A INEXIGIBILIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA A CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL...

Por Ana Luiza Sousa Rodrigues | 20/06/2018 | Direito

A INEXIGIBILIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA A CONFIGURAÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL FRENTE AOS PRINCÍPIOS DA PROPORCIONALIDADE, RAZOABILIDADE E LEGALIDADE NO DIREITO PENAL BRASILEIRO

1 INTRODUÇÃO

No Brasil, a ocorrência de crimes sexuais é um dos tipos de agressão mais recorrentes cometidos contra crianças e adolescentes. Diante desse contexto, em 2009 foi introduzido no Direito Penal o crime denominado Estupro de Vulnerável, que tem como condições de ocorrência a prática de conjunção carnal ou qualquer outro ato libidinoso com um menor de 14 anos, tendo como pena a reclusão, de 8 a 15 anos. Há, entretanto uma discussão acerca da necessidade - ou não - de contato físico entre a vítima e o agressor para a configuração desse tipo penal. (GRECO, 2017)

Recentemente, em decisão unânime da 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) foi considerada legítima uma denúncia por estupro de vulnerável mesmo sem ter havido nenhum contato físico entre o agressor e a vítima, considerado este pelos relatores como irrelevante para a caracterização do delito. Tal entendimento, porém, tem levado a importantes questionamentos no que diz respeito aos princípios do Direito Penal Brasileiro, tais como a proporcionalidade, razoabilidade e legalidade.

Para a busca dos objetivos, o tema debruça sobre a problemática principal: É necessário o contato físico entre agressor e vítima para a configuração do crime de estupro de vulnerável?

Para alcançar a resposta do problema acima, faz-se necessário a análise para obter resposta a outros problemas, tais como: Quais as condições de ocorrência do crime de estupro de vulnerável? Quais as consequências da ocorrência desse crime para a vítima e para o agressor? O recente entendimento a favor da inexigibilidade de contato físico afronta os princípios da proporcionalidade, razoabilidade e legalidade?

O artigo 217-A do Código Penal Brasileiro define como estupro de vulnerável: Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena: Reclusão, de 8 a 15 anos. Como na maioria dos crimes sexuais, a premissa básica para o cometimento desse delito é a especial finalidade de satisfação da lascívia do agente, ou seja, do seu desejo sexual, de sua libido.

Partindo desse pressuposto, a hipótese principal do trabalho é que se o agressor, mesmo sem promover contato físico com a vítima menor de 14 anos, pratica atos libidinosos que tenham como objetivo a satisfação da sua lascívia, estará enquadrado no crime em questão.

No delito em comento tem-se dois elementos objetivos que norteiam a caracterização do tipo penal: ter conjunção canal ou praticar ato libidinoso com vítima menor de 14 anos. Existindo qualquer dessas condições de ocorrência, haverá o crime de estupro de vulnerável. (NUCCI, 2017)

Isso porque o sujeito passivo do crime em questão é um menor de 14 anos, sem chances de defesa e compreensão exata do que acontece na prática de tal delito, o que torna claro a ocorrência de abalos emocionais em decorrência do abuso sofrido. Quanto ao agressor, dependendo do caso concreto e da real intenção observada, deve-se analisar o caminho da responsabilização, sempre levando em conta as condições de ocorrência do crime de estupro de vulnerável ou outro no qual a conduta se enquadre.

De acordo com o princípio da proporcionalidade, é necessário que o intérprete da lei faça uma valoração proporcional entre a gravidade da conduta, a lesão à vítima e as penas cominadas pela lei penal ao agente; o princípio da razoabilidade visa proporcionar uma intervenção aos direitos individuais pautada pela razão, ensejando uma ideia de lógica, admissibilidade, idoneidade na análise do caso concreto; já à luz do princípio da legalidade, existe uma limitação ao pode estatal ao interferir nas liberdades individuais. (CUNHA, 2016)

Levando em conta a vulnerabilidade objetiva do menor de 14 anos que teve sua dignidade sexual ofendida pelo agressor, ainda que não fisicamente, mesmo que se leve em conta todos os princípios citados, no estupro de vulnerável há uma real lesão à vítima em face de uma conduta praticada - na modalidade ato libidinoso -, o que leva o Estado a interferir e garantir o bem jurídico protegido pelo tipo penal.

O objetivo principal da pesquisa é analisar a necessidade de contato físico entre vítima e agressor para a configuração do crime de estupro de vulnerável frente aos princípios do Direito Penal Brasileiro.

Já os objetivos específicos são discorrer sobre o crime de estupro de vulnerável e suas condições de ocorrência de acordo com a doutrina e a jurisprudência brasileiras; verificar as consequências da ocorrência desse crime para vítima e agressor à luz dos aspectos legais e psicológicos; e averiguar se o entendimento acerca da inexigibilidade de contato físico entre vítima e agressor afronta os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e legalidade no Direito Penal Brasileiro.

É notório que o abuso sexual é um fenômeno universal que atinge diferentes classes sociais, idades, raças e culturas por todo o mundo. No Brasil, a ocorrência de crimes sexuais, especialmente aqueles cometidos contra crianças e adolescentes, exigiu novas configurações legais, a exemplo da criação do crime de Estupro de Vulnerável no Código Penal Brasileiro em 2009. (OLIVEIRA, 2014).

Diante de tal crime, porém, a doutrina e a jurisprudência ainda divergem quanto às suas condições de ocorrência, em especial no que diz respeito à inexigibilidade de contato físico entre vítima e agressor, bastando apenas a contemplação lasciva para a configuração desde.

Nesse contexto, torna-se necessário expor tal problemática, visto que de um lado se pondera a fragilidade e vulnerabilidade de crianças e adolescentes vítimas abuso e de outro, os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e legalidade eventualmente afrontados ao se aplicar um crime de alto potencial ofensivo à uma conduta meramente contemplativa.

O estudo sobre o tema proposto contribui para a compreensão dessa questão no meio social e é de profunda relevância intelectual e prática, visto que o entendimento sobre a inexigibilidade de contato físico entre agressor e vítima é recente e há uma carência de estudos específicos que abrangem tal matéria no meio acadêmico.

O interesse inicial por essa pesquisa se deu por meio da compreensão de que as consequências de um abuso sexual podem afetar todo o desenvolvimento emocional, afetivo e comportamental da criança ou adolescente, o que leva à necessidade de proteção extrema à dignidade sexual destas, principalmente no que diz respeito a condutas lascivas, ainda que sem agressão ou contato físico.

 Até 2009, o Código Penal Brasileiro, falava de três hipóteses em que se presumia violência para os crimes contra a dignidade sexual: se a vítima não fosse maior de 14 anos; fosse alienada ou débil mental - conhecendo o agente essa circunstância -; ou se não pudesse oferecer resistência. (CAPEZ, 2012).

Com o advento da Lei 12.015/2009 foram corrigidas algumas situações questionadas pela doutrina e jurisprudência e feitas diversas mudanças, dentre elas, a maior proteção e cuidado ao desenvolvimento sexual do menor de 14 anos, criando-se um tipo penal autônomo denominado “estupro de vulnerável”, focado no princípio da dignidade da pessoa humana, bem como na livre formação da personalidade do indivíduo. (NUCCI, 2010).

Previsto no art. 217-A, o crime de estupro de vulnerável dispõe: “Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos: Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos. ” (BRASIL, 1940). Por “vulnerável” deve-se entender qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. Segundo Capez (2012), “a lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc.

Sendo assim, a vulnerabilidade tratada no crime em questão não presume apenas incapacidade e violência, mas diz respeito a uma proteção do Estado em relação a certas pessoas, incluindo-se nesse rol, além dos menores de 14 anos, doentes mentais, enfermos, pessoas inconscientes, ou quaisquer outras pessoas em situação de evidente fragilidade, casos enquadrados pelo §1º do supracitado artigo.

Como condições de ocorrência para o crime de estupro de vulnerável, é necessário o sujeito ativo e passivo na relação, podendo o sujeito ativo ser qualquer pessoa (crime comum) e sendo o sujeito passivo o menor de 14 anos ou a pessoa vulnerável a ela equiparada nos termos na lei. (NUCCI, 2010).

Quanto ao menor de 14 anos, sua vulnerabilidade é definida unicamente pelo critério de idade, sendo desconsiderado o consentimento ou não da vítima, o que estabelece um critério objetivo para a análise do tipo penal, sendo admitido, porém, o erro de tipo quando o agente não souber ou não puder pressupor a idade da vítima. (GRECO, 2011)

A conduta típica do crime em questão consiste em duas hipóteses. A primeira é ter conjunção carnal com o vulnerável, sendo definida esta como a própria cópula vagínica entre o agressor e a vítima. (CAPEZ, 2012). A segunda hipótese consiste em praticar qualquer ato libidinoso com o menor de 14 anos.

Para o Direito Penal Brasileiro, o ato libidinoso se define como qualquer ato que tenha como objetivo a satisfação da libido, ou seja, do desejo ou apetite sexual. Sendo assim, qualquer ato, realizado isolada ou conjuntamente, com o fim de satisfação da lascívia humana, como abraçar, beijar, tocar, despir ou simplesmente expor o menor de 14 anos a situações que envolvam exibicionismo ou assédio verbal, mesmo não existindo contato físico, é considerado crime. (OLIVEIRA, 2014). Essas ações lascivas, porém, nem sempre deixam vestígios físicos, o que dificulta a ação da lei e facilita a impunidade do agente.

A definição de vulnerabilidade empregada ao menor de 14 anos pelo Direito Penal Brasileiro mostra a intenção do legislador de caracterizar essas pessoas como despidas de proteção e sem a capacidade de externar seu consentimento de maneira válida, racional e segura, por isso a eliminação de qualquer situação fática que legitime uma conjunção carnal ou ato libidinoso com menor de 14 anos. (OLIVEIRA, 2014).

É importante ressaltar que tal crime é geralmente praticado longe de testemunhas ou vestígios que provem a sua ocorrência, tendo os tribunais que trabalhar com mínimos elementos e provas para a formalização da culpa do agente. Diante desse contexto, o depoimento da vítima ganha especial importância, visto que na maioria dos casos, essa é a única prova da ocorrência do delito. (GARBIN, 2016).

Tal situação pode gerar duas consequências opostas: a demasiada exposição de um vulnerável a incontáveis procedimentos para a apuração do crime, o que pode gerar constrangimento e ainda mais dano à vítima; e os riscos que se assume ao condenar o agente a um crime de alto potencial ofensivo quando sua conduta poderia se encaixar em crime menos gravoso em casos onde não houve contato físico com a vítima.

Porém, considerando crianças e adolescentes como o principal grupo de risco para o crime em questão, há que se levar em conta a ameaça ao desenvolvimento humano dessas pessoas envolvidas tão precocemente em violência sexual, o que influencia diretamente na sua formação física e mental, bem como na sua personalidade, identidade, convivência social, rendimento escolar, vida sexual, entre outras consequências danosas à vivência do crime de estupro de vulnerável, em qualquer das suas condições de ocorrência. (OLIVEIRA, 2014).

Como já mencionado, o crime de estupro de vulnerável pode ser cometido mediante duas práticas: a ocorrência de conjunção carnal ou de qualquer ato libidinoso com uma pessoa menor de 14 anos. Entretanto, devido à grande quantidade de situações que ensejam a prática de atos libidinosos, a doutrina e a jurisprudência ainda divergem quanto à necessidade ou não de que esse ato envolva algum contato físico entre vítima e agente, mesmo sem a presença de violência ou grave ameaça, condição desnecessária para a caracterização do crime em questão.

Consonante à essa discussão, a 5ª turma do Superior Tribunal de Justiça considerou legítima a denúncia contra um indivíduo acusado de pagar pessoas para levarem uma menina de 10 anos a um motel repetidas vezes, onde ela era constrangida a tirar a roupa para mera contemplação deste.

No caso em questão, o contato físico foi considerado pelo relator como irrelevante para a caracterização do delito, sendo bastante apenas a contemplação lasciva:

DIREITO PENAL. DESNECESSIDADE DE CONTATO FÍSICO PARA DEFLAGRAÇÃO DE AÇÃO PENAL POR CRIME DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL.

A conduta de contemplar lascivamente, sem contato físico, mediante pagamento, menor de 14 anos desnuda em motel pode permitir a deflagração da ação penal para a apuração do delito de estupro de vulnerável. A maior parte da doutrina penalista pátria orienta no sentido de que a contemplação lasciva configura o ato libidinoso constitutivo dos tipos dos arts. 213 e 217-A do CP, sendo irrelevante, para a consumação dos delitos, que haja contato físico entre ofensor e ofendido. No caso, cumpre ainda ressaltar que o delito imputado encontra-se em capítulo inserto no Título VI do CP, que tutela a dignidade sexual. Com efeito, a dignidade sexual não se ofende somente com lesões de natureza física. A maior ou menor gravidade do ato libidinoso praticado, em decorrência a adição de lesões físicas ao transtorno psíquico que a conduta supostamente praticada enseja na vítima, constitui matéria afeta à dosimetria da pena. RHC 70.976-MS, Rel. Min. Joel Ilan Paciornik, julgado em 2/8/2016, DJe 10/8/2016.

Entretanto, alguns juristas defendem que tal decisão afronta os princípios basilares do Direito Penal Brasileiro, tais como a proporcionalidade, razoabilidade e legalidade, o que pode gerar um perigoso precedente nos tribunais brasileiros.

Considerando que o crime de estupro de vulnerável é considerado de alto potencial ofensivo por sua pena mínima de reclusão de 8 anos, de acordo com o princípio da proporcionalidade, é necessário que o intérprete da lei faça uma valoração proporcional entre a gravidade da conduta, a lesão à vítima e as penas cominadas pela lei penal ao agente, tudo isso proporcionando uma intervenção aos direitos individuais pautada pela razão e ensejando uma ideia de lógica, admissibilidade e idoneidade na análise do caso concreto, de acordo com o princípio da razoabilidade. (BITTENCOURT, 2015).

Por fim, à luz do princípio da legalidade, é assegurado a todos a condenação apenas quando exista lei que tipifique a conduta praticada, com suas devidas abrangências e penas, o que, de acordo com alguns juristas, não é visto quando se fala no termo “atos libidinosos”, havendo uma insuficiência de parâmetros que permitam uma condenação com adequado grau de certeza. (GREUEL; CARLS, 2010)

Porém, ainda que se leve em conta todos os princípios citados, no estupro de vulnerável há uma real lesão à vítima em face de uma conduta praticada na modalidade ato libidinoso, que é muito bem definida não no dispositivo, mas na doutrina pátria como sendo qualquer ato que vise a satisfação do desejo sexual do agente, o que leva o Estado a interferir e garantir o bem jurídico protegido pelo tipo penal.

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