A INTERPRETAÇÃO DA LEI EM PROCESSOS JUDICIAIS QUE ENVOLVAM AGENTES POLÍTICOS

Por Fernanda Herbella | 30/11/2015 | Direito

A INTERPRETAÇÃO DA LEI EM PROCESSOS JUDICIAIS QUE ENVOLVAM AGENTES POLÍTICOS

 

                                                                                           Fernanda Herbella[1] e Roberto Maia Filho[2]

Sumário: 1) Introdução. 2) A lei e os diversos métodos de sua interpretação. 3) O contrato social. 4) Os agentes políticos. 5) Interpretação da lei em processos judiciais que envolvam agentes políticos. 6) Conclusão.

 

1. INTRODUÇÃO

Neste artigo, será analisada uma questão bastante atual.

Como se sabe, o Brasil está atravessando uma séria turbulência, de ordem ética, moral, política e econômica.

O Judiciário é protagonista, sem dúvida. Basta consultar o noticiário.

Poderá ele contribuir para o resgate do crédito das instituições, exercendo a sua função precípua de interpretar a lei?

É o que doravante se propõe analisar.

2. A LEI E OS DIVERSOS MÉTODOS DE SUA INTERPRETAÇÃO

 

Preleciona a renomada Maria Helena Diniz[3]:

Para orientara tarefa do intérprete e do aplicador há várias técnicas ou processos interpretativos: gramatical ou literal, lógico, sistemático, histórico e sociológico ou teleológico. Tais processos nada mais são do que meios técnicos, lógicos ou não, utilizados para desvendar as várias possibilidades de aplicação da norma.

 

Pela técnica gramatical, também chamada literal, semâmtica ou filológica, o hermeneuta busca o sentido literal do texto normativo, tendo por primeira tarefa estabelecer uma definição, ante a indetyerminação semântica ndos vocábulos normativos, que são, em regra, vagos ou ambíguos, quase nunca apresentando um sentido unívoco. Assim, ao interpretar uma norma, inicialmente se atém à consistência onomasiológica (onomasiologia é a teoria da designação nominal). Então, o primeiro passo na interpretação seria verificar o sentido dos vocábulos do texto, ou seja, sua correspondência com a realidade que eles designam. Logo a definição jurídica oscila entre o aspecto onomasiológico da palavra (o uso corrente do termo para a designação do fato) e o semasiológico (a sua significação normativa). Se a norma se refere, p. ex,, a veículo, a questão é saber o que é veículo, qual o sentidodo vocábulo no texto. A palavra utilizada na norma opera como um instrumento do pensamento.

            ‘

Por essa técnica, que se funda sobre as regras da gramática e da linguística, examina o aplicador ou o intérprete cada termo do texto normativo, isolada ou sistematicamente, atendendo à pontuação, colocação dos vocábulos, origem etimológica etc. O cientista procura os sentidos literais possíveis do termo, ou seja, os significados que possa ter, marcando o limite da interpretação, e o aplicador opta ou decide por um dos diferentes sentidos admissíveis

(...)

 

No emprego do processo lógico, o que se pretende é desvendar o sentido e o alcance da norma, estudando-a por meio de raciocínios lógicos, analisando os períodos da lei e combinando-os entre si, com o escopo de atingir perfeita compatibilidade.

(...)

 

O processo sistemático é o que considera o sistema em que se insere a norma, relacionando-a com outras normas concernentes ao mesmo objeto. O sistema jurídico não se compõe de um único sistema normativo, mas de vários, que constituem um conjunto harmônico e interdependente, embora cada qual esteja fixado em seu lugar próprio.

(...)

 

A técnica interpretativa histórica (...) baseia-se na averiguação dos antecedentes da norma. Refere-se ao histórico do processo legislativo, desde o projeto de lei, sua justificativa ou exposição de motivos, emendas, aprovação e promulgação, ou às circunstâncias fáticas que a precederam e que lhe deram origem, às causas ou necessidades que induziram o órgão a elaborá-la, ou seja, às condições culturais ou psicológicas sob as quais o preceito normativo surgiu (occasio legis).

(...)

 

O processo sociológico ou teleológico objetiva, como quer Ihering, adaptar a finalidade da norma às novas exigências sociais.

(...)

 

A técnica teleológica procura o fim, a ratio do preceito normativo, para a partir dele determinar o seu sentido, ou seja, o resultado que ela precisa alcançar com sua aplicação. O sentido normativo requer a captação dos fins para os quais se elaborou a norma, exigindo, para tanto, a concepção do direito como um sistema, o apelo às regras da técnica lógica válidas para séries definidas de casos, e a presença de certos princípios que se aplicam para séries indefinidas de casos, como o da boa-fé, o da exigência de justiça, o do respeito aos direitos da personalidade, o da igualdade perante a lei etc. Isto é assim porque se coordenam todas as técnicas interpretativas em função da teleologia que controla o sistema jurídico, visto que a percepção dos fins exige não o estudo de cad norma isoladamente, mas sua análise no ordenamento jurídico como um todo”.

Por outro lado, conforme a jurisprudência (STJ, REsp 853.086/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/11/2008, DJe 12/02/2009), onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir (“ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus”).

Confira-se:

RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM. COMPETÊNCIA DE FISCALIZAÇÃO. ENFERMEIROS MILITARES. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS REGRAS DE EXCEÇÃO. RECURSO DESPROVIDO.

 

(...)

 

7. Se as Leis 5.905/73 e 7.498/86 não fizeram restrições, é vedado ao intérprete fazê-las, sob pena de violar o princípio da separação dos poderes. Aliás, é princípio basilar da hermenêutica que não pode o intérprete restringir onde a lei não restringe ou excepcionar onde a lei não excepciona.

 

8. A respeito do tema, Carlos Maximiliano, ao discorrer sobre o brocardo jurídico "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus: onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir", afirmou que, "quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas" (in "Hermenêutica e Aplicação do Direito", 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 247).

 

9. Ademais, relativamente à Lei 6.681/79, a qual estabeleceu ressalva à fiscalização dos médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares pelas Forças Armadas, saliente-se que, em se tratando de regra de exceção, torna-se inviável a utilização de exegese ampliativa ou analógica. É inadequada a interpretação extensiva e a aplicação da analogia em relação a dispositivos infraconstitucionais que regulam situações excepcionais, porquanto enseja privilégio não previsto em lei.

 

10. "As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente" (MAXIMILIANO, Carlos. ob. cit., pp. 225/227).

 

11. Na hipótese dos autos, há previsão legal que autoriza a fiscalização pelos Conselhos Regionais de Enfermagem das atividades exercidas pelos enfermeiros em geral. Por outro lado, não há lei que excepcione essa aplicação aos enfermeiros militares. Assim, entender-se que a restrição de que trata a Lei 6.681/79 aplica-se, analogicamente, aos profissionais militares de enfermagem é violar a própria Constituição Federal e, consectariamente, o princípio da estrita legalidade.

 

12. Por fim, ressalte-se que a Administração Pública, direta ou indireta, somente pode atuar dentro dos limites da lei, de maneira que a ausência de previsão legal há de ser interpretada como ausência de liberação para o exercício de poder jurídico. Desse modo, "em atendimento ao princípio da legalidade estrita, o administrador público, na sua atuação, está limitado aos balizamentos contidos na lei, sendo descabido imprimir interpretação extensiva ou restritivamente à norma, quando esta assim não permitir" (AgRg no REsp 809.259/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 13.10.2008).

 

13. Recurso especial desprovido”.

Destaco que, conforme a sábia lição de Eduardo J. Couture, sempre lembrada, é necessário, para se interpretar uma lei, o conhecimento do vernáculo e a respectiva compreensão de cada uma das palavras em seu texto existentes. Mas só isto não basta. Se fosse suficiente, os juristas só precisariam de um livro em sua biblioteca: um dicionário.

Há mais.

“Contra legem facit, quid id facit quod lex prohiber enfraudem vero, qui salvis verbis legis sententiam rius circumveni". No vernáculo: age em fraude à lei quem, respeitadas as suas palavras, contorne o seu sentido (Digesto, Livro I, Título III, de Legibus, de Paulus).

Analisemos, doravente, o contexto social em que vivemos.

 

3. O CONTRATO SOCIAL

 

Jean-Jacques Rousseau, filósofo, teórico político, escritor e compositor suíço, é o autor da clássicas obra Do Contrato Social, publicada em 1762.

No primeiro livro, conclui que, recuperando a liberdade, o povo é quem escolhe seus representantes e a melhor forma de governo se faz por meio de uma convenção. Essa convenção é formada pelos homens como uma forma de defesa contra aqueles que fazem o mal. É a ocorrência do pacto social. Feito o pacto, pode-se discutir o papel do “soberano”, e como este deveria agir para que a soberania verdadeira, que pertence ao povo, não seja prejudicada.

No segundo livro, as principais idéias são desenvolvidas a partir de um princípio central, a soberania do povo, que é indivisível. O povo, então, tem interesses, que são nomeados como “vontade geral”, que é o que mais beneficia a sociedade. Evidentemente, o “soberano” tem que agir de acordo com essa vontade, o que representa o limite do poder de tal governante: ele não pode ultrapassar a soberania do povo ou a vontade geral. Mais adiante, a corrupção dos governantes, quanto à vontade geral, é criticada, garantindo-se o direito de tirar do poder tal governante corrupto.

O terceiro livro se refere às possíveis formas de governo. Em seu capítulo décimo, se mostra como o abuso dos governos pode degenerar o Estado.

De fato, segundo Rousseau[4]:

Imagino os homens que chegaram ao ponto em que os obstáculos, que são prejudiciais à sua conservação no estado natural, arrastam-nos, por sua resistência, sobre as forças que podem ser empregadas por cada indivíduo para se manter nesse estado (...)

 

Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas apenas unir e dirigir aquelas que existem” (...) (Rousseau, 2006, p. 22).

ora, o soberano, sendo formado tão-somente dos privados que o compõem, não tem nem pode ter interesse contrário ao deles...” (Rousseau, 2006, p. 26).

O que o homem perde pelo contrato social é sua liberdade natural e um direito ilimitado a tudo que o tenta e que pode alcançar. O que ganha é liberdade civil e a propriedade de tudo aquilo que possui” (...) (Rousseau, 2006, p. 28)

“(...) somente a vontade geral pode dirigir as forças do Estado segundo o fim de sua instituição, que é o bem comum, (...) Afirmo, portanto, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se e que o soberano, que não é senão um ser coletivo, não pode ser representado a não ser por si mesmo; é perfeitamente possível transmitir o poder, não, porém, a vontade”. (Rousseau, 2006, p.34)

“(...) Se o povo portanto, promete simplesmente obedecer, dissolve-se em conseqüência desse ato, perde sua qualidade de povo. No instante em que houver um patrão, não haverá mais soberano e, a partir de então, o corpo político é destruído”. (Rousseau, 2006, p.35)

Pela mesma razão que a soberania é inalienável é também indivisível porque a vontade é geral ou não o é (...) Nossos políticos, porém, não podendo dividir a soberania em seu princípio, dividem-na em seu objeto: dividem-na em força e em vontade” (...) (Rousseau, 2006, p. 44).

Daquilo que precede segue-se que a vontade geral é sempre reta e tende sempre à utilidade pública, mas disso não se segue que as deliberações do povo tenham sempre a mesma retidão. Sempre se quer o próprio bem, mas nem sempre se consegue vê-lo. Nunca se corrompe o povo, mas o engana muitas vezes” (...) (Rousseau, 2006, p. 38).

Se, quando o povo suficientemente informado delibera, os cidadãos não tivessem nenhuma comunicação entre si, do grande número de pequenas diferenças resultaria sempre a vontade geral e a deliberação seria sempre boa (...)” (Rousseau, 2006, p. 38).

“(...) o pacto social confere ao corpo político um poder absoluto sobre todos os seus e é esse mesmo poder que, dirigido pela vontade geral, leva, recebe o nome de soberania” (Rousseau, 2006, p. 40).

O que é, portanto, o governo? Um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua recíproca correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil como política”. (Rousseau, 2006, p. 69).

Aquele que faz a lei sabe melhor que ninguém como ela deve ser executada e interpretada. Parece, pois, que não se poderia ter melhor constituição que aquela em que o poder executivo está unido ao legislativo. Mas é justamente isso que torna esse governo insuficiente sob certos aspectos, porque as coisas que deveriam ser diferenciadas não o são e porque o príncipe e o soberano, sendo a mesma pessoa, não formam, por assim dizer, senão um governo sem governo”. (Rousseau, 2006, p. 78).

Se todo o sul estivesse coberto de repúblicas e todo o norte de Estados despóticos, não seria menos verdade que por motivo do clima, o despotismo seria conveniente aos países quentes, a barbárie aos países frios e a boa política às regiões intermediárias”. (Rousseau, 2006, p. 92).

assim como a vontade particular age continuamente contra a vontade geral, assim também o governo se empenha com esforço contínuo contra a soberania.” (Rousseau, 2006, p. 98).

O governo se restringe quando passa do grande número ao pequeno, isto é, da democracia à aristocracia e da aristocracia à realeza. É essa sua inclinação natural” (Rousseau, 2006, p. 98).

Ainda segundo Rousseau[5]:

o pacto social estabelece entre os cidadãos uma tal igualdade, que eles se comprometem todos nas mesmas condições e devem todos gozar dos mesmos direitos. Igualmente, devido a natureza do pacto, todo ato de soberania, isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga ou favorece igualmente todos os cidadãos” (ROUSSEAU, 1973, p. 50).

Assim sendo, se hoje temos governantes (agentes políticos) e governados (cidadãos comuns), isto se deve a um verdadeiro pacto social, no qual todos aceitam tal situação em prol da manutenção de uma democracia representativa.

 

4. OS AGENTES POLÍTICOS

 

Quem são hoje os nossos governantes? Os agentes políticos.

Preleciona o eminente José Afonso da Silva[6]:

Relembremos que o Estado se exprime por seus órgãos, que são instrumentos ou meios de ação pelos quais se coloca em condições de querer, de atuar e de relacionar-se com outros sujeitos de direito. O órgão caracteriza-se como um centro de competências delimitado por normas legais. Nele distinguem-se dois elementos: (a) um: subjetivo, pessoal e variável, que é a pessoa ou conjunto de pessoas que, em última análise, expressa a vontade da entidade pública (União, Estados, Distrito Federal ou Município); (b) outro: objetivo, abstrato, institucional e contínuo, que é um centro de competência ou complexo de atribuições. O órgão é, assim, uma unidade jurídica, que compreende seu titular (elemento subjetivo) e suas competências, atribuições e seus meios técnicos, informativos, coativos e etc., que caracterizam o cargo, emprego ou função. A função entra na Constituição agora como um lugar que, para ser ocupado, exige o preenchimento pelo titular de requisitos estabelidos em lei (art. 37,I), mas, nela, os elementos objetivos ficam muito confundidos com o elemento subjetivo.

 

O elemento subjetivo do órgão público – o titular – denomina-se genericamente agente público, que, dada a diferença de natureza das competências e atribuições a ele cometidas, se distingue em: agentes políticos, titulares de cargos que compõe a estrutura fundamental do governo, e agentes administrativos, titulares de cargo, emprego ou função pública, compreendendo todos aqueles que mantém com o Poder Público relação de trabalho, não eventual, sob vínculo de dependência, caracterizando-se, assim, pela profissionalidade e relação de subordinação hierárquica.”.

Já segundo o insígne Celso Ribeiro Bastos[7]:

Agentes públicos são todos aqueles que, em caráter definitivo ou temporário, desempenham alguma atividade estatal. A doutrina aponta três categorias de agentes públicos: a) agentes políticos; b) servidores públicos; e c) particulares em colaboração com o Poder Público. Os agentes políticos são todos os que compõe a organização política do Estado: Presidente da República, Governadores, Prefeitos e seus respectivos auxiliares, Senadores, Deputados e Vereadores. Seu vínculo com o órgão político correspondente é de natureza política e não profissional. Já os servidores públicos são todos aqueles que mantém com o Poder Público um vínculo de natureza profissional, sob uma relação de dependência.

 

Compreendem-se aqui os servidores investidos em cargo efetivo e os servidores investidos em cargos em comissão. E, finalmente, os particulares em colaboração com o Poder Público são os que desempenham uma função pública por requisição do Estado: os jurados; os membros de mesa apuradora em época de eleição; os qe assumem por conta própria a gestão da coisa pública em momento de emergência ou calamidade; e os que desempenham por conta própria, embora com a anuência do Estado, uma função pública, sem relação de dependência, por exemplo, os concessionários e permissionários de serviço público.

 

A expressão “servidor público”, portanto, é utilizada pela Constituição para denotar a categoria formada por todos aqueles que trabalham para o Poder Público profissionalmentem é dizer, mediante remuneração.

 

São servidores públicos os que trabalham na Administração centralizada e descentralizada, na União, nos Estados-membros e nos Municípios. Em suma, os que trabalham na organização burocrática do Estado.”.

Posto isso, a pergunta que ora se faz é a seguinte: se a lei imposta à sociedade é feita por agentes políticos, membros do Poder Legislativo (iniciativa, deliberação, aprovação e derrubada de eventual veto) e Executivo (iniciativa e poder de veto), como se deve dar a sua interpretação, em havendo dúvida? Em favor ou em desfavor de tais agentes políticos, nos processos dos quais sejam parte? Tal distinção seria possível sem implicar em violação ao princípio da isonomia constitucional?

 

É o que doravante se passa a analisar.

 

5. INTERPRETAÇÃO DA LEI EM PROCESSOS JUDICIAIS QUE ENVOLVAM AGENTES POLÍTICOS

Nosso ordenamento jurídico, inclusive na esfera constitucional, é pródigo em distinguir pessoas e lhes dar tratamento diferenciado.

A título de exemplo, o denominado foro privilegiado, mais tecnicamente conhecido como foro por prerrogativa de função, é uma vantagem concedida a autoridades políticas, que só são julgadas por um tribunal. Não se submetem ao crivo do juízo de primeira instância, que decide, em caráter inicial, as lides dos cidadãos comuns.

 

O Código Penal também faz distinções. Confira-se seu artigo 121, com a redação dada pela Lei nº 13.104/15. O homicídio praticado contra mulheres é mais gravemente apenado, tal qual aquele cometido em desfavor de autoridade ou agente integrante do sistema prisional e da Força Nacional de Segurança Pública, ou seus parentes próximos.

O Código Civil igualmente discrimina situações envolvendo diferentes pessoas.

 

A título de exemplo, o seu artigo 152, pelo qual, no apreciar a coação, ter-se-ão em conta o sexo, a idade, a condição, a saúde, o temperamento do paciente e todas as demais circunstâncias que possam influir na gravidade dela.

Cite-se, ainda, o artigo 1.412, in verbis: O usuário usará da coisa e perceberá os seus frutos, quanto o exigirem as necessidades suas e de sua família. § 1o - Avaliar-se-ão as necessidades pessoais do usuário conforme a sua condição social e o lugar onde viver

Pois bem.

As autoridades e governantes, ao exercerem cargos públicos, são os responsáveis pela existência das leis. No Poder Legislativo, as aprovam e, no Executivo, as sancionam ou vetam.

Como o Judiciário as deve interpretar e aplicar? Havendo duas interpretações possíves, escolhe-se aquela em benefício da própria categoria que redigiu e aprovou as normas, qual seja, a classe política? Ou em favor da sociedade, que tais leis têm que cumprir, seguir e, a elas, verdadeiramente aderir?

Lembre-se da regra exegética contida no art. 423 do Código Civil Brasileiro: quando houver, num contrato de adesão, cláusulas ambíguas ou contraditórias, dever-se-á adotar a interpretação mais favorável ao aderente, contrariando os interesses de quem produziu aquele texto que impõe regras e obrigações.

Assim, levando em consideração as idéias de contrato social propostas por Rousseau, não se deve interpretar a legislação, havendo dúvida, em prejuízo do político e a favor da sociedade? Lembro que todo poder emana do povo (art. 1º, par. único, da CF) e que, na aplicação da lei, o juiz atenderá aos fins sociais a que ela se dirige e às exigências do bem comum (art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

Isto mais ganha importância nos processos eleitorais consistentes nos pedidos de registro de candidatura.

Candidato é termo cunhado como derivação de cândido (limpo, imaculado, intocado). A toga branca os identificava na antiguidade. Daí a necessidade de interpretar normas, como a Lei das Inelegibilidades (LC nº 64/90), modificada pela Lei da Ficha Limpa (LC nº 135/10), sempre em favor da sociedade cujo clamor, aliás, fez surgir referida norma.

Nada mais consentâneo ao princípio constitucional da isonomia, que impõe tratamento desigual a situações desiguais.

Segundo José Afonso da Silva[8]:

As constituições só têm reconhecido a igualdade no seu sentido jurídico-formal: igualdade perante a lei. A Constituição de 1988 abre o capítulo dos direitos individuais com o princípio de que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput). Reforça o princípio com muitas outras normas sobre a igualdade ou buscando a igualização dos desiguais pela outorga de direitos sociais substanciais.

(...)

 

O conceito de igualdade provocou posições extremadas. Há os que sustentam que a desigualdade é a característica do universo. Assim, os seres humanos, (...), nascem e perduram desiguais. Nesse caso, a igualdade não passaria de um simples nome, sem significação no mundo real, pelo que os adeptos dessa corrente são denominados nominalistas.No polo oposto, encontram-se os idealistas, que postulam um igualitarismo absoluto entre as pessoas. Afirma-se, em verdade, uma igual liberdade natural ligada à hipótese do estado de natureza, em que reinava uma igualdade absoluta.

 

Era, em essência, também a posição de Rousseau que, no entanto, admitia duas espécies de desigualdades entre os homens: uma, que chamava natural ou física, porque estabelecida pela natureza, consistente na diferença das idades, da saúde, das forças do corpo e das qualidades do espírito e da alma; outra, que denominava desigualdade moral ou política, porque depende de uma espécie de convenção, e é estabelecida, ou ao menos autorizada, pelo consentimento dos homens, consistindo nos diferentes privilégios que uns gozam em detrimento dos outros, como ser mais ricos, mais nobres, mais poderosos.

(...)

 

Nossa constituições, desde o Império, inscreveram o princípio da igualdade, como igualdade perante a lei, enunciado que, na sua literalidade, se confunde com a mera isonomia formal, no sentido de que a lei e sua aplicação tratam a todos igualmente, sem levar em conta as distinções de grupos.

(...)

 

No Direito extrangeiro, faz-se distinção entre o princípio da igualdade perante a lei e o da igualdade na lei. Aquele corresponde à obrigação de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade com o que elas estabelecem, mesmo se delas resultar uma discriminação, o que caracteriza a isonomia puramente formal, enquanto a igualdade na lei exige que, nas normas jurídicas, não haja distinções que não sejam autorizadas pela própria constituição. Enfim, segundo essa doutrina, a igualdade perante a lei seria uma exigência feita a todos aqueles que aplicam as normas jurídicas gerais aos casos concretos, ao passo que a igualdade na lei seria uma exigência dirigida tanto à aqueles que criam as normas jurídicas gerais como àqueles que as aplicam aos casos concretos.

 

Entre nós, essa distinção é desnecessária, porque a doutrina como a jurisprudência já afirmaram, há muito, a orientação de que a igualdade perante a lei tem o sentido que, no exterior, se dá à expressão igualdade na lei, ou seja: o princípio tem como destinatários tanto o legislador como os aplicadores da lei. O princípio significa, para o legislador – consoante observa Seabra Fagundes – “que, ao elaborar a lei, deve reger, com iguais disposições – os mesmos ônus e as mesmas vantagens – situações idênticas, e, reciprocamente, distinguir,  na repartição dos encargos e benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte aquinhoá-las ou gravá-las em proporção às suas diversidades”. Aliás, Francisco Campos, com razão, sustentara mesmo que o legislador é o destinatário principal do princípio, pois se ele pudesse criar normas distintivas de pessoas, coisas ou fatos, que devessem ser tratados com igualdade, o mandamento constitucional se tornaria inteiramente inútil, concluindo que, “nos sistemas constitucionais do tipo do nosso não cabe dúvida quanto ao principal destinatário do princípio constitucional de igualdade perante a lei. O mandamento da Constituição se dirige particularmente ao legislador e, efetivamente, somente ele poderá ser o destinatário útil de tal mandamento. O executor da lei já está, necessariamente, obrigado a aplicá-la de acordo com os critérios, consoantes da própria lei. Se esta, para valer, está adstrita a se conformar ao princípio de igualdade, o critério da igualdade resultará obrigatório para o executor da lei pelo simples fato de que a lei o obriga a executá-la com fidelidade ou respeito aos critérios por ela mesma estabelecidos.

 

Mas, como já vimos, o princípio não pode ser entendido em sentido individualista, que não leve em conta as diferenças entre grupos.

(...)

 

A concepção de que o princípio da igualdade perante a lei se dirige primariamente ao legislador avulta a importância da igualdade jurisdicional. Pois, se o princípio se dirigisse apenas ao aplicador da lei, bastaria a este respeitar o princípio da legalidade e o da igualdade estaria também salvo. No sentido da concepção exposta, que é a correta e pacificamente aceita, o princípio da igualdade consubstancia uma limitação ao legislador, que, sendo violada, importa na inconstitucionalidade da lei, em termos que especificaremos mais adiante. Constitui, por outro lado, uma regra de interpretação para o juiz, que deverá sempre dar à lei o entendimento que não crie distinções.

 

A igualdade perante o juiz decorre, pois, da igualdade perante a lei, como garantia constitucional indissoluvelmente ligada à democracia.

 

O princípio da igualdade jurisdicional ou perante o juiz apresenta-se, portanto, sob dois prismas: (1) como interdição ao juiz de fazer distinção entre situações iguais, ao aplicar a lei; (2) como interdição ao legislador de editar leis que possibilitem tratamento desigual a situações iguais ou tratamento igual a situações desiguais por parte da Justiça

(...)

 

A realização da igualdade perante a justiça, assim, exige a busca da igualização de condições dos desiguais, o que implica conduzir o juiz a dois imperativos, como observa Ingber: de um lado, cumpre-lhe reconhecer a existência de categorias cada vez mais numerosas e diversificadas, que substituem a idéia de homem, entidade abstrata, pela noção mais precisa de indivíduo caracterizado pelo grupo em que se insere de fato; de outro lado, deve ele apreciar os critérios de relevância que foram adotados pelo legislador. É essa doutrina que orienta o princípio da igualdade da justiça na imposição de pena para o mesmo delito. Seria injusto fosse aplicada a mesma pena sempre em atendimento a uma igualdade abstrata. Aplicando-se matematicamente a mesma pena para o mesmo crime, que, por regra, é praticado em circunstâncias diferentes por pessoas de condições distintas. Para que tal abstração não ocorra é que, além das circunstâncias atenuantes ou agravantes, se impõe a regra da individualização da pena (art. 5º,XLVI). Mas ainda é certo que as profundas diferenças de condições materiais não se igualizam por essas poucas regras de justiça penal. É muito difundida, ainda, a idéia de que cadeia é só para pobre.”.

Assim sendo, nada impede que se adote interpretação da lei, em relação aos processos que tenham como parte mebros da classe política, com a observância destas ponderações.

 

6. CONCLUSÃO

Escreveu o sábio Rui Barbosa, há 101 anos, que "De tanto ver triunfar as nulidades; de tanto ver prosperar a desonra, de tanto ver crescer a injustiça. De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra e a ter vergonha de ser honesto".

Já, segundo Fernando Sabino, "Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica".

O que tudo isto significa? Que o Brasil pouco evoluiu, em um século, em termos de combate à impunidade. Em decorrência disto, a imagem do Poder Judiciário, perante a população, não é das melhores, mormente em relação ao julgamento dos ricos e poderosos.

Termos em que, é hora de repensar os critérios de interpretação da lei nos processos que envolvam, por exemplo, os agentes políticos que integram os Poderes Legislativo e Executivo. Havendo dúvida quanto ao seu significado e alcance, por óbvio não se pode interpretá-la em proveito de quem produziu referida legislação e em desfavor da sociedade.

Pelo contrato social idealizado por notórios filósofos como Rousseau, a classe política recebe da sociedade poderes para representá-la, governá-la e regulamentá-la por meio de leis. Leis produzidas por estes políticos que, à evidência, não podem ser privilegiados quando houver necessidade de se interpretá-la.

À evidência, isto não colide, nos processos criminais, com o clássico princípio segundo o qual in dubio pro reo. Este incide quando houver prova dúbia e, em tal caso, a absolvição é medida de direito.

Ora, aqui não se discute dubiedade de provas, e sim como interpretar a lei.

 

Como se sabe, a Justiça e o Poder Judiciário têm como símbolo a divindade grega Thêmis. Esta Deusa tradicionalmente se apresenta de olhos vendados e com uma balança na mão. Mais do que a Justiça, encarna a Lei.

 

Ocorre que, uma visão mais moderna, é ela representada sem as vendas, significando a Justiça Social, onde pode ser visto o meio no qual se insere o indivíduo, para que isto atue como agravante ou atenuante de suas responsabilidades.

 

Não há, com isto, maltrato ao princípio da isonomia, que impõe tratamento igual aos iguais; porém, desigual aos desiguais, na medida das suas desigualdades.

 

A própria lei, tanto a civil, quanto a criminal, distingue pessoas. Sua interpretação também pode e deve fazê-lo.

 

Assim ocorrendo, estaríamos diante de um ativismo judicial, elogiado por uns e criticado por outros? Não. Consiste no legítimo exercício, pelo julgador, da sua função precípua de interpretar a lei, dentro do critério mais adequado e ajustado ao caso concreto, a este sendo aplicado o ordenamento jurídico em vigor.    



[1] Delegada de Polícia em SP, Doutoranda e Mestre em Direito, Professora da Academia de Polícia Civil de SP.

[2] Desembargador do TJSP, Doutor e Mestre em Direito, Professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, da PUC/SP e da EPM - Escola Paulista da Magistratura.

[3] DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro Interpretada. São Paulo: Saraiva. 17ª ed, 2012. p, 178 a 183.

[4] ROUSSEAU, Jean-Jacques. O Contrato Social ou Princípio do direito político. Tradução Ciro Mioranza.São Paulo –SP: Editora Escala Educacional (série Filosofar), 2006.

[5] ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social; Discuros sobre a origem da desigualdade entre os homens. São Paulo, Abril Cultural, 1973. (Col. Os Pensadores).

[6] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros editores. 34ª ed, 2011. p, 678 a 679.

[7] BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Constitucional. Malheiros editores. 22ª ed, 2010. p, 472 a 473.

[8] SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. Malheiros editores. 34ª ed, 2011. p, 211 a .

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