A Inconstucionalidade da Tributação Fixa e Incidência de Aliquotas Diferenciadas do ISSQN
Por Ivanna Fernandes | 17/12/2008 | DireitoIvanna Fernandes[1]
RESUMO: O prementeartigo visa analisar a constitucionalidade da tributação diferenciada do ISSQN dos profissionais autônomos e sociedades destes, demonstrando sua incompatibilidade com a Constituição Federal de 1988, perpassando-se pela análise da regulação infraconstitucional da matéria pelo Decreto-Lei nº 406/68 e a Lei Complementar nº 116/03, atual legislação a regulamentar as normas gerais relativas ao Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza. Será ainda objeto de análise a recepção pela Constituição Federal de 1988 do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, o qual institui a tributação fixa para as sociedades prestadoras de serviços profissionais, bem como sua revogação pela Lei Complementar nº 116 de 31 de Julho de 2003. Demonstrar-se-á, ainda, a disparidade na cobrança do ISSQN em "alíquotas fixas", ferindo os princípios constitucionais tributários, bem como análise jurisprudencial.
PALAVRAS CHAVE: imposto sobre serviço de qualquer natureza; inconstitucionalidade; alíquotas; tributação fixa; sociedades de profissionais.
SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 ISSQN – FORMA GERAL; 3 A inconstitucionalidade da cobrança de alíquotas diferenciadas E FIXAS PARA O ISSQN; 3.1 EXISTÊNCIA DE DISCRIMINAÇÃO DE CONTRIBUINTES POR CRITÉRIO NÃO RAZOÁVEL E DESPROPORCIONAL, LOGO INCONSTITUCIONAL, TRAZENDO GRAVE DANO AO PRINCÍPIO-GARANTIA DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA; 3.2 COMPLETA NEGLIGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, ENCETADO NO ART. 145, §1º, DO TEXTO CONSTITUCIONAL; 3.3 DETURPAÇÃO DOS ASPECTOS MATERIAL E QUANTITATIVO DO ISSQN; 4 CONCLUSÃO;REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS; ANEXOS.
1. INTRODUÇÃO
O presente artigo visa demonstrar a premente inconstitucionalidade, no atual ordenamento jurídico pátrio, da instituição de alíquotas diferençadas para tributação do ISSQN no que tange às sociedades uni-profissionais e pluri-profissionais, eis que esta distinção lesiona os princípios constitucionais tributários da capacidade contributiva, legalidade estrita e isonomia.
Podendo o ISSQN ter sua alíquota variada entre 2% a 5%, conforme sua formatação constitucional, tendo por base de cálculo a receita bruta auferida pela prestação de serviços, existiria disparidade na incidência do imposto entre sociedades que não ocupam o mesmo patamar econômico, calculadas por valores fixos, determinados de acordo com a natureza do sujeito passivo? A incidência do ISSQN em valores fixos, previamente estabelecidos de acordo com a natureza do sujeito passivo, tratar-se-ia de afronta à isonomia tributária que deve ser resguardada entre contribuintes da mesma espécie.
Ademais, no caso dos contribuintes do imposto municipal que se configurarem em sociedade, "alíquotas fixas" e pré-determinadas de incidência do ISSQN, não levando em conta a real receita apurada por estas mesmas sociedades, não desvirtuaria o aspecto quantitativo da hipótese de incidência da exação, previsto pela Constituição Federal de 1988, que seria o preço do serviço, aliás, conforme dispõe o Código Tributário Nacional. Entendo que se concretiza, neste ponto, negativa de valor ao princípio da legalidade estrita.
A conduta dos Municípios de estabelecerem base de cálculo fixa para alguns contribuintes do ISSQN, incidente de forma diversa sobre cada profissão e sociedade cujos componentes desempenhem esta função, com base no Decreto-Lei nº 406/68, que faz clara distinção entre estas, acarreta em ferir o princípio da isonomia, expresso no art. 150, II, da Constituição Federal de 1988, pois, cada contribuinte recolheria sobre um determinado valor pré-estabelecido por lei, ignorando seu montante de receita bruta real. Na prática isso equivaleria dizer que um serviço de determinada profissão vale mais que o de outra, uma vez que, o critério a ser adotado não é o da aferição econômica pelo profissional, mas uma base estabelecida em torno de sua natureza, o que de pronto rejeita-se por ser imensurável.
Assim, demonstrar-se-á que a existência de dois regimes de tributação para o ISSQN é inconstitucional, logo, devendo ser afastada sua aplicação, tendo-se em vista que a previsão de valores fixos ao lado da tributação geral, mediante a aplicação duma alíquota em face da base de cálculo ordinária do imposto em tela – o valor da prestação do serviço representa uma afronta a princípios constitucionais tributários de primeira importância, como os princípios da isonomia tributária e capacidade contributiva, sem prejuízo de afetar o mais importante daqueles, qual seja o princípio da legalidade estrita, que deve reger qualquer exação fiscal, como verdadeiro direito-garantia constitucional fundamental do contribuinte-cidadão.
Ademais, será elucidado que em função das inúmeras inconstitucionalidades do regime de valores diferenciados e fixos de tributação do ISSQN, também denominado de "alíquotas fixas", erroneamente, diga-se de passagem, sua previsão infraconstitucional não foi recepcionada pelo ordenamento jurídico pátrio inaugurado com a Constituição Federal de 1988.
2. ISSQN – FORMA GERAL
O artigo 16 do Código Tributário Nacional define imposto como sendo espécie de tributo cuja obrigação tem por fato gerador uma situação independente de qualquer atividade estatal especifica relativa ao contribuinte, classificação que permanece válida diante do atual panorama constitucional brasileiro, devendo-se apenas acrescentar que as contribuições sociais não se distinguem pela espécie de seu fato gerador, melhor dizendo, pelo tipo do aspecto material da hipótese de incidência, mas pela finalidade de sua arrecadação, pensamento aplicável aos empréstimos compulsórios, por analogia.
O ISSQN é um imposto municipal, cuja natureza é eminentemente fiscal, uma vez que tem como finalidade arrecadar recursos ao ente público municipal, sem qualquer pretensão regulatória dum determinado setor da economia ou financiador de projeto específico de ente público. É um imposto que não possui caráter restituível, como sói ocorrer com o empréstimo compulsório, tratando-se de receita definitiva ao Município.
O tributo em tela tem sua origem em Roma, chegando ao Brasil em 1812 através de um Alvará. Em 1860 denominou-se imposto de indústria e profissão e com o advento da CF/1891 sua competência passou para os Estados, tendo posteriormente sido declinada para os Municípios, com a promulgação da CF/88.
O imposto sobre prestação de serviços passou a ser regido pelo Decreto-Lei nº 406/68, diploma legal que instituiu as primeiras normas gerais sobre o imposto em comento. O aludido diploma legal foi recepcionado pela Constituição Federal de 1946, alterada pela Emenda Constitucional nº 18/67, com status de Lei Complementar, tendo sua redação alterada posteriormente pela Lei Complementar nº 56/87. Destaca-se que foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, também com status de Lei Complementar, diante do art. 146, III, do texto constitucional em vigor. Posteriormente, visando adequar completamente o tratamento infraconstitucional do ISSQN à Constituição Federal de 1988, foi editada pelo Congresso Nacional a Lei Complementar nº116/2003, veiculando normas gerais para o imposto em tela.
Entretanto cabe salientar, sendo certo que estaremos focando no cerne do presente trabalho, e que logo mais será estudado de forma mais aprofundada, que a Lei Complementar nº116/2003, nada dispôs a respeito da incidência ISSQN fixo, não tecendo qualquer disposição de forma expressa.
Outrossim, o art. 10 da Lei Complementar nº 116/2003 tratou expressamente da revogação dos artigos 8º, 10º, 11º e 12º, do Decreto Lei nº 406/68, silenciando quanto ao art. 9º. Portanto, revogou de forma expressa, o inciso V do art. 3º do Decreto-Lei nº 834/69, bem como, a Lei Complementar nº 56/87, estes, os quais haviam dado a nova redação do art. 9º do Decreto Lei nº 406/68.
Antes de iniciarmos a explanação do tema, faz-se necessário expor precisamente quais são os elementos ou aspectos que compõem a hipótese de incidência de qualquer tributo. A incidência de qualquer tributo no ordenamento jurídico brasileiro depende de lei prévia que elenque fatos que, uma vez concretizados no mundo fenomênico, darão origem à obrigação tributária, ensejando a cobrança do tributo. A esta eleição de atos jurídicos, negócios jurídicos ou situações jurídicas pela norma tributária, denomina-se hipótese de incidência tributária. A hipótese de incidência desmembra-se em cinco aspectos: pessoal, material, quantitativo, temporal e espacial, que conjugados levam à sua perfeita particularização, todos com estrita correlação e fundamento com o texto constitucional, cumprindo função de explicitar a hipótese de incidência que a Constituição Federal confere aos entes tributários.
A hipótese de incidência decorre da lei instituidora do tributo, editada pelo ente público que detém a competência constitucional para tanto, competência esta devidamente delimitada pelo texto constitucional e contém todos os aspectos necessários à identificação completa de qualquer tributo, desde sua natureza jurídica (imposto, taxa, contribuição de melhoria, contribuições sociais etc.), determinação do sujeito ativo (quem o criou e quem pode cobrá-lo) e passivo (quem deve pagá-lo), com a delimitação exata do contribuinte e eventuais responsáveis tributários; indica o âmbito territorial de eficácia e aplicabilidade da lei que deu origem ao tributo, o momento temporal de concretização do fato jurígeno da relação obrigacional, finalizando na descrição deste mesmo fato e como será expresso em moeda.
O aspecto pessoal define os sujeitos que compõem a relação jurídica obrigacional tributária, delimitando quem deverá pagar determinado tributo e quem poderá cobrá-lo, denominando os sujeitos passivo e ativo, devedor e credor, respectivamente. O sujeito passivo da obrigação tributária será a pessoa obrigada por lei ao pagamento, tendo duas qualificações: contribuinte e responsável tributário, sendo que os ocupantes de ambas as posições jurídicas possuem capacidade tributária passiva.
O sujeito ativo do ISSQN são os Municípios, entes públicos componentes da Federação Brasileira, diante da disposição do art. 18 do texto constitucional, na qual têm competência para instituir, cobrar e regular o ISSQN, conforme dispõe o artigo 156, III, da Constituição Federal de 1988. Entretanto, cabe salientar que o ISSQN poderá ser instituído pelo Distrito Federal e União, nas hipóteses previstas nos art. 32, §1º e 33, §1º, ambos da Lei Maior, respectivamente.
Determina a hipótese de incidência ainda o momento temporal que o fato gerador reputa-se ocorrido, demarcando precisamente o momento a partir do qual a Administração Pública poderá iniciar a cobrança do débito, além de marcar qual a legislação aplicável ao fato gerador ocorrido.
Por sua vez, o aspecto espacial determina o âmbito territorial de eficácia da norma impositiva do ente público, subsumindo aos seus efeitos os fatos geradores ocorridos dentro do delimitado território, limitado ao território do instituidor do tributo.
O aspecto material da hipótese de incidência destaca-se dentre os demais em virtude de ser ponto nuclear ao delimitar o fato jurídico fonte da relação obrigacional. É possível saber-se qual o fato que cria a obrigação tributária e, mais importante, a partir de sua detalhada análise, inferir se os demais aspectos da hipótese de incidência estão em harmonia com a competência tributária atribuída pela norma constitucional, eis que não poderá existir contradição entre esta e o aspecto material previsto na norma infraconstitucional, sob pena de ser fulminada com a pecha de inconstitucionalidade.
A definição da fonte da obrigação tributária coincide com a determinação do aspecto material da hipótese de incidência, pelo qual a lei impositiva escolhe um determinado fato como gerador da obrigação de pagar o tributo por parte do sujeito passivo. O direito tributário positivo brasileiro utiliza-se de institutos, conceitos e formas de ditos outros "ramos" do direito para a definição da hipótese de incidência, possuindo, assim, caráter fluído ou de super direito.
Isto importa que ao invés de eleger um fato a que a lei confere efeitos jurídicos, a norma tributária elege estes mesmos efeitos jurídicos para origem do vínculo obrigacional tributário; poder-se-ia dizer que a fonte ou fato gerador da obrigação tributária é a conseqüência jurídica da fonte do direito comum.
Por fim, o quantum debeatur decorrente da incidência da norma impositiva será detalhado pelo aspecto quantitativo, expressando em moeda o valor do tributo. Compõe-se de duas grandezas quantitativas, base de cálculo e alíquota, sendo imbricados e necessários ao cálculo do montante a ser pago pelo sujeito passivo, valor do tributo, aplicados concomitantemente.
A base de cálculo é a expressão em pecúnia do fato jurídico escolhido pela norma tributária, conforme detalhado nesta, e reflexo da expressão econômica do fato, bem como da capacidade contributiva do sujeito passivo. Trata-se da mensuração econômica do aspecto material e deve guardar íntima ligação com esta, não podendo agregar elementos estranhos à sua mensuração.
Por sua vez, a alíquota refere-se à consideração duma determinada parte da base de cálculo, sendo fração desta, a fim de possa ser encontrado um valor certo e que guarde alguma relação de razoabilidade ou proporcionalidade em relação ao fato gerador. Encontra-se o valor a ser pago a título de tributo mediante a aplicação da alíquota sobre a base de cálculo mensurada. Assim, poderá ser ad valorem, quando representar uma porcentagem da base de cálculo ou específica, quando a lei previamente estabelecer um valor para uma quantidade.
O aspecto material do ISSQN foi definido em âmbito infraconstitucional pelo art. 1º da Lei Complementar nº 116/03, diploma legal atualmente vigente, definindo o fato gerador ou aspecto material da hipótese de incidência do imposto em comento como:
O Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza, de competência dos Municípios e do Distrito Federal, tem como fato gerador à prestação de serviços constantes da lista anexa, ainda que esses não se constituam como atividade preponderante do prestador.
Assim, o fato gerador do ISSQN é a efetiva prestação de serviço por profissional autônomo ou empresa, desde que o serviço prestado esteja previsto na lista anexa à Lei Complementar nº 116/2003, como ocorrera outrora com o citado Decreto-Lei nº 406/68, editada com específica autorização constitucional para tanto, qual seja, no art. 156, III, da Constituição Federal de 1988. Tem-se, portanto, que somente estarão abarcados no âmbito de incidência do ISSQN os serviços que estejam arrolados previamente em lei, editada com status de lei complementar.
Tendo em vista a materialidade eleita pelo texto constitucional para o ISSQN de incidir sobre a "prestação de serviços", o art. 5º da Lei Complementar 116/03, estabelece que é contribuinte do tributo em tela o prestador do serviço, não podendo ser em sentido diferente a referida disposição legal. Assim, o aspecto quantitativo do tributo, composto pela base de cálculo e alíquota, há de ser o valor do serviço. A base de cálculo representa economicamente ou monetariamente o aspecto material do tributo, tendo a alíquota função de mensurar uma pré-determinada parte daquela para ser entregue ao ente tributário como pagamento de tributo, quando da realização da incidência tributária. Trata-se então de representar uma parte da base de cálculo, na qual a alíquota pode ser ad valorem ou específica.
A base de calculo prevista para o ISSQN pelo art. 7º da Lei Complementar 116/03, será o preço do serviço no seu valor bruto. Sobre o ponto, Aires Barreto registra que:
é o padrão, critério ou referencia para medir um fato tributário, sendo a definição legal da unidade constitutiva do padrão de referencia a ser observado (BARRETO, 1987, p.39)
Assim, a base de cálculo do ISSQN deverá expressar, sem artifícios, o preço do serviço prestado, não podendo distanciar-se deste laboarte, sob pena de desvio do aspecto material eleito e lesão aos princípios constitucionais de estrita legalidade ou tipicidade cerrada e capacidade contributiva. Qualquer adição que não tenha direta correspondência no preço do serviço será inconstitucional, sendo este o ponto central do presente trabalho.
Temos que o art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, prevê a tributação diferenciada de alguns contribuintes, sejam profissionais autônomos ou sociedades de profissionais autônomos, ignorando a alíquota que o texto constitucional expressamente autorizou cada Município a instituir, dentro dos limites de 2% a 5%, mas prevendo valores fixos e determinados para a incidência, variando de acordo com o critério utilizado pela legislação de cada ente municipal, contrariando o quanto dispõe e autoriza a Constituição Federal de 1988, conforme será demonstrado adiante.
3. A inconstitucionalidade da cobrança de alíquotas diferenciadas E FIXAS PARA O ISSQN.
A inconstitucionalidade da cobrança do ISSQN pela ditas "alíquotas fixas", previstas pelos §§1º e 3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, será demonstrada pelo seu confronto com os princípios da isonomia tributária, capacidade contributiva e legalidade estrita. Inicia-se pela transcrição dos dispositivos legais em comento:
Art. 9º. A base de cálculo do imposto é o preço do serviço.
§1º. Quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, o imposto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho.
omissis
§3°. Quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma do §1°, calculado em relação a cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, nos termos da lei aplicável. (Redação dada pela Lei complementar nº 56, de 15.12.1987)
Infere-se do caput do art. 9º que a base de cálculo ordinária do ISSQN é o preço do serviço, mesma disposição existente no art. 7º da Lei Complementar nº 116/2003, estando a regra legal em comento de plena conformidade com a hipótese de incidência formatada pela Constituição Federal e outorgada aos entes municipais. Neste ponto é preciso rememorar que o aspecto material da hipótese de incidência tem extrema correlação com o aspecto quantitativo – composto pela base de cálculo e alíquota, não podendo este último aspecto existir sem necessária correlação com a faceta material, sob pena de incorrer a lei instituidora em vício de inconstitucionalidade.
De forma hialina extrai-se dos retro transcritos §§1º e 3º que a base de cálculo do ISSQN, quando se tratar de prestação de serviços sob a forma de trabalho pessoal do próprio contribuinte, será por meio de alíquotas fixas ou variáveis em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, nestes não compreendida a importância paga a título de remuneração do próprio trabalho, bem como que quando os serviços a que se referem os itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa forem prestados por sociedades, estas ficarão sujeitas ao imposto na forma prevista para o trabalho pessoal de contribuinte, calculado em função de cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviço em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal.
Reside precisamente a propalada inconstitucionalidade da cobrança de alíquotas fixas para o ISSQN nos transcritos parágrafos do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68. Em sua inteireza, os citados dispositivos legais ocasionam, a um só tempo, quatro agressões à ordem constitucional vigente, quais sejam: a) existência de discriminação de contribuintes por critério não razoável e desproporcional, logo inconstitucional, trazendo grave dano ao princípio-garantia da isonomia tributária; b) completa negligência ao princípio da capacidade contributiva, encetado no art. 145, §1º, do texto constitucional e, por fim, c) lesiona o princípio da legalidade estrita diante da deturpação do aspecto quantitativo do tributo em face do aspecto material, forjado no texto constitucional, afastando a incidência do tributo municipal sobre o preço do serviço, aceitando sua cobrança sobre um valor fictício e dissonante do preço da prestação do serviço, ao tempo que permite a cobrança do ISSQN mediante base de cálculo fictamente estabelecida, sem a necessária e efetiva prestação de serviços, existindo verdadeira aberração jurídica em admitir-se a incidência tributária sem a concreção do fato gerador.
Mesmo que a Lei Complementar nº 116/2003 não tenha ab rogado os §§1º e 3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68 e não traga disposição que os repita, isto não implica na subsistência da concessão do aludido favor fiscal aos profissionais autônomos e sociedades destes, hodiernamente, pois, conforme asseverado, os multicitados parágrafos do art. 9º sofrem de graves vícios de inconstitucionalidade, estando em completa desarmonia com a ordem constitucional inaugurada em 05/10/1988.
Passar-se-á agora à demonstração mais detalhada que a tributação do ISSQN mediante a instituição e aplicação de valores fixos em virtude do número de prestadores de serviço cai na vala das inconstitucionalidades.
3.1. EXISTÊNCIA DE DISCRIMINAÇÃO DE CONTRIBUINTES POR CRITÉRIO NÃO RAZOÁVEL E DESPROPORCIONAL, LOGO INCONSTITUCIONAL, TRAZENDO GRAVE DANO AO PRINCÍPIO-GARANTIA DA ISONOMIA TRIBUTÁRIA.
Inicialmente, viu-se que os §§1º e 3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68 estabelecem uma base de cálculo do ISSQN diferenciada para os profissionais autônomos, devendo ser estabelecida por meio de alíquotas fixas ou variáveis em função da natureza do serviço ou de outros fatores pertinentes, bem como para sociedades de profissionais autônomos, desde que prestem apenas serviços subsumidos nos itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92 da lista anexa ao Decreto-Lei nº 406/68, que ficarão sujeitas ao recolhimento do imposto na forma prevista para o trabalho pessoal de contribuinte, calculado em função de cada profissional habilitado, sócio, empregado ou não, que preste serviço em nome da sociedade.
O que se conclui dos textos legais infraconstitucionais em tela é que prevêem diferença para o recolhimento do tributo em função da natureza do serviço, estabelecendo critério de discriminação entre profissionais autônomos que ocupam o mesmo patamar de igualdade. Viu-se ainda que existe diferenciação entre tipos de contribuinte, permitindo-se o recolhimento do ISSQN por alíquotas fixas para sociedades que prestem serviços subsumidos nos itens 1, 4, 8, 25, 52, 88, 89, 90, 91 e 92, ignorando todas as demais, num discrimen completamente desproporcional, isto sem prejuízo da própria diferenciação entre contribuintes autônomos e organizados em sociedade formadas por estes.
Contudo, tem-se que ter em vista que a Constituição Federal de 1988 não acolhe distinção entre contribuintes de ISSQN pela natureza do serviço prestado por si, não permitindo, por conseqüência, a concessão de tratamento tributário mais favorável a alguns contribuintes sem a necessária concessão de paridade de tratamento a outros contribuintes que estejam em situação semelhante, implicando na sua não recepção, pela nova ordem constitucional.
Tem-se que somente ser permitido a alguns profissionais autônomos e sociedades compostas por estes fazerem jus ao tratamento tributário diferenciado, no que tange ao ISSQN, demonstra-se gritantemente inconstitucional diante do princípio da isonomia tributária, enseja a existência de discriminação de contribuintes por critério não razoável e desproporcional, trazendo grave dano ao princípio-garantia da isonomia tributária.
A tributação diferenciada para fins de ISSQN incidente sobre sociedades de profissionais autônomos, existindo distinção ontológica entre sociedades de acordo com a natureza do serviço é da mesma forma inconstitucional, pois se permite que alguns contribuintes recolham o ISSQN por um regime muito menos oneroso, enquanto veda-se este mesmo sistema a outros que ontologicamente não diferem entre si.
Pelo princípio da isonomia tributária, resta vedado a qualquer dos entes públicos instituírem critérios distintivos de contribuintes que se encontrem em situação análoga ou similar, devendo tratá-los de forma igual, aceitando-se diferenças apenas para igualá-los.
Cabe salientar que a atividade (ocupação profissional), não poderá ser um critério de discriminação para garantir a aplicação de alíquotas mais brandas entre os diversos tipos de serviços, uma vez que, enseja um tratamento fiscal desigual, situação vedada pela Constituição Federal de 1988.
Desta forma, aceitar-se por constitucional a diferenciação de sociedades profissionais em virtude da atividade desenvolvida, dando tratamento fiscal mais benéfico a alguns contribuintes, negando tal benefício aos demais, caracteriza-se por incomensurável lesão ao princípio da isonomia tributária, pois trouxe distinção desproporcional.
Prever valores fixos, variáveis de acordo com o número de profissionais, a exemplo do Município do Salvador, conforme a tabela de receita nº II, anexa à Lei nº 4.279/90, para a cobrança do ISSQN, sem considerar o volume de receita auferida por cada profissional por mês, tratando sociedades já estabelecidas e outras iniciantes, da mesma forma, é inconstitucional, por lesionar o princípio da isonomia.
Apesar do quanto exposto até o momento, traz-se julgado que serve para ilustrar o atual estado do entendimento da jurisprudência nacional, entendimento equivocado, diga-se de passagem:
EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA. SOCIEDADE UNIPROFISSIONAL DE ADVOGADOS. ISS. RECOLHIMENTO COM BASE EM VALOR FIXO ANUAL. TRATAMENTO TRIBUTÁRIO DIFERENCIADO PREVISTO NO ART. 9º, §§ 1º E 3º, DO DECRETO-LEI N. 406/68. INAPLICABILIDADE DO ARTIGO 166 DO CÓDIGO TRIBUTÁRIO NACIONAL. EMBARGOS DE DIVERGÊNCIA NÃO-PROVIDOS.
1. O Município do Rio de Janeiro opõe embargos de divergência em face de acórdãos relatados pelo ilustre Ministro Castro Meira proferidos no sentido de ser inaplicável o artigo 166 do CTN às sociedades de advogados em face de sua natureza não-mercantil e da responsabilidade de seus sócios, características que não a diferenciam das demais sociedades que gozam do beneplácito do artigo 9º do DL 406/68. A embargante afirma que esse julgado está divergente do expresso no REsp 835.202/PR, desta relatoria, o qual entende aplicável o artigo 166 do Código Tributário Nacional a todas as sociedades que se enquadram no artigo 9º, § 3º, do DL 406/68, assim entendidas as que, a par de constarem na lista, não têm caráter empresarial, e a responsabilidade dos sócios é pessoal, para fins de deferimento da repetição do indébito atinente ao ISS.
2. A sociedade uni profissional de advogados de natureza civil, qualquer que seja o conteúdo de seu contrato social, goza do tratamento tributário diferenciado previsto no art. 9º, §§ 1º e 3º, do Decreto-Lei n. 406/68 não recolhendo o ISS com base no seu faturamento bruto, mas sim no valor fixo anual calculado de acordo com o número de profissionais que a integra, de maneira que não ocorre o repasse do encargo a terceiros a exigir o cumprimento do disposto no artigo 166 do Código Tributário Nacional nas ações de repetição de indébito da exação em comento.
3. Embargos de divergência não-providos.
(EREsp 724.684/RJ, Rel. MinistroJOSÉ DELGADO, PRIMEIRA SEÇÃO, julgado em 28/05/2008, DJe 16/06/2008)
Com efeito, o julgado em tela serve de perfeito espelho do equívoco do posicionamento de aceitar-se a distinção entre contribuintes pelo tipo de serviço que prestam, sem ser observada a devida e intrínseca proporcionalidade e razoabilidade, existindo verdadeira lesão ao princípio da isonomia tributária, conforme asseverado, pois se subsidia em tratar profissionais que ocupam o mesmo patamar como se estes estivessem em situação econômica diferente, carente de proteção fiscal.
O equívoco deste entendimento reside numa faceta muito simples de ser destrinchada: permite-se que apenas alguns contribuintes sejam contemplados pelo "favor legal" de recolher o ISSQN por valor diferente, no mais das vezes menor, sem sequer analisar se estes mesmos contribuintes contemplados ontologicamente divergem dos demais, que certamente não diferem, ferindo de morte o princípio-garantia constitucional da isonomia tributária.
É certo que distinções podem ser feitas, eis que a lei pode tratar de forma desigual os desiguais, tentando minorar ou anular a diferença existente entre si, buscando uma equidade, mas para que seja aceitável, pelo ordenamento jurídico, o critério de diferenciação, faz-se necessário que o discrimem seja razoável e atinja seu objetivo de acabar com a diferença.
A grande questão é como identificar quem são os iguais e quem são os desiguais, bem como qual o critério que se pode escolher para apaziguar a diferença, especialmente nos casos que o critério não decorre de expressa previsão constitucional. Celso Antonio de Bandeira Mello (1978, p. 54) questiona:
...que espécie de enquadramento veda e que tipo de desigualdade faculta a descriminação de situações e pessoas sem quebra e agressões aos objetivos transfundidos no principio constitucional da isonomia?
O mesmo autor ainda sublinha que o critério de discriminação deverá ter correlação lógica entre o fator de discriminação e a desequiparação pretendida (idem, p. 47-51), registrando que é imperioso que a razão invocada para dessemelhar seja pertinente com os valores resguardados pela Constituição (idem, p. 53-56), a que se acrescentam os princípios constitucionais da proporcionalidade e razoabilidade. Qual desigualdade faculta e qual a desigualdade que obriga a discriminação, tendo em vista que o tratamento diferenciado de situações dessemelhantes pode ser exigido por outros princípios constitucionais, como o principio da capacidade contributiva?
Para o eminente Luciano Amaro (2006, p.136):
Deve ser diferenciado (com isenções ou com incidência tributaria menos gravosa) o tratamento de situações que não revelem capacidade contributiva ou que mereçam um tratamento fiscal ajustado à sua menor capacidade econômica.
Hão de ser tratados, pois, com igualdade aqueles que tiverem igual capacidade contributiva e, portanto, diferentes capacidades de contribuir.
Ademais, o resguardo da igualdade entre contribuintes é "uma garantia do indivíduo e não do Estado" (AMARO, Luciano, 2006, p.136). Não poderíamos deixar de citar os breves ensinamentos de Hugo de Brito Machado, na qual pondera:
Não seria justo, nem isonômico, tributar com o mesmo critério quem presta serviços de caráter pessoal, e uma sociedade que o faz com empresa, utilizando-se, em sua prestação de serviços, do trabalho de terceiros, com intuito de lucro, desenvolvendo típica atividade empresarial (MACHADO, Hugo, 2005, p.238).
Portanto, toda e qualquer pessoa que se enquadre nas hipóteses descritas acima sujeitara aos dispositivos em questão, bem como é vedado ao legislador dar tratamento diverso para situações semelhantes, afinal, "assim nem pode o aplicador, diante da lei discriminar, nem se autoriza o legislador, ao ditar a lei, a fazer discriminação. Visa o principio a garantia do individuo, evitando perseguições e favoritismos" (AMARO, Luciano, 2006, p.135).
Impende destacar que não é constitucional dar-se tratamento tributário mais favorável a algumas espécies de contribuinte em detrimento de outros, como, por exemplo, facultar-se a alguns profissionais autônomos recolher o ISSQN por valores menores e fixos, sem estender a mesma possibilidade aos demais. Qual a diferença entre o serviço prestado por um advogado e um taxidermista? Ambos são profissionais liberais, que assumem os mesmos riscos da atividade econômica, entretanto, apenas o primeiro recebe tratamento tributário mais favorável. Qual a razoabilidade deste critério?
A Constituição Federal de 1998, art. 5º, caput, determina igualdade para todos, conforme transcrevemos abaixo, in verbis:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes.
Aliás, frise-se que no campo tributário, o principio da isonomia é preconizado pelo art. 150, II, da Constituição Federal, a seguir transcrito in verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
II - instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos;
Conclui-se que é viável a existência de diferenças legais entre contribuintes, mas para que o critério de diferenciação seja considerado constitucional, mister que esteja revestido dos atributos da proporcionalidade e razoabilidade, senão cairá na vala da inconstitucionalidade, tornando-se antijurídico, sendo imperioso seu afastamento do ordenamento legal.
3.2. COMPLETA NEGLIGÊNCIA AO PRINCÍPIO DA CAPACIDADE CONTRIBUTIVA, ENCETADO NO ART. 145, §1º, DO TEXTO CONSTITUCIONAL.
Viu-se que os §§1º e 3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68 possibilitam a existência de dois regimes de tributação de ISSQN, quais sejam: o regime geral, cuja funcionalidade dá-se pela aplicação duma alíquota, variável entre 2% e 5%, sobre uma base de cálculo, esta sendo o preço cobrado pelo serviço; e o regime especial, operando-se pelo recolhimento do imposto em valores certos e pré-determinados, ignorando a base de cálculo prevista pela Constituição Federal – a receita auferida pela prestação do serviço – e a alíquota entre 2% e 5% – não se aplicando uma porcentagem sobre a base de cálculo para encontrar o valor devido a título de ISSQN.
Claramente percebe-se que o regime geral permite uma tributação em proporção ao que um determinado contribuinte aufere em decorrência da prestação de serviços, enquanto o regime especial não permite a tributação proporcional, eis que sempre será devido um valor, independentemente da receita auferida pelo sujeito passivo.
Neste ponto reside a inconstitucionalidade do regime especial, eis que não permite a gradação do tributo de acordo com a capacidade econômica do contribuinte, ferindo de morte o art. 145, §1º, da Constituição Federal de 1988, existindo, pelo contrário, a dívida em valor fictamente fixado pelo ente municipal, ignorando as características fáticas daquele.
Preceitua Marcelo Caron Baptista (2005, p. 640), na qual dispõe com maestria:
Não concebemos a possibilidade de um tributo carecedor de base de cálculo, muito menos um imposto que deve ser instituído com estrito respeito à regra da mais alta relevância, o princípio da capacidade contributiva, expresso no § 1º, do artigo 145, da Constituição Federal, valendo relembrar: "Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultando à administração tributaria, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte."
Resume Jose Eduardo Soares de Melo (2001, p. 132):
A exigência do ISS segundo um valor previamente estipulado não guarda consonância e adequação à estrutura das normas de incidência, uma vez que a base de cálculo do imposto está fundamentada, decorre e se condiciona ao principio da capacidade contributiva, atrelado aos princípios da isonomia e da vedação de confisco.
A existência de dois regimes de recolhimento do ISSQN atinge profundamente o princípio da gradação do imposto de acordo com a capacidade contributiva do sujeito passivo, eis que permite a tributação de contribuintes que possuem alta capacidade contributiva em valores extremamente baixos, senão irrisórios, recolhendo montante dissonante da receita auferida num dado intervalo de tempo, ao tempo que permite que sujeitos passivos com restrita capacidade contributiva recolhendo valores incompatíveis com a receita auferida, sendo privilégio para os primeiros e gravame para os últimos, incompatibilizando sua harmônica convivência diante do sistema jurídico hodierno.
Portanto, conclui-se que o "ISSQN fixo" não foi recepcionado pela Constituição Federal de 1988, tendo em vista a lesão ao princípio da capacidade contributiva.
3.3. DETURPAÇÃO DOS ASPECTOS MATERIAL E QUANTITATIVO DO ISSQN
Não obstante as inconstitucionalidades carreadas nos itens anteriores, o regime de tributação do ISSQN previsto nos §§1º e 3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, traz verdadeira modificação do aspecto material constitucional do imposto – que seria "prestação de serviço" – por uma lei infraconstitucional, permitindo que o ISSQN passe a ser imposto do "pague um valor fixo por mês" e não sobre a prestação de serviços.
Em verdade, não se estaria a cobrar o ISSQN sobre a receita auferida pela prestação de serviços, mas sim sobre uma ficção legal, ou seja, sobre qualquer valor, dando-lhe feição distinta daquela que deveria ter em face do aspecto material constitucionalmente previsto – prestação do serviço, sem prejuízo de fundar-se em ficção legal instituída pelo Fisco em relação à cobrança do ISSQN de forma fixa, ferindo de morte o princípio da legalidade estrita, inexistindo correlação lógica entre os aspectos material e quantitativo da hipótese de incidência do tributo.
Aliás, neste ponto, importa a doutrina de Marcelo Caron Baptista (2005, p. 636), para quem:
"Veja-se que quando a legislação infraconstitucional determinou que o '...impôsto será calculado, por meio de alíquotas fixas ou variáveis, em função da natureza do serviço e outros fatôres pertinentes, não compreendida nestes a renda proveniente da remuneração do próprio trabalho' (sic) – artigo 72, I, CTN; e artigo 9º, §1º, do Decreto-lei nº 406/68 – impediu expressamente que o valor da remuneração pela prestação do serviço fosse adotada como base de cálculo.
Ora, levando-se em conta que, conforme também já foi demonstrado, o preço da prestação do serviço, por força constitucional, era, e é, o único referencial que pode ser adotado como base de cálculo do ISS, a exigência jamais correspondeu a um imposto sobre a prestação de serviço. Não havia adequação entre a materialidade da hipótese de incidência e a base de cálculo, até porque esta não existia".
O critério de discriminação utilizado pelo art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, para possibilitar o recolhimento do ISSQN por valor fixo anual ou mensal, valor não correspondente à receita auferida, é puramente arbitrário e carece de substrato jurídico, variando ora ao sabor das alterações legais, ora em função da "natureza" do serviço, ora diante da espécie de contribuinte, aspecto este facilmente aferível do julgamento adiante transcrito, quando o excelso tribunal assevera que "simplesmente disciplinam base de cálculo de serviços distintos":
CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISS. SOCIEDADE PRESTADORA DE SERVIÇOS PROFISSIONAIS: BASE DE CALCULO. D. L. 406, DE 1968, ART. 9, §§ 1º E 3º. C.F., ART 150, § 6, REDAÇÃO EC Nº 3, DE 1993.
I – As normas inscritas nos §§1º e 3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, não implicam redução da base de cálculo do ISS. Elas simplesmente disciplinam a base de cálculo de serviços distintos, no rumo do estabelecido no caput do art. 9º. Inocorrência de revogação pelo art 150, §6, da C.F., com redação da EC nº 3, de 1993.
II – Recepção, pela CF/88, sem alteração, da EC nº 3, de 1993, (CF, art 150, §6,), do art. 9º, §§ 1º e 3 º, do DL. 406/68.
III – R.E não conhecido.
(RE 220323/MG - MINAS GERAIS, RECURSO EXTRAORDINÁRIO, Relator (a): Min. CARLOS VELLOSO, Julgamento: 26/05/1999, Órgão Julgador: Tribunal Pleno, Publicado no DJ de 18-05-2001, PP-00449)
No julgado transcrito, o Supremo Tribunal Federal entendeu que as normas inscritas nos §§1º e 3º do Decreto-Lei nº 406/68 não implicam em redução da base de cálculo do ISSQN, mas simplesmente disciplinam como será à base de cálculo dos serviços prestados por profissionais autônomos e sociedades equiparadas a estes, data venia, incorrendo em grave equívoco, eis que não seria possível a uma lei infraconstitucional determinar a base de cálculo para o ISSQN de forma diferente da prevista pela Constituição Federal de 1988. Melhor dizendo, a Constituição Federal determina que o ISSQN incidirá sobre o preço do serviço, ou seja, a receita auferida pelo prestador do serviço, não permitindo a existência de espécies de serviço com valor reduzido ou previamente fixado em lei, pois implicaria em serviços com base de cálculo que não o preço do serviço, mas um valor qualquer, enquanto outros serviços permaneceriam com a base de cálculo ordinária.
Ademais, entender como ainda vigente no sistema jurídico pátrio o art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, recepcionando-o como norma a regular "base de cálculo de serviços distintos", além da inconstitucionalidade diante do principio da isonomia tributária, levando-nos a valorar serviços dos contribuintes, como se uns fossem mais importantes que outros, conforme visto no item anterior. Acarreta ainda, outra agressão ao texto maior, qual seja o completo abandono da legalidade estrita, eis que deturpa o aspecto quantitativo da hipótese de incidência constitucionalmente prevista para o ISSQN – o preço do serviço prestado, permitindo existência para apenas alguns serviços em completa discordância com o aspecto material – prestação de serviço.
Conforme já aludido anteriormente, de acordo com o art. 1º da Lei Complementar nº116/03, somente a efetiva prestação dos serviços constantes da sua lista de serviços fica sujeita a incidência do Imposto Sobre Serviço de Qualquer Natureza (ISSQN). Repete-se, esta é a previsão do fato gerador do imposto de acordo com o mandamento constitucional.
Para que ocorra o fato gerador da obrigação tributaria, faz-se necessário, então, a concreta prestação do serviço pelo profissional, ensejando a incidência da exação fiscal em comento. Entretanto, cabe salientar que não caracteriza a incidência do ISSQN um sujeito passivo ser somente um potencial prestador de serviço.
Os Municípios partem do pressuposto que a inscrição do profissional nos cadastros municipais como prestador do serviço, já ensejaria de pronto a incidência do ISSQN, mesmo que o prestador não tenha auferido receita alguma em determinado período ou pior, sequer tenha prestado qualquer serviço tributável, tendo em vista que não estava a exercer a profissão, bem como a prestar serviços.Ainda assim o ISSQN é lançado de oficio pelo fisco, efetuando a cobrança do valor fixo instituído em lei.
Na lição de Marcelo Caron Baptista (2005, p. 636):
"Alíquotas fixas ou variáveis somente se prestam a integrar o critério quantitativo do conseqüente normativo quando presente a base de cálculo, eis que, sem ela, não há como conjugá-las com a expressão econômica do fato jurídico tributário. Mesmo que se pudesse entender que a legislação infraconstitucional pudesse estabelecer como base de cálculo algo relacionado à '...função da natureza do serviço e outros fatôres pertinentes...' (sic), excetuado o valor da remuneração, o que afastaria a alegação de ausência de base de cálculo, o fato é que, ainda assim, independentemente do referencial eleito, não haveria compatibilidade com o comando constitucional que autorizava a instituição do imposto. Qualquer base de cálculo diversa da remuneração da prestação do serviço que fosse submetida ao teste de comparação com a materialidade da hipótese de incidência – prestar serviços – padeceria de incompatibilidade insanável."
Ora, como pode ocorrer a incidência do ISSQN, tendo em vista que não ocorreu o fato gerador da obrigação tributaria? É explicita a lesão ao principio da legalidade estrita, quando a cobrança indevida pelo Fisco é efetivada, incorrendo em uma afronta ao profissional que não prestou serviços.
Em verdade, os Municípios estipulam fatos geradores fictícios para o ISSQN, prevendo de maneira artificiosa que estes fatos que ensejam a criação da obrigação tributária efetivamente ocorrerão, presumindo que todo prestador de serviço prestará serviços em todos os meses do ano, o que é flagrantemente desrespeitoso ao ordenamento constitucional, máxime quando a única previsão constitucional de presunção de fato gerador restringe-se ao ICMS, mesmo assim restrito ao regime de substituição tributária, na forma do art. 150, §7º, da Constituição Federal de 1988.
Na mesma linha preceitua Luciano Amaro (2006, p. 112), trazendo a lição que:
Em suma, a legalidade tributária não se conforma com a mera autorização de lei para cobrança de tributos; requer-se que a própria lei defina todos os aspectos pertinentes ao fato gerador, necessários à quantificação do tributo devido em cada situação concreta que venha a espelhar a situação hipotética descrita na lei.
Portanto, a inconstitucionalidade do regime de cobrança de alíquotas fixas para o ISSQN, previsto nos parágrafos 1º e 3º do art. 9º do Decreto-Lei nº 406/68, reside na lesão ao princípio da legalidade estrita, configurada na deturpação do aspecto quantitativo do tributo em face do aspecto material, ambos determinados pelo texto constitucional, afastando a incidência do tributo municipal sobre o preço do serviço, determinando sua cobrança sobre um valor fictício e dissonante do preço da prestação do serviço, ao tempo que permite a cobrança do ISSQN mediante base de cálculo fictamente estabelecida, sem a necessária e efetiva prestação de serviços, existindo verdadeira aberração jurídica em admitir-se a incidência tributária sem a concreção do fato gerador.
4. CONCLUSÃO
No presente trabalho, buscou-se expor a premente inconstitucionalidade da instituição de dois regimes de recolhimento do ISSQN, com a devida explanação das lesões concretizadas a princípios constitucionais tributários fundamentais, bem como a análise da legislação infraconstitucional – Decreto-Lei nº 406/68 e Lei Complementar nº 116/03, especialmente no que tange à tributação fixa para as sociedades prestadoras de serviços profissionais.
Inicialmente, no que tange a inconstitucionalidade da instituição de alíquotas diferenciadas e fixas para cobrança do ISSQN, demonstramos tal existência afronta os princípios constitucionais tributários da isonomia tributária, capacidade contributiva e legalidade tributária estrita. A lesão que atinge o princípio da isonomia tributária dá-se pela criação de discriminação de contribuintes por critério não razoável e desproporcional, trazendo grave dano ao princípio-garantia em comento, o que acarreta um ataque ao princípio da capacidade contributiva, encetado no art. 145, §1º, do texto constitucional, eis que ao ser criada a diferença desproporcional e não razoável, olvida-se por completo que a incidência dos impostos deverá obedecer à capacidade de contribuir de cada sujeito passivo, recaindo sobre estes de forma proporcional a esta capacidade.
Não obstante, a instituição de alíquotas diferenciadas e fixas para cobrança do ISSQN acarreta concomitantemente em deturpação do princípio da legalidade estrita, manifestado pela alteração do aspecto quantitativo do tributo em face do aspecto material, forjado no texto constitucional, afastando a incidência do tributo municipal sobre o preço do serviço, aceitando sua cobrança sobre um valor fictício e dissonante do preço da prestação do serviço, ao tempo em que permite a cobrança do ISSQN sem a efetiva prestação de serviços, existindo verdadeira aberração jurídica em admitir-se a incidência tributária sem a concreção do fato gerador.
Apesar dos tribunais disporem a favor da recepção do art. 9 e §§ 1º e 3º do Decreto-Lei nº 406/68 pela Corte Maior, defendemos a tese da não recepção do dispositivo legal em comento, tendo em vista os já mencionados motivos acima que, repete-se, afrontam aos princípios constitucionais tributários, sem prejuízo de não ter trazido, a Constituição Federal de 1988, distinção entre contribuintes de ISSQN pela sua natureza, não permitindo assim a concessão de tratamento tributário mais favorável a alguns, em detrimento de outros.
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[1] Graduanda em Direito pela UNIJORGE.