo. Isso aguçará nossa mente obrigando-nos a enxergar os autênticos fenômenos e atividades mentais até agora escondidos por detrás desses dois monismos.

NOERGOLOGIA: Essa desintoxicação semântica e conceitual já vem sendo desenvolvida por muitos estudos. O que a Noergologia traz de novo é a abolição da paralisia paradigmática, a focalização do homem como um ser ativo e intencional, a mudança das nossas crenças básicas sobre o mecanismo da mente e a dessacralização da energia mental com o conceito noergia, cujo efeito já imediato é eliminar três empecilhos ao progresso da Psicologia: o invasismo, o reducionismo e a dicotomia.



[1] Veja no Glossário os verbetes Saberes, Poder e derivativos.