A IMPRENSA E A CRISE DE VALORES
Por maria angela mirault | 13/04/2011 | Sociedade"A imprensa e a crise cívico-ético-moral" foi o tema determinado para uma palestra em um curso de pós-graduação. O título subjaz embutidas, pelo menos, duas premissas: a de que vivemos uma crise de valores, e, a de que a imprensa poderia ser responsabilizada por isso.
Expressar, difundir, intercambiar idéias sempre foi uma necessidade humana, até para a sobrevivência da própria espécie. A liberdade de expressão é um direito preceituado pela Declaração Universal do Direito do Homem, desde 1948. A Constituição Brasileira de 1988, em seu artigo 5o. determina ser " livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença" (até para o deputado federal Bolsonaro, como se vê). Esses princípios atribuem à imprensa o papel e o dever social de intermediar o fluxo das mensagens informacionais para que, livremente, possa o homem formar o seu juízo de valor, diante dos fatos.
A imprensa ? palavra cujo significado vem de "prensa móvel" - surgiu há muitos milênios , como um artefato para suprir a necessidade humana de informação. O estabelecimento de uma função social à imprensa deu-se a partir de três grandes movimentos revolucionários e paradigmáticos: o produzido na Alemanha por volta de 1495, com a descoberta de Gutemberg, subsidiando a Reforma Luterana, ao disponibilizar e popularizar a Bíblia; no século XVIII, durante a Revolução Industrial, e, tendo, de fato, seu alvará libertário, por ocasião da Revolução Francesa (1879), fazendo emergir uma imprensa revolucionária e opinativa, cumpridora do seu papel social junto à burguesia, naquele momento.
O século passado viu surgir uma nova e potente diversificação dos canais informacionais trazidos pelo rádio e pela televisão. Em atendimento a um nascente mercado consumidor, a propaganda e o marketing passaram a influir, ideológica e economicamente, nos aparatos midiáticos, inaugurando uma cultura (e um consumo) de massa, na qual consumo e consumidor tornaram-se alvos de suas mensagens. Ao transformar cidadãos em consumidores, a cultura de massa inaugura, também, o distanciamento da imprensa com os princípios que lhe deram origem e marcaram sua trajetória.
O advento das novas tecnologias da comunicação assinalaram nova revolução, ao oferecer - por intermédio das mídias digitais e todo seu aparato, aceleradamente, inovador e renovador - ao, antes, receptor passivo, novas perspectivas de compartilhamento e gestão da informação. Atualmente, vivemos uma revolução mais radical, irreversível e paradigmática, ainda, trazida, principalmente, pela potencialidade quase infinita do uso ? para o bem e para o mau - da internet.
Então, como poderíamos imputar (somente) à imprensa a crise de valores da sociedade contemporânea? Em princípio, pode-se significar crise como momento de ruptura do status quo vigente para o estabelecimento de novos paradigmas. Desse modo, a crise de valores instala-se no âmbito das normas, procedimentos morais e práticas de uma sociedade. A crise, pois, nunca será Ética, pois é do âmbito da moral.
É fato que a imprensa, dos tempos atuais, a mídia em geral - utilizando-se das prerrogativas universais e constitucionais de liberdade de expressão, submetida que está à força do capital, da propaganda e do marketing - deixa lacunas (morais) no cumprimento do seu papel social. A nefasta força mercadológica da propaganda (mais do que a publicidade), infelizmente, extrapolou as páginas dos classificados, invadiu as páginas e telas midiáticas, e, mesmo o espaço urbano, ocupando o lugar da notícia. Mas, mesmo com esse desvirtuamento, não se pode imputar à imprensa ? que, de fato, de livre expressão nada tem - a responsabilidade pela crise de valores porque passa nossa sociedade. Grande parte dessa responsabilidade tem sua raiz no desvirtuamento da Política, principalmente, no que diz respeito às políticas públicas em todas as esferas de governo, no aporte de recursos financeiros e orçamentários, na priorização de programas governamentais relacionados ao direito, à saúde e à educação. A mídia não cria, não inventa, não abduz, simplesmente, traduz, reflete, divulga desejos e práticas, antes, adotadas e circulantes no espaço da cultura. Desse modo, a crise moral e cívica que se instala na sociedade contemporânea vem, sobretudo, dela própria. De fato, uma imprensa, realmente, livre auxiliaria muito à formação de um povo conduzido ao processo permanente de educação. A imprensa responsável por sua função social poderia, sim, ajudar a promover nova revolução; a revolução da consciência crítica, do juízo de valor, do discernimento e do critério sobre o que deve, ou não, vigorar como princípio ético. Não havendo essa reflexão, o colonialismo, o consumismo e o escravismo continuarão marcando com ferro e fogo nossa pele, refletidos nas estéticas, mas, nem sempre éticas, peças publicitárias que, ao nos propagandear, retratam, sem dó nem piedade, nossa coisificação, divulgados e vulgarizados, tal como somos, por uma imprensa que não quer (talvez nem possa mais) assumir de fato o seu papel social de atender a carência de informação e um direito de expressão, essencialmente humano.
Maria Ângela Coelho Mirault ? Doutora e Mestre em Comunicação e Semiótica pela PUC de São Paulo
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