A impossibilidade da autonomia pericial no âmbito das policias
Por Leonardo de Oliveira Santana | 03/11/2014 | DireitoIntrodução
O perito segundo o Código de Processo Penal detém as mesmas causas de suspeição do juízes. Nas causas de suspeição de juiz tenta-se evitar que o magistrado tenha algum grau de proximidade com uma das partes que possa influenciar sua decisão.
A intenção da suspeição para o perito é semelhante a de juiz, mas surpreendentemente o perito oficial, normalmente, faz parte do órgão policial, este inquisitor por natureza.
Pode alguém que em tese é auxiliar da justiça ter seu salário pago, ter suas férias definidas, ter seu trabalho avaliado, sofrer ações correcionais, de um órgão que subsidia a acusação? Qual o grau de isenção desses peritos oficiais?
- 1. Sobre o Perito Oficial
O artigo 159 do CPP afirma:“ O exame de corpo de delito e outras perícias serão realizados por perito oficial, portador de diploma de curso superior”. Portanto, as perícias de natureza criminal devem ser realizadas por Peritos Oficiais. Mas o parágrafo primeiro do mesmo artigo prevê em casos excepcionais a realização de perícias por outras pessoas. Dessa forma pode-se afirmar que nem todas as perícias são realizadas por Peritos Oficiais.
O Perito Oficial é cargo da administração pública, conforme estabelecido no artigo 5º da lei 12.030/2009. No artigo 2º dessa mesma lei se verifica que: “No exercício da atividade de perícia oficial de natureza criminal, é assegurado autonomia técnica, científica e funcional, exigido concurso público, com formação acadêmica específica, para o provimento do cargo de perito oficial.”(grifos nossos).
Portanto o Perito Oficial de natureza criminal detêm autonomia técnica, científica e funcional. A regulamentação dessa autonomia ainda não ocorreu o que, na prática, tornou esse artigo letra morta. O importante é se destacar que essa autonomia só é garantida no caso de exercício da atividade de perícia. Sendo assim, subentende-se que os Peritos Oficiais podem realizar outros trabalhos que não o de Perícia.
- 2. Da Autonomia do Perito
O Perito é um especialista que irá emitir uma opinião especializada, técnica sobre determinado aspecto que se deseja apurar. Para emitir uma opinião a pessoas leigas sobre o assunto, o mínimo que se pode exigir do perito é que ele realize seu mister pautado apenas pelo conhecimento técnico, sem nenhum tipo de influência externa que o conduza a concluir de forma que não seja a mais independente possível.
No âmbito criminal, há duas espécies de perito: o perito oficial do caput do artigo 159 do CPP e o denominado perito ad-hoc, previsto no parágrafo primeiro do mesmo artigo 159 do CPP. Mas esses dois tipos devem respeitar os artigos 275 e seguintes do CPP, que versam sobre os Peritos. Importante notar o que artigo 280 do mesmo CPC estende, no que for aplicável, aos peritos as suspeições aplicáveis aos juízes.
Ao fazer essa extensão aos peritos, se entende que o código determinou que esses devem ter independência e autonomia equivalentes aos juízes, para que as opiniões trabalhos técnicos não sejam maculados pelo manto da suspeita.
Esse entendimento ficou cristalino no artigo 2º da lei 12.030/2009. Ainda que não haja regulamentação, a referida norma é auto-aplicável, pois um perito sem independência, sem autonomia, seria um juiz suspeito. Como suspeição é uma exigência negativa para o Perito (artigo 280,CPP), o resultado seria a nulidade do laudo por ele produzido. Dessa forma, todo o trabalho do Perito deve ser realizado com autonomia, sob pena de nulidade
- 3. Da Autonomia dos Peritos Oficiais
Ainda hoje, parte das periciais criminais dos estados, assim como a perícia criminal federal encontram-se no âmbito interno das policias. Sendo as policias normalmente dirigidas por delegados, então os peritos são subordinados, nesses casos, direta ou indiretamente a aqueles.
A questão é se tal subordinação administrativa ofende a autonomia. A princípio pode-se afirmar que não há ofensa, pois em tese o delegado, que é chefe da polícia, não está ali exercendo o mister de delegado e sim de administrador chefe de um órgão público. Mas a questão merece uma análise mais atenta.
Primeiro deve-se lembrar que por questões históricas, o sistema processual penal brasileiro, a despeito das inúmeras divergências doutrinárias, é tido como misto (parte inquisitório e parte acusatório). A fase ocorrida no âmbito policial é considerada inquisitória, mas não há como negar que o resultado dessa fase não subsidia apenas a acusação, mas influencia também a decisão judicial.
Mas é unânime que o constituição de 1988 privilegiou um sistema acusatório, separando as figuras de acusador, defensor, juiz e auxiliares da justiça. Em busca de aproximação com o modelo acusatório é que algumas reformas tenderam ora tarifar a prova produzida na polícia, ora aumentar a presença do contraditório.
Um exemplo do primeiro caso é o artigo 155 do CPP, que impede que o juiz julgue com base apenas em provas do inquérito (salvo algumas exceções). A intenção é diminuir a influência dessa fase inquisitorial. Em resumo, alteração ocorrida em 2008, tentou afastar a influência dessas provas porque entende-se que as produzidas sob a égide do inquérito, este presidido por delegado de polícia (segundo a lei 12.830/2013), não possuem o respeito ao contraditório.
As policias produzem resultados sem o manto do contraditório, de maneira inquisitorial e que subsidia uma das partes do processo, no caso a acusação. A questão que naturalmente surge é como um auxiliar da justiça, com autonomia logicamente decorrente do seu mister, consegue realizar sua função com independência dentro de órgão, como visto, não considerado independente nem autônomo.
O artigo 2º da lei 12.030/09, que versa sobre a autônima Pericial, é muito cuidadoso ao garantir a autonomia apenas quando do exercício de funções periciais. O trabalho do perito oficial não é só realizar perícias, ele, como policial que é, pode ser acionado em outros tipos ocorrências policiais não periciais. Da leitura da lei 12.030/09, deve-se entender que quando não realizando pericias, o perito oficial perde sua autonomia. Mas é possível possuir autonomia pela metade? Imaginemos se os juízes fossem vinculados ao executivo, mas tivesse autonomia para efetuar a atividade jurisdicional, será que os juízes julgariam com independências uma ação contra a fazenda pública que paga seu salário? É de se imaginar que um juiz nesse caso seria no mínimo suspeito.
Voltando a realidade da autonomia pericial, os peritos, para realizar os exames, necessitam de viatura para realizar missões, apoio logístico, recursos para exames laboratoriais (quando necessário), recursos para diárias. Todos esses fatores são geridos pelo administrador do órgão que, quase sempre é um delegado que está chefe. Esse delegado, que segundo o código, subsidia a acusação é o mesmo que tem peritos subordinados. É esse mesmo delegado que define quando o perito tira férias, ou desfruta de licença capacitação, ou pior, que define se o perito responde ou não um processo administrativo.
Por mais que de fato haja certo respeito a atividade pericial por parte das autoridades policiais, ainda ocorrem diversos casos de ingerências funcional, assédio moral por resultado favoráveis em exames e outros abusos noticiados, principalmente no âmbito das policias estaduais.
Deste modo, percebe-se a total incompatibilidade entre a subordinação a um órgão inquisitor e a independência pra atividade pericial requisitada pelo CPP ou autonomia prevista na lei 12.030/2009.
- 4. Conclusão
A autonomia não é independência nem soberania, aquela realmente possui menos prerrogativas que as outras duas. Mas ainda assim a autonomia não existe pela metade. Não se pode afirmar que os peritos oficiais no âmbito das policias sejam autônomos porque sua autonomia se restringiu a apenas parte das atividades dos referidos servidores públicos.
Quando fora do exercício de atividades periciais, o perito oficial se subordina a um chefe, direto ou indireto que é um delegado de polícia. Este último tem o poder de influenciar sobremaneira a vida pessoal do perito, de modo que este servidor fica submetido, em tese as vontades daquela autoridade policial.
Não haveria grandes problemas nessa subordinação se esse chefe não fosse um delegado e se o órgão não fosse a polícia. O CPP reservou a polícia um papel inquisitório destinado a subsidiar a uma das partes do processo, no caso a acusação. Não se pode falar que o perito oficial é isento ou autônomo sendo ele subordinado ao órgão policial que é inquisitório.
O trabalho pericial no âmbito polícial está maculado pela suspeição decorrente da subordinação administrativa que, como provado, ofendeu a autonomia.
Essa ausência de autonomia gera suspeição que poderia, em tese, provocar nulidade das provas periciais produzidas por estes peritos oficiais. É passível de questionamento inclusive a natureza jurídica das provas produzidas pelos peritos oficiais.
A solução que urge para solucionar esses problemas seria a imediata separação ou saída dos peritos oficiais de dentro dos órgãos policiais. Dessa forma, esses peritos teriam a autonomia necessária para realizar seu trabalho sem correr o risco de se tornarem suspeito e respeitando princípios definidos no Código Processual Penal.