A importância do ensino de química e seu conhecimento na formação universitária de profissionais da saúde

Por PATRICIA CRISTINA DE SANTANA | 08/03/2017 | Educação

Resumo

O uso da química tem como berço o estudo da medicina, em que a busca pela cura de doenças foi seu principal meio de evolução. Sendo a química um elemento fundamental na medicina moderna, é imprescindível que estudantes de nível superior com formação em áreas da saúde saibam dominá-la. Um fato extremamente comum entre estudantes de cursos de graduação em Farmácia, Biomedicina, Enfermagem, Fisioterapia, Odontologia, Medicina entre outros, é a dificuldade em aprender química. Expressões como “não gosto de química” ou “é uma matéria muito difícil” são frequentes entre graduandos destes cursos. Incertezas sobre a importância e necessidade desta disciplina, como parte do currículo acadêmico, são evidentes. Esta defasagem e fragmentação dos conhecimentos químicos durante o período de graduação, tem como origem a precariedade no ensino dos níveis fundamental e médio da educação básica. Outro importante fator que impossibilita a compreensão da Química são defasagens de disciplinas interligadas a ela. O método de ensino tradicional, a utilização de estrutura precária nos laboratórios e a falta de materiais químicos nas instituições, elevam ainda mais o desinteresse por parte dos estudantes. Fazer uso do método de interdisciplinaridade e multidisciplinaridade para ampliar a absorção do conhecimento é uma prática eficaz na formação superior. As instituições de ensino devem despertar a capacidade de raciocínio e questionamento ao introduzirem novos conhecimentos aos discentes. Estudantes de todo e qualquer ramo das ciências biológicas devem dominar conhecimentos básicos de química que pertençam ao seu meio de conduta profissional. Além disso, conhecer a nomenclatura tanto usual quanto formal das substâncias é uma exigência para aqueles que atuam neste meio. O objetivo deste trabalho é relatar as principais dificuldades enfrentadas durante o ensino de Química para estudantes de áreas da saúde, assim como as causas que impossibilitam os mesmos em sua compreensão.

Palavra-chave: Química; aprendizagem; saúde

1. Introdução

Tendo em vista a importância de conhecimentos químicos para a atuação de profissionais da saúde em suas vivências diárias, este artigo abrangerá as dificuldades enfrentadas para o ensino de Química e sua compreensão. Esta disciplina frequentemente é julgada como desnecessária por graduandos de cursos voltados à saúde. Tais indagações quanto à real necessidade do aprendizado de Química com os estudos de medicina e seus derivados, são justificados claramente pela abrangência histórica e origem da quimiatria. Ciência considerada um dos pilares fundamentadores da química, a quimiatria possuía como precursores os antigos médicos e farmacêuticos. O uso da química tem como berço o estudo da medicina, em que a busca pela cura de doenças foi seu principal meio de evolução. Estudiosos como médicos, farmacêuticos e alquimistas desenvolviam suas práticas químicas em primários laboratórios de pesquisa, com estruturas rudimentares e predominante fuligem devido à utilização de fornos à carvão.

Sendo a química um elemento fundamental na medicina moderna, é imprescindível que estudantes de nível superior com formação em áreas da saúde saibam dominá-la. Contudo, observa-se um claro desconhecimento e inaptidão por grande parte destes profissionais. Esta defasagem e fragmentação dos conhecimentos químicos durante o período de graduação, tem como origem a precariedade no ensino dos níveis fundamental e médio da educação básica. Para a compreensão desta disciplina são necessários conhecimentos matemáticos como álgebra simples, sistema métrico, números exponenciais, análise dimensional; assim como conhecimentos relacionados à leitura e interpretação de texto. Uma vez presente a desestruturação de competências básicas necessárias para a compreensão da teoria e fenômenos científicos, torna-se turbulento o processo de domínio da química.

Fazer uso do método de interdisciplinaridade e multidisciplinaridade para ampliar a absorção do conhecimento é uma prática eficaz na formação superior. As disciplinas poderão ser interligadas de forma a complementar e solidificar os conceitos por elas apresentados. Esta forma de exposição do ensino trará ao aluno uma visão mais realista, permitindo que desenvolva os conhecimentos adquiridos durante o período de graduação em seus desafios profissionais diários. O docente deverá ter como objetivo enfatizar as ligações entre os conteúdos ministrados, em vez de focar apenas na obrigação de transmissão dos mesmos.

O objetivo deste trabalho é relatar as principais dificuldades enfrentadas durante o ensino de Química para estudantes de áreas da saúde, assim como as causas que impossibilitam os mesmos em sua compreensão. O entendimento desta disciplina é fundamental para a atuação em suas diversas áreas, uma vez que estará presente em suas ferramentas de trabalho como fármacos e medicamentos.

2. Aspectos históricos do ensino de química nas universidades

Nos primórdios do século XVIII, a quimiatria, sendo a química destinada ao uso da medicina, predominava entre os estudiosos da ciência antiga. Posteriormente, devido às novas descobertas e avanços dos estudos nas demais áreas de atividades tecnológicas, surge então a química atual. (MAAR, 2004)

A quimiatria era então ensinada nas universidades dos séculos XVII e XVIII por médicos e farmacêuticos. É fato a predominância da interdisciplinaridade e multidisciplinaridade em tempos remotos, assim como descrito por Maar (2004). Não havia distinção entre química pura e medicina, mas sim a miscigenação de ambas ciências. Estudava-se química e botânica, química e farmácia e assim por diante. A química era explorada integralmente com o funcionamento do corpo humano e suas patologias. Até estes séculos, não existiam professores universitários dedicados único e exclusivamente ao estudo da Química. (MAAR, 2004)

De acordo com Maar (2004), neste período as melhores escolas de química eram as farmácias, formando práticos sem a necessidade de estudos avançados ou qualquer tipo de formação acadêmica. O autor ainda afirma que os estudantes egressos no curso de medicina não iniciavam seus estudos diretamente nos centros universitários, mas eram introduzidos aos laboratórios dos grandes químicos como aprendizes. Conforme a evolução destes candidatos, conquistavam então suas vagas nas universidades. Aliás, não haviam melhores lugares para aprender química naquela época do que tais laboratórios experimentais.

Historiadores acreditam que a prática da alquimia na Idade Média ainda não era conhecida. A alquimia era considerada mística por buscar a transmutação de um elemento em outro e criar o elixir da imortalidade. Este último sendo capaz de curar qualquer enfermidade, inclusive a morte. Embora os alquimistas da época nunca terem sido bem-sucedidos em seus experimentos, ainda realizaram importantes descobertas. Uma delas muito comum atualmente, como o uso do banho-maria. Contudo, devido ao misticismo presente em seus estudos, a alquimia sofreu grande reprovação por meio de religiosos que reprimiram duramente suas práticas. A Igreja Católica, dominadora da supremacia religiosa e grande influente nas decisões políticas, condenava os métodos ritualísticos utilizados pelos alquimistas. (MAAR, 2004)

Segundo Maar (2004), a alquimia é considerada um dos fundamentos da história da medicina e história da química. Tal atribuição deve-se à dois fatores: as doenças eram tratadas de acordo com os fundamentos de Paracelso, que se baseava na união da química com a medicina; e a formulação de medicamentos de acordo com as práticas alquimistas, na qual seus métodos de cura possuíam mais caráter religioso do que medicinal.

Em 1610, com a criação da Universidade de Marburg, a quimiatria ganhou espaço como disciplina nos ensinamentos das universidades, contudo seu ensino ainda era destinado à prática da medicina e da farmácia. De acordo com Maar (2004), após a criação de laboratórios de estudos e roteiros de aulas práticas, a quimiatria passou a receber um contexto mais experimental nos centros universitários. Introduziu-se a utilização de aulas práticas de laboratório, as quais permanecem nos dias atuais. Ainda segundo Maar (2004), o ensino da quimiatria na França era dirigido por farmacêuticos e médicos dos reis.

Já no século XVII, inicia-se o processo de diferenciação e especificação dos estudos nas universidades por meio da reformulação dos conteúdos. Bernard de Fontenelle (1657-1757) cria a divisão da física em disciplinas de ótica, astronomia e química. Surge o processo de reconhecimento da química como disciplina independente, mas permanecendo ministrada por especialistas médicos. (MAAR, 2004). É evidente a ligação ainda dos conhecimentos de química voltados apenas para o estudo da medicina.

Observa-se no século XVIII uma leve crise nas universidades, permitindo que a química também passasse a ser ensinada em demais instituições de ensino e academias científicas. Estas incluíam escolas de minas e pequenos laboratórios de ciências de menor prestígio, estimulando a propagação e o ensinamento de química em larga escala. Maar (2004) complementa que a química ainda não havia se firmado tão concretamente como atividade acadêmica nas universidades, por oferecer laboratórios embolorados, precariedade nas instalações e extrema fuligem vinda dos fornos à carvão. Tratava- se ainda de uma ciência sem refinadas literaturas, manuscritos renomados e uma luxuosa biblioteca que a classificasse como disciplina integrante dos currículos acadêmicos.

De acordo com Maar (2004), ainda no século XVIII ocorre a fragmentação dos conhecimentos químicos por meio da especificação de seu estudo. A química passa a ser estudada conforme as necessidades de cada área existente na época, sendo elas: a química tradicional voltada à medicina; química e botânica voltadas apenas à farmácia; química e o ensino de metalurgia direcionados aos avanços tecnológicos da época; e química independente utilizada pelas faculdades de filosofia.

Mas foi finalmente na Era Iluminista que a química se firmou como disciplina independente “deixando de ser um complemento do ensino médico” (MAAR, 2004, p. 56). Foi neste período que a química se fundamentou como ciência autônoma permitindo a profissionalização dos químicos. Inicia-se o processo de utilização da química nos interesses do Estado e inovações nos meios de produção, como o tingimento de tecidos e a fabricação de vidros e cerâmicas. (MAAR, 2004)

Após esta distinção nas funcionalidades da utilização da química, esta foi introduzida como disciplina independente na faculdade de filosofia. Encerra-se assim, a fusão da química com a medicina. Ainda de acordo com Maar (2004, p. 58) este esclarece que “A transferência da química da Faculdade de Medicina para a de Filosofia não foi apenas um gesto burocrático, mas corresponde, como vimos, a uma das formas de institucionalização da química”.

Nesta fase, por meio das faculdades de filosofia, nasce o processo de união da química à física e à matemática (MAAR, 2004). Esta unificação é evidente e inseparável ainda nos dias atuais. Uma vez que a amplificação dos estudos químicos pode se estender, ao serem evidenciados pela utilização de cálculos, fenômenos nunca antes compreendidos finalmente ganharam sentido. Tal interdisciplinaridade embasou a matematização e a estruturação racional da química. (MAAR, 2004)

De acordo com Maar (2004), foi durante a fase iluminista que o conhecimento matemático passou a ser considerado pré-requisito para o estudo e compreensão da química. Perde-se o foco estritamente medicinal e farmacológico, ganhando importante significado como ciência tecnológica. A partir de então, a evolução da química se acentua nas universidades por meio de estudiosos destinados somente ao estudo das moléculas e reações puramente de origem química. Esta não é mais vista como parte integrante de qualquer outro ramo científico, mas sim como ciência exata e experimental por seus próprios estudiosos.

Tendo em vista a origem da química entre doutores e mestres da saúde, é inquestionável sua relação com as ciências médicas e farmacêuticas. Este breve apanhado histórico justifica a controvérsia sobre a questionável ligação da química com o meio acadêmico de áreas biológicas da graduação. Não restam dúvidas que o estudo da química se originou pela real necessidade pela busca da cura de enfermidades e, consequentemente, pelas necessidades tecnológicas pertinentes à época.

3. A origem do problema

Um fato extremamente comum entre estudantes de cursos de graduação em Farmácia, Biomedicina, Enfermagem, Fisioterapia, Odontologia, Medicina entre outros, é a dificuldade em aprender química. Expressões como “não gosto de química” ou “é uma matéria muito difícil” são frequentes entre graduandos destes cursos. Incertezas sobre a importância e necessidade desta disciplina, como parte do currículo acadêmico, são evidentes (VIEIRA, 1996).

Devemos levar em consideração que, tais questionamentos também são comuns entre estudantes dos níveis fundamental e médio da educação. Ao serem introduzidos aos primeiros conhecimentos do universo químico, estes se deparam com um drástico impedimento na compreensão da disciplina. Desta forma, Silva (2011) relata em seu estudo, que a Química é vista por alunos do ensino médio como uma disciplina abstrata e complexa. Nota-se que esta mesma visão permanece entre estudantes do nível superior ao ingressarem em seus respectivos cursos.

Grande parte da deficiência de compreensão da utilidade da Química e sua importância é devido ao despreparo de docentes. Estes criam uma visão mecânica de resoluções de equações e memorização de fórmulas, sem que estudantes possam desenvolver entendimentos conceituais (LEITE; ZANON; JUNGBECK, 2015). Devemos mencionar também a supervalorização do conteúdo, onde o cumprimento dos tópicos da grade curricular são a prioridade do ensino, deixando de lado a visão de interdisciplinaridade. Santos (2005) defende a ruptura desta prática pedagógica tradicional, em que a tradição universitária originou a divisão da ciência em áreas independentes, causando o distanciamento entre o que é ciência exata e ciência da vida. Defende também que esta fragmentação não deve mais prevalecer nos dias atuais e atribui a crise de ensino das ciências ao modelo de ensino arcaico.

Outro importante fator que impossibilita a compreensão da Química são defasagens de disciplinas interligadas a ela (SANTOS et al., 2014). É fato a incapacidade de absorção do conteúdo, quando a deficiência da aprendizagem se encontra no desconhecimento de meras operações básicas de matemática e interpretação de texto. Tal situação impede que o estudante possa compreender o estudo abordado, transmitindo a falsa impressão de complexibilidade. Esta “deficiência pode ser motivada pela ausência de estimulação adequada ou por processos de aprendizagem precários”. (SANTOS et al., 2014, p. 2).

A estrutura física oferecida pelas instituições de ensino são pontos notórios quando mencionamos aulas experimentais. De acordo com Silva (2011), o método de ensino tradicional, a utilização de estrutura precária nos laboratórios e a falta de materiais químicos nas instituições, elevam ainda mais o desinteresse por parte dos estudantes. Complementa também que muitas vezes, a carga horária semanal poderá ser insuficiente para a abordagem necessária da disciplina, resultando na abstenção das aulas práticas. Devemos ressaltar ainda a exaustão enfrentada pelos docentes quando estes são impossibilitados de progredirem em seus ensinos por razão do despreparo dos alunos.

De acordo com Del Pintor (2016), uma pesquisa realizada por meio de questionários com estudantes de uma escola da rede pública de ensino, mostrou que entre os selecionados, 62,64% possuem dificuldades em compreender química e 86,81% acreditam que a forma como a matéria é ensinada influencia na aprendizagem. Este estudo representa uma pequena fração da amplitude de um problema, que se inicia na educação fundamental, mas é arrastado para as salas de aula das instituições de ensino superior. A evolução da aprendizagem na graduação é um reflexo dos ensinamentos oferecidos durante a formação do ensino básico da educação. (DEL PINTOR, 2016)

Segundo Del Pintor (2016), a Teoria das Representações Sociais utilizada por Daisy de Brito Rezende, do Departamento de Química Fundamental do Instituto de Química da USP, na qual estuda professores e alunos desde o ensino médio até a pós-graduação, evidencia a heterogeneidade na forma de aprendizado da Química em cada curso de graduação. Em seu estudo, a pesquisadora destaca:

“ Estudamos, por exemplo, a representação sobre a química orgânica em alunos da Farmácia e da Química. Descobrimos que essa representação é diferente, e difere já no ingresso do estudante na faculdade, uma vez que teoricamente teriam feito o ensino médio igual”, exemplifica Rezende. “A representação dos alunos da farmácia voltava-se a aspectos mais biológicos, enquanto dos da química se relacionava mais a petróleo e carbono. Isso mostra que a abordagem de um curso de química orgânica deve ser diferente para esses dois grupos sociais, de forma que se considerem os aspectos afetivos da aprendizagem na escolha das temáticas a serem abordadas. ” (DEL PINTOR, 2016, p. 2)

Del Pintor (2016) destaca que uma das grandes barreiras que impedem alunos de compreenderem química, seria a incapacidade de entender algo que não seja possível enxergar ou tocar macroscopicamente. Esta dificuldade exige que o estudante amplie sua capacidade de compreensão do “imaginário”. Sendo assim, o docente deverá transmitir o conhecimento de forma consciente sobre os obstáculos apontados perante a compreensão do que é exposto. Complementa também que os conteúdos disciplinares nos currículos tradicionais não parecem demonstrar relação entre si. As disciplinas são lançadas sobre os alunos de forma individual e sem correlação, dificultando o entendimento da dependência que há entre os conteúdos abordados.

Ainda segundo a pesquisadora Daisy de Brito Rezende (Instituto de Química/USP), há uma acentuada dificuldade, especialmente em Química Orgânica, para entender as relações tridimensionais das moléculas. A compreensão da espacialidade, polaridade e bioatividade para uso farmacológico de compostos, está relacionada diretamente ao arranjo espacial entre os átomos de suas moléculas. Esta limitação de visualização e entendimento é julgada por inúmeras vezes como deficiência de aprendizagem, assim como relatado pela pesquisadora “É uma dificuldade, não uma burrice. É a forma como o cérebro de alguns funciona. Nossa pesquisa mostrou que cerca de 80% das pessoas apresentam essa dificuldade” (DEL PINTOR, 2016, p. 2). Portanto, enfatiza a maior compreensão por parte dos educadores ao julgarem as incompetências demonstradas pela heterogeneidade nas salas de aula.

No entanto, a utilização de demonstrações gráficas, sistemas computadorizados e modelos moleculares reais facilitam a visualização de átomos e moléculas. A pesquisadora ainda complementa:

“ fazer alguém que não tenha essa visão espacial acreditar que um carbono quiral (com quatro substituintes diferentes em torno do carbono) é imagem especular de outro, ou seja, que essas moléculas nunca vão se sobrepor à outra, é muito difícil sem esse modelo. Com o modelo físico, nós trazemos para o concreto essas questões espaciais”. (DEL PINTOR, 2016, p. 2)

Segundo Vieira (1996), a dúvida quanto à real necessidade de aprender Química, deveria ter como resposta exemplos de seu próprio cotidiano, demonstrando ao aluno a importância de conhecê-la como ferramenta em sua área de atuação. Deve-se variar a forma expositiva das aulas, alternando meios para que estas não se tornem cansativas, utilizando aulas demonstrativas mais frequentes. Desta maneira, Silva (2011, p. 11) afirma em sua pesquisa que “Não se concebe ensinar química dissociada da parte experimental. Por essa razão a Química é considerada uma Ciência experimental. ”

4. A interdisciplinaridade e a fundamentação teórica

Sendo disciplina universal em cursos de graduação da área biológica, a Bioquímica é considerada pré-requisito para o entendimento e compreensão de diversas outras disciplinas. Tem por objetivo o estudo interdisciplinar, que utiliza princípios e métodos da Química na investigação das transformações que ocorrem nas substâncias e moléculas, provenientes de seres vivos e de seus processos metabólicos. Denominada também como química biológica e fisiológica. (CORAMELLA, 2014)

Para a compreensão desta matéria, são necessários conhecimentos fundamentais sobre Química Orgânica (estrutura, propriedades, reações e formação de compostos orgânicos que, por definição, contenham carbono) e Química Inorgânica (ácidos, bases, sais, óxidos e suas interações químicas). Sem o domínio de conceitos químicos básicos, a investigação de transformações a nível celular seria impossível. Devido à deficiência de aprendizagem em disciplinas como a Química, estudantes encontram imensa dificuldade na compreensão das reações bioquímicas. Para sua compreensão é indispensável a capacidade de raciocínio interdisciplinar. (CORAMELLA, 2014)

Segundo Coramella (2014, p. 1), tratando-se de algo que exige uma visão macromolecular difícil de ser compreendida, é importante que a Bioquímica seja ministrada destacando suas associações práticas, assim como descrito pelo autor:

Ao lecionar esta aula em Bioquímica, o professor não deve apenas mostrar o que são os carboidratos, qual a constituição química e para que servem no corpo. O professor deve mostrar também que o consumo em excesso de Carboidratos brancos e pobres em fibras na alimentação (Tecnologia de alimentos) por um indivíduo, pode levar ao aparecimento de doenças crônicas em longo prazo (Patologia), como obesidade e, por consequência diabetes e, por consequência hipertensão arterial. São doenças crônicas, incuráveis, porém que possuem tratamentos medicamentosos para o seu controle (Farmacologia) e o uso destes medicamentos deve sempre ser instruído ao paciente (Atenção Farmacêutica).

Nota-se na citação acima a utilização clara da muldisciplinaridade no ensino da Bioquímica. Esta forma de exposição do conteúdo, cria um raciocínio de “dupla conjugação, entre ciência e realidade” (SANTOS, 2005, p. 2). Ainda segundo o autor, a fim de promover a interdisciplinaridade entre os conteúdos apresentados, deve-se utilizar o ensino como uma ferramenta mais realista e menos idealizadora. Deixando de lado a simples contextualização do ensino e ressaltando mais claramente sua utilização na vida profissional dos estudantes da graduação.

As instituições de ensino devem despertar a capacidade de raciocínio e questionamento ao introduzirem novos conhecimentos aos discentes. Possuindo como motivo o “engessamento” encontrado em métodos de ensino ultrapassados, onde limita-se ao simples fato de que “ensinar é fácil e de que basta dominar o conteúdo para ensinar [...] muitos conteúdos são ensinados de forma fragmentada, sem abranger relações entre conhecimentos internos e externos a cada disciplina”. (Leite; Zanon; Jungbeck, 2015, p. 3)

5. Análise da importância do domínio de Química

Demonstraremos agora, algumas justificativas pela qual o estudo e compreensão da Química é de extrema importância na formação de profissionais da saúde. Não há dúvidas de que o corpo humano é composto por átomos, moléculas e íons que interagem entre si para construir cada singular substância. Transformações químicas de diversas origens ocorrem infinitamente permitindo que cada célula seja capaz de sobreviver. (VIEIRA, 1996)

De acordo com Vieira (1996), os elementos químicos hidrogênio, oxigênio, carbono, nitrogênio e cálcio constituem aproximadamente 98% do corpo humano. Representando-se por número de átomos 63% do total são de hidrogênio, 25% oxigênio, 10% carbono e 1,4% de nitrogênio. Ressalta também que o cálcio é o principal elemento na estrutura corporal, como dentes e ossos. Da mesma forma em que o perfeito estado de equilíbrio entre estes assegura o correto funcionamento do organismo, a ausência ou excesso resultarão em possíveis patologias a curto e longo prazo.

Segundo o artigo publicado por Aldridge e Lucírio (2016), a quantidade de ferro presente em um adulto com 70 quilos, não ultrapassa 5 miligramas. Entretanto, mesmo sendo uma quantia tão insignificante, possui indubitável necessidade e importância para o funcionamento do organismo. De acordo com o endocrinologista Domingos Malerbi, do Hospital Albert Einstein, em São Paulo, a dosagem necessária de ferro foi descoberta durante a Segunda Guerra Mundial. Este relata:

“Muitos soldados sofreram ferimentos graves na região do abdome, afetando o aparelho digestivo, e não podiam se alimentar por vias normais. Então, era ministrado, pela veia, soro misturado com os elementos químicos que já se sabia serem importantes. Assim foi possível identificar que tipo de sintoma ocorria quando havia deficiência de algum deles”. (ALDRIDGE; LUCÍRIO, 2016, p. 1)

Desta forma, para que a Medicina pudesse evoluir e apontar cada elemento químico responsável por reações fisiológicas do organismo humano, assim como descrito no relato anterior, foi crucial o conhecimento químico daqueles que a exerciam. Saber identificar os possíveis sintomas que o excesso ou a deficiência que estes elementos químicos causavam, não era uma opção, mas sim, uma necessidade vital! (ALDRIDGE; LUCÍRIO, 2016)

Não somente o corpo humano é formado por substâncias, mas também fármacos e medicamentos. Estas drogas farmacêuticas são utilizadas para o tratamento de doenças, manutenção do equilíbrio corporal, prevenção de patologias ou simplesmente para a reposição de vitaminas e minerais. A interação entre os compostos naturais do organismo com aqueles inseridos por meio de drogas medicinais, resulta em reações químicas e geração de produtos. Os efeitos colaterais originários de tais reações poderão ser gravemente prejudiciais ao sistema fisiológico. (VIEIRA, 1996)

Um clássico exemplo sobre a necessidade de conhecimentos químicos sobre fármacos é a utilização da talidomida. Segundo a Associação Brasileira de Portadores da Síndrome da Talidomida, esta foi responsável por uma grave tragédia na década de 60, gerando milhares de casos de Focomelia. Tal síndrome caracteriza-se pela aproximação dos membros superiores e inferiores junto ao tronco. O medicamento possui a facilidade em ultrapassar a barreira placentária alterando a formação do feto. Outras malformações também foram observadas afetando visão, audição e até mesmo o próprio coração. (ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE PORTADORES DA SÍNDROME DA TALIDOMIDA, 2007)

Os efeitos apresentados pela talidomida estão diretamente relacionados à geometria e disposição espacial de seus átomos, o qual não era conhecido na época. Após este triste evento na história da Medicina, o arranjo espacial dos átomos nas moléculas e sua interação com os receptores macromoleculares, ganhou especial atenção e novos estudos para fármacos quirais foram desenvolvidos (ORLANDO et al. 2007).

Outra importante necessidade de conhecimentos químicos é para o preparo, execução e análise de exames laboratoriais. Todo procedimento de análises clínicas é fundamentado em reações químicas. Portanto, a utilização de fármacos por pacientes que se submetam à um exame, aumenta a probabilidade de interferência nos resultados finais do diagnóstico clínico-laboratorial. (FERREIRA, et al., 2009)

De acordo com Ferreira et al. (2009), 68 a 93% dos erros encontrados em exames laboratoriais são derivados da fase pré-analítica, que se caracteriza pelos métodos de preparo e coleta da amostra. Estas falhas são amenizadas por meio da correta orientação ao paciente, sobre procedimentos a serem seguidos antes da coleta do material biológico e fornecimento de informações necessárias, como: tempo correto de jejum, período de descanso, exclusão de vícios, utilização de medicamentos, tratamentos médicos em andamento e fase do ciclo menstrual, no caso de mulheres.

Em seu estudo, Ferreira et al. (2009) afirma que diversas drogas tanto in vivo quanto in vitro podem alterar os resultados analíticos em laboratórios. Medicamentos de uso contínuo como captopril, hidroclorotiazida e levotiroxina sódica são exemplos de drogas utilizadas em seu experimento que alteraram reações químicas durante o processo de análise clínica. Segundo seu estudo, o captopril gerou resultados falso-positivos em cetonas na urina; a hidroclorotiazida elevou a concentração de uréia in vivo e a levotiroxina sódica provocou redução por efeito fisiológico no exame de apolipoproteína B.

Estas são algumas simples exemplificações sobre o conhecimento da química e a abrangência desta no meio científico. Medicamentos e drogas medicinais são utilizados universalmente por profissionais da saúde. Para isto, estudantes de todo e qualquer ramo das ciências biológicas devem dominar conhecimentos básicos de química que pertençam ao seu meio de conduta profissional. Além disso, conhecer a nomenclatura tanto uso quanto formal das substâncias é uma exigência para aqueles que atuam neste meio. Muitos profissionais se deparam perante uma verdadeira incógnita quando desconhecem a substância peróxido de hidrogênio. Esta nomenclatura química nada mais é do que a tão usada água oxigenada, muito utilizada na área da saúde. Sendo assim, conhecimentos químicos são obrigatoriedade como parte dos domínios na formação universitária destes profissionais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Há muito o estudo de química inter-relaciona-se com a medicina e práticas farmacêuticas. Tendo como mestres os alquimistas e médicos, a química germinou à partir da crescente indagação sobre a busca da cura de doenças e mistérios pertinentes às transformações da matéria. Somente com a chegada da Era Iluminista, a disciplina de Química desvinculou-se como parte complementar dos estudos médicos e conquistou a independência filosófica. Sendo mantida por muitos anos sob o domínio exclusivo de médicos-químicos, a Química uniu-se aos conhecimentos físicos, matemáticos e astronômicos, dando início à profissão do químico. O decorrer de todo o processo originário do estudo da química com seu nascimento a partir da necessidade de estudos médicos, prova indubitavelmente a ligação entre esta disciplina com todo e qualquer estudo sobre o organismo humano.

Uma vez introduzidas as fundamentações teóricas da Química, é extremamente importante que o docente não priorize a “ênfase exagerada quanto à memorização de fatos, símbolos, nomes, equações, teorias e modelos que ficam parecendo não ter quaisquer relações entre si” (SANTOS et al., 2014, p. 10). Mas, que este possa fazer uso de um ensino melhor contextualizado, despertando o senso crítico do aluno e seu interesse pela ciência. Enfatizar a interdisciplinaridade entre os conteúdos apresentados, minimizam a perda do conhecimento no processo de aprendizagem por memorização. Semelhantemente, entender a origem da incapacidade de compreensão e reconhecer as fragmentações no processo de aprendizagem, resultará em um ensino melhor fundamentado.

Conclui-se perante os aspectos históricos que o uso da química está intrinsicamente fundamentado ao exercício da medicina e farmácia. Sua origem está presente nos remotos laboratórios e porões que serviram de impulsores para cada singular descobrimento de seus efeitos. A prática da alquimia e quimiatria impulsionaram às universidades a estruturarem seus laboratórios de ensino, abrindo espaço para a consequente fundamentação dos conhecimentos médicos e químicos. Desta forma, a necessidade de compreender o estudo da Química, torna-se inquestionável para aqueles que intendem atuar em áreas relacionadas às ciências da saúde. A exigência em dominar conhecimentos químicos não é um fato recente e imposto com meras intenções de preenchimento do currículo acadêmico, mas um antigo pré-requisito para a formação de profissionais capacitados.

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