A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2°, INCISO I, DA LEI N° 11.101/2005 (NOVA LEI DE FALÊNCIA) FRENTE AO ART. 173 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 A (im)possibilidade da recuperação judicial das empresas públicas

Por Tájara Marina Leite Guimarães | 22/12/2020 | Direito

A (IN)CONSTITUCIONALIDADE DO ART. 2º, INCISO I, DA LEI Nº 11.101/2005 (NOVA LEI DE FALÊNCIA) FRENTE AO ART. 173 DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A (im)possibilidade da recuperação judicial das empresas públicas.

 

 

Fernando José Andrade Saldanha*

Tájara Marina Leite Guimarães*

 

Sumário: Introdução. 1. Empresa Pública e Sociedade de Economia Mista. 2. Sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas. 3. Exame de constitucionalidade. 4 Considerações finais. Referências.     

 

 

Resumo.

Com o presente trabalho pretende-se examinar a constitucionalidade da não incidência da recuperação judicial às empresas públicas e sociedades de economia mista, como prevê o art. 2º, I, da Lei 11.101/05, frente ao preceito constitucional constante do art. 173 da Constituição Federal Brasileira.  

 

Introdução. 

Com o advento da nova Lei de Recuperação Judicial e Falência (Lei nº 11.101/2005) houve uma profunda modificação da disciplina jurídica concernente a recuperação e falência de empresas, alterando-se todo o fundamento e balisas, visto que a legislação revogada não mais correspondia e atendia aos anseios de uma nova realidade social

É claro que a sociedade de hoje não é a mesma de 60 anos atrás quando da vigência do diploma anterior devendo, portanto, o direito acompanhar essas mudanças sob pena de perda de eficácia. A Constituição Brasileira reconhece essas mudanças ao positivar valores outros que não os dantes que preponderavam na sociedade do começo do século XX. A sociedade contemporânea é muito mais dinâmica, volátil, imediatista isso tudo devido as grandes inovações tecnológicas, cientificas e cultural trazendo às relações intersubjetivas um distanciamento de relações afetivas e uma proximidade de relações de produção. Há, atualmente, uma crise de paradigmas que a ciência jurídica tem que estar atenta de modo a evitar que o ordenamento jurídico não venha regular, disciplinar uma sociedade que não existe mais.

É nesse contexto que se exigiu uma nova legislação de falência e recuperação judicial dando origem a Lei 11.101/2005 revelando-se bem mais coerente com as necessidades da comunidade. A partir de uma nova óptica, a nova lei valorou mais a preservação da estrutura produtiva e do trabalho, assim como à liquidação dos passivos das atividades no mercado. Todavia, o texto legal enfim promulgado, deixou alguns pontos nebulosos trazendo ao campo doutrinário e jurisprudencial algumas questões controvertidas a serem debatidas em busca de um entendimento uniforme, uma destas questões examinaremos neste trabalho que concerne a constitucionalidade ou não do art. 2º, inciso I do novel diploma falimentar em face o art. 173 da Constituição Federal.   

O presente trabalho aborda o tema, primeiramente, conceituando e explicitando a finalidade das empresas públicas e sociedades de economia mista, posteriormente, tecer-se-á comentários a cerca do regime jurídico dessas empresas, e, por fim, examinaremos a constitucionalidade do dispositivo em questão constante da lei 11.101/05.         

 

1. Empresa Pública e Sociedade de Economia Mista. 

O Estado com escopo de atuar, satisfatoriamente, na prestação de serviços e na exploração de atividade econômica, descentraliza sua administração atribuindo a alguns entes de regime jurídico misto (privado + público) a legitimidade para exercer estas atividades aproveitando-se da eficiência do modelo empresarial privado.

Ao conceituar Empresa Pública, o mestre administrativista, Hely Lopes Meirelles leciona:

Empresas públicas são pessoas jurídicas de Direito Privado, instituídas pelo Poder Público mediante autorização de lei especifica, com capital exclusivamente público, para a prestação de serviço público ou a realização de atividade econômica de relevante interesse coletivo, nos moldes da iniciativa particular, podendo revestir qualquer forma e organização empresarial.    

               

A empresa pública situa-se na intersecção entre o Poder Público e o setor da iniciativa privada, por ter patrimônio, direção e fins estatais sujeita-se ao controle administrativo e político do Estado. Todavia não gozam de privilégios administrativos, tributários ou processuais, salvo se a lei conceder.

Quanto às sociedades de economia mista, estas, são conceituadas, segundo Hely Lopes Meirelles, como:

As sociedades de economia mista são pessoas jurídicas de Direito Privado, com participação do Poder Público e de particulares no seu capital e na sua administração, para a realização de atividade econômica ou serviço público outorgado pelo Estado. Revestem a forma das empresas particulares, admitem lucro e regem-se pelas normas das sociedades mercantis, com as adaptações impostas pelas leis que autorizarem sua criação e funcionamento. São entidades que integram a Administração indireta do Estado, como instrumentos de descentralização de seus serviços.                 

 

Embora reguladas pelo direito privado as sociedades de economia mista são definidas devido a participação ativa do Poder Público na vida e realização da empresa. Criada por lei especifica, estas entidades da administração indireta tem seu estatuto nos moldes societários adquirindo personalidade a partir do registro na junta comercial.     

As sociedades de economia mista, assim como as empresas públicas, podem atuar tanto na prestação de serviços, quanto na exploração de atividade econômica, quanto a sua atuação leciona o festejado administrativista, anteriormente, citado:

Quando for serviço público, sua liberdade operacional é ampla e irrestrita; quando for atividade econômica, fica limitada aos preceitos constitucionais da subsidiariedade e da não competitividade com a iniciativa privada, sujeitando-se às normas aplicáveis às empresas congêneres particulares e ao regime tributário comum, pois é dever do Estado dar preferência, estimulo e apoio à iniciativa privada para o desempenho da atividade econômica (CF, art. 173 e §§)         

 

Estes agentes do Estado não possuem qualquer privilégio, salvo quando lei que os instituiu conceder prerrogativas administrativas, tributárias, ou processuais.                         

   

2. Sujeição ao regime jurídico próprio das empresas privadas. 

As sociedades de economia mista, assim como, as empresas públicas são meros entes de atuação estatal com função de auxiliar o Estado no seu mister de promover o bem comum, sendo, este,  o fim para a qual foram instituídas. Os entes estatais, assim como, o próprio Estado tem sua atuação sempre voltada à realização de interesses da sociedade, para tanto lançam mão de recursos adquiridos junto à comunidade. As entidades estatais são criadas de forma a garantir que os assuntos de interesse público sejam conduzidos de maneira satisfatória.

Estas entidades, ainda, quando modeladas sob a forma privada, não se confundem com as demais pessoas de direito privado. A razão de existir, os fins em vista dos quais são criadas, os recursos econômicos que manejam, os interesses a que servem são manifestamente distintos. Há empresas públicas e sociedades de economia mista prestadoras de serviço e exploradoras de atividade econômica, sendo que o regime no caso das prestadoras é, predominantemente, publicista devido atuarem em seara de competência exclusiva do Estado, já no caso das exploradoras de atividade econômica por atuarem em campo exclusivo de particular tem um regime, predominantemente, privado.

Por serem instituídas para atuar na iniciativa privada, as empresas públicas e sociedades de economia mista, possuem regime jurídico de direito privado, sendo que derrogações a esse regime somente são admissíveis se implícita ou explicitamente estabelecidas pela Constituição ou por lei ordinária quando a Carta Magna admitir essa possibilidade. Segundo, Maria Sylvia Zanella Di Pietro: “embora as empresas públicas e sociedades de economia mista tenham natureza jurídica de direito privado, o regime jurídico é híbrido, porque o direito privado é parcialmente derrogado pelo direito público.” Sobre o regime jurídico destes entes do Estado, Celso Antônio Bandeira de Mello leciona:

O regime jurídico das sociedades mistas e empresas públicas, por decisão constitucional obrigatória para todo o País, não é o mesmo regime aplicável a empresas privadas, e nem sempre é idêntico ao destas no que concerne às relações com terceiros, na medida em que, com objetivos de melhor controlá-las, a Lei Maior impôs-lhes procedimentos e contenções (que refluem sobre a liberdade de seus relacionamentos; como o concurso público para admissão de pessoal e a licitação pública) inexistentes para a generalidade das pessoas de direito privado.

        

E complementa dizendo:

De toda sorte, o fato é que a personalidade jurídica de direito privado conferida a sociedades de economia mista ou empresas públicas, sejam elas prestadoras de serviço público ou exploradoras de atividade econômica, não significa, nem poderia significar, que, por tal circunstância, desgarrem da órbita pública ou que, comparativamente com as pessoas jurídicas de direito público, seja menor o nível de seus comprometimentos com objetivos que transcendem interesses privados.

 

Então, embora as empresas públicas e sociedades de economia mista estejam disciplinadas pelo direito privado, concernente às suas relações com terceiros, não são regidas exclusivamente pelos preceitos atinentes a Constituição do homem comum, visto que estão, também, sob a incidência dos princípios e normas de direito público.

 

3. Exame de constitucionalidade.

A recuperação judicial é um instituto novo que adentra a ordem jurídica mediante a vigência da Lei 11.101/05, este, substitui a concordata trazendo ao campo da atividade empresarial novos fundamentos, novos valores, consequentemente, nova perspectiva do direito falimentar. Por haver um liame lógico e conseqüêncial entre a recuperação e a falência do empresário o exame de constitucionalidade realizado antes da Lei 11.101/05, quanto após a sua vigência é similar para ambos os institutos, no que concerne as empresas públicas e sociedades de economia mista.

Antes da Lei 10.303/01 que revogou o art. 242 da lei das Sociedades Anônimas somente as empresas públicas poderiam falir, enquanto as sociedades de economia mista não, o que gerava uma flagrante inconstitucionalidade por ofender o princípio da isonomia. Desde então, ficou entendido que esses dois entes da administração indireta do Estado poderiam falir.

A doutrina divergia quanto à possibilidade de falência das empresas públicas ou sociedades de economia mista que prestavam serviço público. Alguns (Hely Lopes Meirelles, Eros Roberto Grau) entendiam que em razão do princípio da continuidade do serviço público as prestadoras deste serviço não poderiam falir e, ainda, afirmavam que, somente, as estatais exploradoras de atividade econômica estavam sujeitas ao regime do art. 173 da CF, portanto, passíveis de falência. De outro lado, a quem afirma-se que “as prestadoras de serviços públicos organizadas sob as formas de empresa pública ou sociedade de economia mista, também sofrerão a incidência da lei falimentar, devendo observar que nestes casos o Poder Público responderá por todas as obrigações subsidiárias. Entende-se, porém, que os bens de tais entidades que estiverem afetados, são inalienáveis.” 

Com o advento da Lei 11.101/05, o legislador posicionou-se, como constata-se do texto do art. 2º, I, que dispõe: “Esta lei não se aplica a: I- empresa pública e sociedade de economia mista”, pela exclusão da incidência deste diploma legal às empresas públicas e sociedades de economia mista. Ao pronunciar-se sobre o tema o professor Dirley da Cunha Jr esclarece:

O art. 2º, inciso I, da Lei 11.101/05 deve ser interpretado conforme o art. 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal, sob pena de ser considerado inconstitucional. Com efeito, em face do principio hermenêutico da interpretação conforme a Constituição, o dispositivo em tela só pode ser aplicado às empresas estatais quando prestadoras de serviço público, jamais quando exploradoras de atividade econômica, tendo em vista explicito comando constitucional determinando a sujeição destas empresas, quando do desempenho de atividade tipicamente econômica, ao regime jurídico próprio das empresas privadas, inclusive quanto aos direitos e obrigações civis e comerciais.                   

                                

Sendo passíveis tais entidades da incidência das regras atinentes à falência, propriamente dita, também se lhes estenderiam os benefícios da Recuperação Judicial ou Extrajudicial previstas na nova lei de falência e recuperação judicial. Todavia, deve-se ressaltar a necessidade em se conciliar o beneficio da recuperação judicial com os princípios da moralidade e eficiência administrativas.       

 

4. Considerações finais.

Ante todo o exposto, entende-se que a norma constitucional extraída do texto normativo correspondente ao art. 173, § 1º, inciso II, da Constituição Federal incide àquelas empresas públicas e sociedades de economia mista que atuem no campo privado através da exploração de atividade econômica, visto que o Estado nestas situações atua no mercado como empresário na busca pelo aumento de seus recursos de capital. Portanto, neste caso, exploração de atividade econômica, as empresas públicas e sociedades de economia mista estão sujeitas ao regime de falência e recuperação empresarial nos moldes da Lei 11.101/05.  

    

 

 

 

 

Referências.

 

DA CUNHA JÚNIOR, Dirley. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. Salvador: JusPODIVM, 2007

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 18. ed. São Paulo: Atlas, 2005

 

GRAU, Eros. A ordem econômica na Constituição de 1988: interpretação e crítica. 11. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.

 

MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 33. ed. São Paulo: Malheiros.  2007

 

MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Sociedades Mistas, Empresas Públicas e o Regime de Direito Publico. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ - Centro de Atualização Jurídica, nº. 13, abril-maio, 2002. Disponível na Internet: . Acesso em: 02 de Novembro de 2007.     

 

SILVA, Ronny Carvalho da. A Lei de Recuperação de Empresas e sua incidência sobre as estatais: questão controvertida. Disponível em: . Acesso em: 03 nov. 2007.

 

 

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