A Difamação a Jânio Quadros

Por Leôncio de Aguiar Vasconcellos Filho | 12/10/2024 | História

A análise das personalidades dos mais notórios personagens da República passa, necessariamente, pelo escrutínio de suas atitudes. E disso não escapa o mais enigmático dos nossos Presidentes da República: Jânio Quadros.

Os mais jovens talvez não saibam, mas o desdobramento dos fatos resultantes de sua renúncia, em 25 de agosto de 1961, culminou no Golpe Militar de março-abril de 1964, e a respeito de tais acontecimentos tratarei num artigo imediatamente posterior a este. A grande questão, aqui, não é se Jânio historicamente acertou ou errou ao anunciar sua surpreendente renúncia, mas o que fizeram dela.

Durante a égide da Constituição de 1946, as eleições do Presidente e do Vice-Presidente da República eram independentes: os cidadãos podiam votar no titular de uma chapa e no Vice de outra, e foi isso o que aconteceu na eleição presidencial de 1960. Como Presidente da República foi eleito Jânio Quadros, de centro-direita, e como Vice-Presidente João Goulart (Jango), de esquerda (que havia concorrido tido, como titular, o Marechal Henrique Teixeira Lott). Assim, vemos que, nos casos de ausência do titular da Presidência da República, como em viagens oficiais, o Vice lançaria o País, ainda que temporariamente, num rumo ideológico diverso do que o Presidente habitualmente tendia a lhe conferir.

As relações entre os Poderes Executivo e Legislativo Federais no Brasil sempre foram, e ainda são, difíceis. O Chefe do Poder Executivo da República sempre teve dificuldades para governar nos períodos democráticos, mesmo durante nos casos em que a Constituição lhe conferia um pouco mais de discricionariedade. A pressão exercida por Congressos Nacionais, caldos dos mais diversos e escusos interesses, sobre os Presidentes da República dos Estados Unidos do Brasil (era esse o nome oficial de nosso País até a Constituição da República de 1967-1969) era tanta que levou Getúlio Vargas, durante seu mandato democrático, a se suicidar em 1954, bem como Jânio a elaborar um minucioso plano a fim de governar sem as amarras constitucionais que o faziam depender de uma maioria de atores políticos eminentemente corruptos: ele mandaria Jango em missão oficial à China, um país socialista, e durante dito interregno blefaria ao “renunciar”, no que contaria com setores conservadores, mas nominalmente não corruptos, para retornar ao cargo maior sob a condição de que lhe dessem poderes plenipotenciários. Só que a renúncia foi pacificamente aceita pelo Congresso Nacional, cuja maioria integrava esse mesmos setores, declarando-se vaga a Presidência da República, com a posse do líder da Câmara dos Deputados, Paschoal Ranieri Mazzilli, num mandato-tampão (o que aconteceria depois, e que levou ao Golpe Militar de 1964, como já disse, tratarei no próximo artigo). O blefe de Jânio fora malsucedido. No documento de renúncia, ele acusa “forças terríveis” de o impedirem de governar.

E é aqui que vem a grande questão, delatora da extrema direita como um espectro político utilizador da difamação como forma de desmoralizar pessoas que, como Jânio, ainda que de direita fossem, não atendem seus interesses: por muitos anos dominou o senso comum a noção de que ele teria expressado, na carta de renúncia, a expressão “forças ocultas”. O objetivo dessa distorção histórica sempre foi, claramente, construir a imagem de um Jânio louco, etílico e que se deixava dominar por supostas questões metafísicas no trato da coisa pública. Na verdade, ele havia escrito a expressão “forças terríveis”, que eram personificadas, aí sim, em militares reacionários, políticos vorazes e elite urbana sustentadoras dos mesmos, e que mantinham o País em um estado permanente de atraso. Com referida falsidade histórica, escapariam do processo de escrutínio público dos mais socialmente excluídos, numa época em que a censura a documentos públicos (que sempre houve no Brasil, mesmo nos períodos democráticos, até 1988) e a ausência de meios de comunicação fornecedores de informações precisas eram as constantes.

Jânio pode ter errado, mas a difamação deflagrada sobre ele, com a a divulgação criminosa de uma expressão que jamais escreveu, é algo dos que não têm a menor capacidade de crítica, e, sobretudo, de autocrítica.