A infância na contemporaneidade

Por Reinaldo Müller (Reizinho) | 13/04/2013 | Sociedade

Criança superprotegida... Criança abandonada... Criança que tem tudo... Criança que não tem nada...

A sociedade contemporânea desenvolveu uma concepção de infância, instituída tanto pelo Estado moderno como pelas teorias psicológicas do desenvolvimento em que a criança é vista como um “vir a ser”. Esta moratória infantil remete a criança para o lugar de objeto em um processo macrossocial encaminhado a uma futura sociedade, pretensamente, ideal.

Criança potencializada ou objeto excluído

Uma problemática conceitual que permeia nossa sociedade e que vem sendo sustentada por um imaginário social, pensa a criança como um algo a “vir a ser” -- algo que se tornará sujeito um dia (quando adulto). De acordo com esta visão, a criança é considerada um "pedaço de seus pais", ou na escrita lacaniana como “O desejo do outro...”.

Dito isto, se quer indicar a criança, enquanto extensão dos pais, ou seja, ela não é vista como um sujeito distinto que tem identidade e direitos próprios, independente de seus genitores.

Em contrapartida há, também, uma tendência atual em privilegiar uma superproteção à criança, enchendo-a de mimos – de cuidados excessivos, privando-a de viver experiências reais, de aprender com os erros, e de elaborar suas próprias defesas e enfrentamento dos problemas, e que são constitutivas de seu caráter e da formação de sua personalidade.

Por outro lado, há um recrudescimento do desmerecimento do mundo infantil, idiotizando-o, subjugando seu potencial criador, imbecilizando a criança.

Essa infantilização da criança não é natural... Ao contrário, ela é bem datada e instituída, historicamente, através de políticas sociais introduzidas pelo Estado, a partir do século XVIII.

Há estudos bem fundamentados destas políticas governamentais na instituição histórico-social da criança e da família. Na civilização medieval, até o início da Idade Moderna, a criança passava a ser independente, cuidar de si mesma e frequentar o mundo dos adultos -- o ambiente laboral -- como uma igual, por volta dos sete anos, aproximadamente.

O processo de infantilização se inicia a partir de um interesse acentuado pela educação da criança, desenvolvido pelo Estado com objetivos de assegurar uma população adulta saudável, adaptada e produtiva. Essa política reflete o interesse dos eclesiásticos e higienistas que se apresentavam antes de tudo, como moralistas. A família, então, deixa de ser capacitada a educar os filhos e estes passam a ser educados sob a tutela da escola.

"A aprendizagem tradicional foi substituída pela escola, uma escola transformada, instrumento de disciplina severa, protegida pela justiça e pela política".

A criança deixa de ser educada no coletivo da “grande família” medieval, pois os pais passam a assumir a responsabilidade de enviar as crianças bem cedo para a escola, incorporando as lições dos moralistas. A partir desse momento, a criança passa a ser considerado um ser inacabado, objeto de normas, submetida a uma hierarquia rigorosa a fim de se tornar, amanhã, um adulto completo e bem conformado. "Passou-se a admitir que a criança não estava madura para a vida, e que era preciso submetê-la a um regime especial, a uma espécie de quarentena antes de deixá-la unir-se aos adultos".

Lamentavelmente, sob muitos aspectos, esta concepção de criança permanece viva na atualidade e permeia as teorias psicológicas, pedagógicas, educacionais, entre outras, que subsidiam as políticas, projetos e ações governamentais em nossas sociedades ocidentais.

As crianças na contemporaneidade são consideradas como menores --ainda não cidadão” -- e o tema infância, enquanto política de ação social está agrupado em família, educação ou saúde.

A infância, como realidade social, tem frequentemente permanecido afastada e excluída das reflexões sobre os problemas sociais e da qualidade de vida, representada nas aspirações sociais coletivas.

A moratória infantil (o “vir a ser”) faz com que a criança esteja sempre em lugar de objeto em um processo macrossocial encaminhado a uma futura sociedade, pretensamente, ideal.

As teorias psicológicas tendem a construir e reforçar essa imagem da infância como um “vir a ser”, na medida em que traz uma ideia de ascensão gradual em sentido qualitativo; passagem de estados de imperfeição a estados de perfeição, de imaturidade para maturidade, de incapacidade para capacidade.

O conhecimento psicológico que tem tido enorme importância em definir a criança, traz implícita uma espécie de intencionalidade que equivale a dizer, de forma um tanto polêmica, que o objetivo final da psicologia é curar as crianças de suas infâncias.

A psicologia funcionou como importante aliada do Estado moderno quando este em função da industrialização retira a criança do mercado de trabalho. Ao retirar da criança seu poder de trabalho, o Estado reforça a ideia de proteção e de controle protetor da infância assim como a ideologia de que a criança pertence aos pais, cabendo a estes a principal responsabilidade sobre aquele futuro adulto.

Nos últimos anos, observamos um movimento no sentido de considerar a criança um sujeito portador dos direitos do homem. Entretanto, o desconhecimento das potencialidades sociais infantis, uma vez que estas nunca foram devidamente, e, suficientemente, investigadas -- gera uma ambiguidade e uma confusão sobre a competência da criança para exercer seus direitos com independência.

Esta ambiguidade aparece tanto nos países subdesenvolvidos como nos desenvolvidos.

Nos países subdesenvolvidos, a ausência de uma educação pública satisfatória e a forçosa entrada da criança no mercado de trabalho impede que milhões de crianças adquiram a aprendizagem necessária para serem cidadãos de pleno direito. Nos países desenvolvidos, o longo período de escolarização, a dependência das crianças de seus pais tende a destruir e asfixiar o potencial espontâneo, criativo e inovador de uma população infantil cada vez mais reduzida.

A criança nunca é considerada, individualmente, mas, é condenada a uma situação de minoridade, baseando-se em um juízo coletivo que por sua vez, se baseia em postulados do modelo psicológico de criança. Trata-se de uma zona de difícil atuação junto às crianças, pois existe pouca distância entre a proteção à criança por parte da sociedade e a proteção da sociedade contra a criança.

Os estudiosos contemporâneos veem as crianças como vítimas inocentes e indefesas de forças que elas não entendem e sobre as quais elas não têm a menor influência. Por vezes, são instrumentos de manipulação de forças políticas, econômicas e sociais. Vale lembrar, a vitimização das crianças pelas problemáticas de adultos que vão desde o simples abandono, carências materiais, afetiva, violência física e psicológica, droga adição, indo pela prostituição, trabalho infantil, entre tantos outros – até mesmo formando grupos marginalizados ativos com armas nas mãos. Perante esta combinação de vulnerabilidade e exploração, é compreensível e pontual que muitos movimentos sociais e organizações políticas e humanitárias tenham se comprometido com uma causa e um denominador comum: a proteção das crianças.

A atenção crescente aos direitos da criança fez surgir uma novidade na atual preocupação com o mundo infantil: a importância da participação dessa população no que se refere aos programas e intervenções psicossociais. Sem a participação das crianças os programas são geradores de marginalidade e controle. Na cultura contemporânea parecemos ansiosos, precipitados em subestimar o potencial das crianças na medida em que aceitamos, sem maiores questionamentos, a tendência à naturalização dessa impotência e seu consequente fatalismo.

Em nosso país observamos já há alguns anos, programas e intervenções sociais junto a meninos de rua devido, principalmente, à situação de risco em que estão submetidos. Os resultados destas intervenções são fundamentais para compreendermos as representações sociais destas crianças, seus modos particulares de enfrentamento dos problemas, assim como valores e expectativas. Entretanto, para que transformações sociais efetivas ocorram, estas devem ser acompanhadas por uma mudança de mentalidades e valores. Para tal, devemos fazer um movimento intenso para compreender: 

  • O fenômeno social e psicossocial da conceptualização da infância.
  • As representações sociais que os adultos fazem das crianças, suas necessidades e problemas.
  • As implicações do conceito “qualidade de vida” referida à infância que exige como componente fundamental, a participação da criança.

Faz-se necessário trazer à luz conhecimentos que desmistifiquem as concepções naturalísticas dominantes para que, de fato, possamos redefinir o conceito de participação a partir de uma transformação dos valores dominantes em nossa sociedade.

Observa-se uma tendência em analisar ou refletir sobre as diversas influências - familiares, escolares, políticas sociais - sobre a criança, mas, jamais procuramos investigar os desafios e as influências colocados pela criança sobre a família, às instituições escolares ou a própria sociedade.

As pesquisas e intervenções junto às comunidades de baixa renda, por exemplo, tendem a visar às estratégias das problemáticas das famílias, das mulheres e até mesmo dos jovens, porém, são quase inexistentes os trabalhos que procuram investigar as estratégias de enfrentamento das próprias crianças.

Podemos observar, entretanto, no cotidiano dessas famílias, uma diversidade de funções exercidas pelas crianças que vão desde o trabalho doméstico (cuidar dos irmãos mais novos, cozinhar, varrer, etc.), passando por pequenos biscates, até trabalhos permanentes. O modo como cada criança lida com estas diversas situações é, ao mesmo tempo, instituído pelos valores e crenças presentes naquela comunidade e/ou das novas formas de enfrentamento dos problemas pelo grupo social ali radicado.

As crianças trazem constantes desafios para os familiares na medida em que experienciam os acontecimentos de um modo diferente e elaboram explicações diversas, e muitas vezes antagônicas, daquelas construídas pelos pais. Ou seja, não existe uma correspondência linear na herança das ideologias e crenças dos pais e dos filhos. Ao contrário, observamos um embate constante e desafiante em que novas estratégias de enfrentamento dos problemas vão surgindo conjuntamente com mudanças valorativas. Ao negarmos à criança o direito de se pronunciar enquanto sujeito, despotencializando-a de qualquer ação, dificultamos a emergência de transformações importantes que podem advir de sua participação no processo psicossocial.

Esta preocupação com o potencial criativo, participativo e transformador da criança tem estado presente nos estudos que questionam a concepção predominante do que seja uma criança e trazem novos subsídios para estarmos pesquisando e trabalhando junto a esta faixa etária.

Faz-se necessário uma ruptura com a representação desqualificadora de que a criança é alguém incompleto, alguém que se constitui num “vir a ser” no futuro. Antes, situá-la "no espaço em que o tempo se entrecruza entre presente, passado e futuro, rompendo, desse modo com a noção de tempo vazio e linear que flui numa direção única e preestabelecida. A criança não se constitui no amanhã: ela é hoje, no seu presente, um ser que participa da construção da história e da cultura de seu tempo”.

Pensar a criança como um cidadão com direitos e deveres e não um “vir a ser”, implica, entretanto, em outro modo de conceber a sociedade e a vida humana.

A sociedade ocidental tem um modo de pensamento predominantemente modelar, ou seja, pensa a vida a partir de modelos criados como ideais, e utilizados tanto para explicar os comportamentos humanos, como para sustentar os valores de bom, mau, saúde, doença, normal, marginal, entre outros. Este pensamento estereotipado somente se sustenta porque concebemos o outro enquadrado em referenciais identitários, fixos, e pré-determinados socialmente.

A teoria da evolução, assim como algumas teorias psicológicas, não somente reforçam este modo de conceber a vida, como instituem modos de estar no mundo condizentes com este pensamento modelar. Assim, tudo que escapa aos padrões é considerado desvio, ou “um menos” ou um “ainda não” que precisa se enquadrar ou evoluir até o modelo estabelecido como ideal.

Cabe não esquecermos aqui, que todos os conceitos e valores são criações sociais e não, fatos naturais. São interpretações criadas por seres humanos em determinados contextos sócios históricos e, como tais, podem e devem ser constantemente questionados e transformados.

Em contraposição a este pensamento, podemos nos remeter a um pensamento processual em que não existe uma forma pré-fixada, mas, uma construção permanente.

A criança nos surpreende, constantemente, com modos criativos e inesperados de abordar uma série de questões. Entretanto, nós os consideramos como modos ingênuos ou primitivos de pensamento, algo diferente dos padrões formais de elaboração de questões e/ou explicações para os acontecimentos. Para que possamos efetivar a participação da criança nos programas de transformações sociais, precisamos questionar estes valores que consideram a diferença como algo menor ou um desvio.

Ou seja, devemos nos perguntar se o nosso pensamento dominante, modelar e excludente, tem conduzido à conformação de uma sociedade justa e igualitária. O conceito de participação implica em uma potencialização conjunta em que não existe um objeto a ser estudado e/ou transformado, mas, todos os envolvidos produzem algo a partir dos encontros.

Para que possamos funcionar como dispositivos de transformação social, junto às comunidades, precisamos, em nossas intervenções, estar acolhendo a produção do outro em sua diferença, e não, transformá-la naquilo que valorizamos como adequado. Estar neste lugar significa estarmos em um movimento de mudança permanente, em que afetamos e somos afetados e, nesse processo, todos somos instituídos.

Resta saber, até que ponto nos deixamos afetar e nos transformar a partir desses encontros ou, ao contrário, vamos esperar sempre que a criança se transforme para se adequar aquilo que habituamos a considerar bom ou ideal para o ser humano? 

Reinaldo Müller