A importância das Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos (EPSFL) na gestão pública

Por Ronaldo Quintanilha da Silva | 19/08/2013 | Adm

1.      Introdução

Neste texto, aborda-se o contexto das Entidades Privadas Sem Fins Lucrativos (EPSFL), conhecidas como Organizações Não governamentais – ONGs, na gestão pública atual, o surgimento e o aumento da participação delas na execução de políticas públicas. Para tanto, apresentam-se os conceitos de terceiro setor e gestão pública. Em seguida, trata-se de aspectos observados durante a visita à Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais do Distrito Federal (Apae-DF).

Essas entidades compõem o terceiro setor e vêm participando cada vez mais na execução de políticas públicas. Atualmente, elas já somam mais de 280 mil, entre associações, fundações e ONGs (BRASIL, 2010).

Elas recebem recursos financeiros advindos de doações e parcerias internacionais, bem como transferências voluntárias, mediante convênios ou outros instrumentos congêneres, que são uma das formas de repassar os recursos financeiros do orçamento da União para as entidades sem fins lucrativos. Nesse último caso, de 2010 a 2012, o valor transferido ultrapassou o montante de R$ 8 bilhões, conforme consta no Relatório e Parecer Prévio sobre as Contas de Governo de 2012 (BRASIL, 2013, p. 132).

2.      O que é Terceiro Setor?

O termo Terceiro Setor tem origem na expressão inglesa Third Sector. Outras denominações são utilizadas como, por exemplo, Non-Profit Sector, Public Charities e Voluntary.  Sob a perspectiva acadêmica, o conceito de terceiro setor tem gerado muita controvérsia, não existindo unanimidade entre os autores, inclusive no tocante a sua abrangência.

Inserido nesse setor há várias entidades, como as ONGs. No plano internacional, o termo “ONG” aparece no período pós Segunda Guerra Mundial, naquele momento, a Organização das Nações Unidas (ONU) estava se formando. Segundo Ciconnello (2008, p. 4), algumas organizações internacionais como a Cruz Vermelha e outras começaram a participar do debate internacional no âmbito das Nações Unidas e foram chamadas de organizações não-governamentais, em um espaço formado por Estados nacionais.

No Brasil, a denominação terceiro setor é utilizada para identificar as atividades da sociedade civil que não se enquadram na categoria das atividades estatais. Portanto, em linhas gerais, o terceiro setor é o espaço ocupado especialmente pelo conjunto de entidades privadas sem fins lucrativos que realizam atividades complementares às públicas, visando contribuir com a solução de problemas sociais e em prol do bem comum. Já o primeiro setor é representado por entes da Administração Pública e o segundo setor é composto pelas empresas com finalidade lucrativa (mercado).

            De forma lógica e resumida, o primeiro setor é composto de entidades públicas para fins públicos, o segundo de entidades privadas com objetivos privados, o terceiro de entidades privadas também, mas com fins públicos. Assim, se o primeiro setor almejar fins particulares, em vez de públicos, depara-se com os casos de desvio de recursos e malversação de dinheiro público.

A conceituação das organizações da sociedade civil sem fins lucrativos é variada e ainda não definida. Elas recebem as seguintes denominações: organizações não governamentais (ONGs), como dito anteriormente, organizações da sociedade civil (OSCs), organizações do terceiro setor, organizações sem fins lucrativos, entre outras.

Registram-se críticas em relação a esses conceitos. Nas palavras de Pereira (2008, p. 18):

Na realidade, é preciso, primeiro, qualificar esse termo ONG, assim como entender “terceiro setor” como um conceito fantasia e não sinônimo de ONG. Ambos são termos políticos, que se popularizaram a partir dos anos de 1990, mas que muito pouco expressam sobre a natureza e a diversidade de entidades do amplo campo das Organizações Sem Fins Lucrativos no Brasil.

Destacam-se, dentre os critérios para classificação, os estabelecidos pelo Handbook on nonprofit institutions in the system of national accounts, editado pela Organização das Nações Unidas, em conjunto com a Universidade John Hopkins.  Conforme o manual, fazem parte do terceiro setor as entidades que detenham, de forma acumulada, as seguintes características:

  1. natureza privada;
  2. ausência de finalidade lucrativa;
  3. institucionalizadas;
  4. auto-administradas; e
  5. voluntárias.

Nessa mesma linha, o professor José Eduardo Sabo Paes (2005, p.2) cita os pesquisadores Salomon & Anheier, que com base em estudos em vários países, ressaltam cinco características necessárias nas organizações do terceiro setor, são elas:

  1. organizadas: ainda que não sejam legalmente formalizadas, precisam ter um sentido de permanência em suas atividades, possuir conselhos e realizar reuniões periódicas;
  2. privadas;
  3. não distribuírem lucros: ainda que as receitas sejam maiores que as despesas, todo o “lucro” deve ser revertido para a própria organização;
  4. autogovernáveis: existência independente do Estado ou de empresas;
  5. voluntárias: devem apresentar algum grau de voluntariado, tanto no trabalho quanto no financiamento (doações). 

Em vez de tentar enumerar as entidades sociais pela natureza e nomenclatura que possuem, ou ainda pela prática ou não de atividades estatais para classificá-las como entidade de benefício público, como sugere Sílvio Sant´Ana, o critério para integrá-las à definição de terceiro setor estaria nos seus objetivos e ações: quando realizarem atividade de interesse público, entendidas estas como as que promovem cidadania, assistência social e cultura (NUNES, 2006, p. 29).

Fernandes (2005, p. 26) cita a definição de Fagundes sobre o termo ONG que “está mais associado a um tipo particular de organização, surgida aqui a partir da década de 1970, no âmbito do sistema internacional de cooperação para o desenvolvimento que resultou numa ênfase na dimensão política das ações, aproximando-se do discurso e da agenda das esquerdas.”

Para Antonio Carlos Carneiro de Albuquerque (2006, p. 31) as ONGs:

são instituições privadas sem fins lucrativos que, ao obter algum resultado econômico de suas atividades, devem reinvesti-lo na atividade-alvo da organização. Apesar de não governamentais, os fins a que essas instituições se dedicam têm características de serviço público, ainda que em escala diferente do realizado pelo Estado.

Há ainda os Serviços Sociais Autônomos, que integram o terceiro setor e são definidos por Hely Lopes Meirelles (1998, p. 338) da seguinte maneira:

todos aqueles instituídos por lei, com personalidade de Direito Privado, para ministrar assistência ou ensino a certas categorias sociais ou grupos profissionais, sem fins lucrativos, sendo mantidos por dotações orçamentárias ou por contribuições parafiscais. São entes paraestatais, de cooperação com o Poder Público; com administração e patrimônio próprios, revestindo a forma de instituições particulares convencionais (fundações, sociedades civis ou associações) ou peculiares ao desempenho de suas incumbências estatutárias.

Para Gustavo Justino (2005, p. 86), o conceito de entidade do terceiro setor é o seguinte:

O Terceiro Setor pode ser concebido como o conjunto de atividades voluntárias, desenvolvidas e sem ânimo de lucro (associações e fundações), realizadas em prol da sociedade, independentemente dos demais setores (Estado e mercado), embora com eles possa firmar parcerias e deles possa receber investimentos (públicos e privados).

Portanto, respeitando os demais posicionamentos, o conceito de terceiro setor está explícito ou implicitamente marcado pelas seguintes características: organização, natureza privada, não distribuição de lucros, autogerenciável e com trabalho voluntariado. Linhas mestras a serem seguidas e as quais tentaremos identificar na entidade visitada. Vamos ao conceito de gestão pública.

3.      O que é Gestão Pública?

Gestão pública relaciona-se ao campo de conhecimento e de trabalho envolvendo as organizações cuja missão seja de interesse público ou envolva este. Nela estão inseridos os recursos humanos, financeiros, tecnológicos entre outros.

Para defini-la os autores fazem, na maioria das vezes, o paralelo com a gestão privada, inclusive a gestão pública contemporânea busca a aplicação de características da área privada. Citam-se o empreendedorismo, foco no cliente (contribuinte), inovação, criatividade, liderança entre outros. Todavia, é oportuno destacar os balizamentos da gestão pública que não se deve esquecer: os princípios basilares, ou seja, a supremacia e a indisponibilidade do interessa público, além daqueles insculpidos no art. 37 da Constituição Federal de 1988, que são a legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Na gestão pública, o objetivo maior não é o lucro, mas o atendimento aos anseios da coletividade.

Nos ensinamentos de Matias-Pereira (2012, p. 2), gestão pública pode ser entendida “como a governança de uma rede complexa, integrada por inúmeros e distintos atores como partes do governo local, regional e nacional, cujos objetivos e interesses são conflitantes. Assim, fica evidenciado que o governo não é um ator que pode impor de forma unilateral os seus desejos sobre os demais.”

No site da Câmara dos Deputados (Brasil, 2013), encontra-se a seguinte definição para gestão: “Prática de atos fundados na competência legal para gerir uma parcela do patrimônio público, sob a responsabilidade de uma determinada unidade. Aplica-se o conceito de gestão a fundos, entidades supervisionadas e a outras situações em que se justifique a administração distinta.”

Em artigo publicado na Folha de São Paulo, Luiz Carlos Bresser-Pereira menciona o pioneirismo da reforma da gestão pública no Brasil (2006):

O Brasil foi o primeiro país em desenvolvimento a iniciar uma reforma da gestão pública abrangente. A reforma começou com a criação do Mare (Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado) em 1995 e a definição de um Plano Diretor e de uma emenda constitucional nesse mesmo ano. Em pouco tempo, transformou-se em uma agenda nacional e ganhou os corações e as mentes da elite do serviço público brasileiro, que a está aos poucos implantando.

Ele também reforça a ideia da imprescindibilidade de tal reforma:

A reforma da gestão pública, porém, é uma realidade que se impõe às sociedades modernas. Dada a divisão cada vez maior do trabalho e a imensa complexidade e dinamismo das sociedades atuais, sempre em processo de mudança, não resta alternativa ao aparelho do Estado senão descentralizar e controlar por resultados, por competição administrada, por excelência e por controle social.

Atualmente, no âmbito da União, o tema está sob a responsabilidade da Secretaria de Gestão Pública (Segep), oriunda da fusão entre a Secretaria de Gestão (Seges) e parte da Secretaria de Recursos Humanos (SRH). A Segep foi criada pelo Decreto nº 7.675, de 20/1/2012, que promoveu a revisão da estrutura regimental do Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão.

Outra iniciativa em prol da gestão pública ocorreu em 2011, por intermédio do Decreto nº 7.478, de 12/5/2011, quando foi criada a Câmara de Políticas de Gestão, Desempenho e Competitividade - CGDC, do Conselho de Governo, com o objetivo de formular políticas e medidas específicas destinadas à racionalização do uso dos recursos públicos, ao controle e aperfeiçoamento da gestão pública, bem como de coordenar e articular sua implementação, com vistas à melhoria dos padrões de eficiência, eficácia, efetividade, transparência e qualidade da gestão pública e dos serviços prestados ao cidadão, no âmbito do Poder Executivo.

No Legislativo Federal, em 2012, criou-se a Frente Parlamentar Mista do Fortalecimento da Gestão Pública, cujo objetivo é formular propostas para melhorar a eficiência da administração pública federal. Ela envolve dezenas de deputados e senadores.

Enfim, gestão pública é a atuação das organizações, em sua completude, no manejo da coisa pública em prol da sociedade, sempre considerando técnicas novas e formas de agir, desde que em consonância com as leis e os princípios.

Antes de adentrar ao tema da participação das entidades privadas sem fins lucrativos na gestão pública, é preciso entender o surgimento dessas entidades.

4.      Origem das entidades sem fins lucrativos no Brasil

No Brasil, o denominado terceiro setor vem angariando espaço e aumentando sua importância nos diversos setores do conhecimento.

Historicamente, Simone Coelho (2002, p. 45) afirma que “[...] desde o século XVI existem no Brasil instituições de assistência a pessoas carentes, orientadas por fins filantrópicos, influenciadas pelo modelo português das Casas de Misericórdia, baseadas em ações cristãs.”

Ciconello (2008, p. 4) menciona que muito embora as experiências participativas com os segmentos populares fossem realizadas por uma pluralidade de sujeitos políticos (Ongs, movimentos sociais, sindicatos, etc), foram os setores progressistas da Igreja Católica, por meio das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs), quem conferiram a esse movimento unidade e força política.

Ele prossegue informando que no início dos anos 1980 existiam no Brasil cerca de 80 mil comunidades, reunindo aproximadamente dois milhões de pessoas.

Contudo, apesar da importância dos movimentos sociais, no Brasil, assim como no restante do mundo, o surgimento do terceiro setor tal como conhecemos hoje está intimamente relacionado à queda da participação estatal na área social.  

É oportuno destacar os números relativos ao terceiro setor divulgados pelo estudo do universo associativo brasileiro, disseminado pelo Instituto de Pesquisa Econômica (IPEA), o Instituto de Geografia e Estatística (IBGE) e demais parcerias, tais como: Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) e Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (ABONG).

A partir desse estudo, verifica-se que existiam em 2010 no Brasil 290,7 mil Fundações privadas e associações sem fins lucrativos (Fasfil) que empregavam 2,1 milhões de indivíduos. A distribuição dessas entidades tende a acompanhar a distribuição da população. Assim, na Região Sudeste se concentra 44,2% das instituições. No Distrito Federal, onde se situa a entidade que observamos, havia 4.371 (2010, p. 4). Portanto, o Apae-DF é uma dessas entidades contabilizadas pelo estudo em questão.

Em outro ponto, o estudo apresenta as áreas de atuação, Desenvolvimento e defesa de direitos (14,6%), Cultura e recreação (12,7%), Educação e pesquisa (6,1%), Assistência social (10,5%), Religião (28,5%), Meio ambiente e proteção animal (0,8%) e demais áreas. No caso da Apae/DF, ela se insere na área de assistência social e também educação. Um dos objetivos da assistência social é justamente a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária, segundo dispõe o art. 2º da Lei 8.742/1993 – Lei Orgânica da Assistência Social.

Interessante também é noção do porte dessas entidades. A média de pessoas assalariadas por entidade é de 7,3 no ano de 2010. Mas há diferenças significativas, por exemplo, os hospitais contam com uma média de 224,1 trabalhadores, já o grupo que compõe Desenvolvimento rural, a média é de 0,2 na Região Norte. Tal fenômeno pode ser explicado, parcialmente, pela presença de trabalho voluntário e autônomo, sob regime de contratação para aquele projeto específico, segundo o estudo (2010, p. 22). A Apae/DF possui cerca de 100 pessoas, mas varia justamente pelos motivos mencionados pelo estudo do IBGE.

Por último, observa-se que o crescimento de 2006 a 2010 foi de 8,8% das Fasfil no Brasil, ou seja, de 267,3 mil para 290,7 mil entidades no período. Essa expansão é menor do que a constatada no período de 2002 a 2005 (22,6%).

Enfim, o surgimento do terceiro setor no Brasil se deu por intermédio de entidades vinculadas à religião, como as Casas de Misericórdia e às questões sociais. Depois, cresceram e ganharam destaque no cenário nacional.

5.      Participação das entidades privadas sem fins lucrativos na gestão pública

A Constituição Federal de 1988 previu parcerias entre órgãos governamentais e organizações sem fins lucrativos na formulação de políticas de saúde, educação e assistência social, bem como na área ambiental.  A Carta Magna, nesse aspecto, lançou as sementes da Reforma do Estado, que estabeleceu, entre outras, as parcerias estatais com novos tipos de organização não governamental, as organizações sociais e organizações da sociedade civil de interesse público, para a execução de atividades estatais não exclusivas (NUNES, 2006, p. 22).

De fato, no Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado, percebe-se o alinhamento com a Constituição Federal, nos seguintes termos:

O Projeto das Organizações Sociais tem como objetivo permitir a descentralização de atividades no setor de prestação de serviços não-exclusivos, nos quais não existe o exercício do poder de Estado, a partir do pressuposto que esses serviços serão mais eficientemente realizados se, mantendo o financiamento do Estado, forem realizados pelo setor público não-estatal. (BRASIL, 1995, p. 60).

Daí surgiu as Organizações Sociais (OS) regidas pela Lei nº 9.637/1998 e as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP) criadas pela Lei nº 9.790/1999. As primeiras firmam contrato de gestão com o Poder Público e as segundas termo de parceria.

A partir dessa Reforma do Estado, há uma redefinição dos limites entre o público e privado na nossa sociedade. Com isso, a sociedade civil é chamada a participar mais diretamente na oferta de serviços educacionais. Assim, as organizações da sociedade civil, muitas de natureza filantrópica e assistencial, são chamadas a colaborar com o Estado, no campo da educação, sobretudo, na educação de adultos e na educação infantil, deslocando-se "a responsabilidade pelo sistema escolar do plano das políticas universais públicas para o plano das políticas compensatórias" (OLIVEIRA; HADDAD, 2001, p. 38).

Os dados do Relatório de Contas do Governo confirmam a participação das entidades na educação, porque o órgão que mais descentralizou recursos para o setor privado não lucrativo em 2012 foi o Ministério da Educação, com repasses da ordem de R$ 1,3 bilhão, equivalente a 42% do total. Desse montante, 81% correspondem à ação “Apoio à Formação Profissional e Tecnológica”, sob responsabilidade do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) (BRASIL, 2013, p. 131).

Em maior ou menor grau, as associações voluntárias sempre estiveram presentes nas comunidades, e antecedem o surgimento do Estado de Bem Estar Social.  Nos primórdios, elas eram, em sua maioria, ligadas às organizações religiosas e étnicas, conforme anteriormente mencionado.

O Estado brasileiro tem buscado transferir para as sociedades civis a realização de serviços não exclusivos, como forma de se aproximar mais dos problemas locais.

Assim, além de crescer em número, as entidades do terceiro setor também diversificaram suas áreas de atuação, Coelho (2002, p. 46) evidencia esse fato:

Já mencionamos que associações ou organizações que praticam a caridade e a filantropia sempre existiram, de forma quase invisível, sem fazer muito alarde de suas atividades. De fato, aumentaram o seu número e o seu escopo de ação ao longo de nossa história, sem que isso tenha atraído às atenções. Nas últimas décadas, esse setor sofreu um grande incremento em quantidade e uma substantiva diversificação.

Nesse sentido, passou-se a discutir a relação público-privada, Gustavo Justino destaca o surgimento de um ramo do direito voltado para esse setor.

Note-se ainda que vem ganhando corpo – principalmente em virtude das especificidades e dos contornos peculiares dos institutos e categorias jurídicas hoje aplicados ao Terceiro Setor – a conformação e autonomização de um Direito do Terceiro Setor. (OLIVEIRA, 2009, p. 167).

Falconer ao falar sobre a promessa do terceiro setor cita Lester Salamon, o qual sustenta que o “desafio central” para os administradores de organizações sem fins lucrativos não é simplesmente aperfeiçoar a gestão de suas organizações, mas encontrar soluções para os problemas públicos através da gestão de relacionamentos colaborativos complexos que se estabelecem entre os setores e que tendem a se tornar mais comuns em todo o mundo (FALCONER, 1999, p. 16).

A participação das entidades é percebida durante a análise, em sede preliminar, pelo Supremo Tribunal Federal, da Ação Direta de Inconstitucionalidade 1.923-DF, conforme Diário da Justiça 183, de 21/9/2007. A ação foi proposta contra artigos da Lei 9.637/98, que dispõe sobre as Organizações Sociais (OS), entidades integrantes do terceiro setor. A alegação de inconstitucionalidade de diversos artigos apoia-se no argumento de que o objetivo das regras ali contidas é de transferir atividades estatais (próprias de entes públicos) para o setor privado.

A matéria é de grande complexidade e não há unanimidade nas posições. Em alguns trechos dos votos dos Ministros, ficou patente a importância do tema.

O Relator, Ministro Ilmar Galvão, salienta que os segmentos de atividades elencados na lei (ensino, pesquisa científica, desenvolvimento tecnológico, proteção e preservação do meio ambiente, cultura e saúde) de forma alguma ferem os dispositivos da Constituição de 1988, ou seja, a Carta Magna, conforme se menciona no início deste capítulo, incentivou a atuação colaborativa entre o Estado e a iniciativa privada, as parcerias.

O Ministro Gilmar Mendes traz à tona outros entes federativos que também implantaram o modelo de OS, a saber: Goiás, Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia, Sergipe, Pernambuco, Distrito Federal, Espírito Santo e São Paulo. Com relação a este último, o Ministro apresentou dados que demonstram melhorias na saúde, com aumento do número de internações, de atividade ambulatorial e de atendimentos de urgência/emergência.  Em suas considerações finais, o Ministro ressalta que o Direito Administrativo tem passado por mudanças substanciais de paradigmas. Não há mais como compreender esse ramo do Direito a partir da perspectiva rígida da dicotomia entre o público e o privado. Logo, o Estado tem se apoiado cada vez mais em mecanismos de gestão inovadores, muitas vezes baseados em princípios próprios do direito privado.

O Ministro Marco Aurélio, ao concluir seu voto, apontou que a Constituição Federal homenageou a iniciativa privada, reconhecendo a utilidade na prestação de serviços por esta.

O Supremo optou, até pela complexidade da matéria, em indeferir a medida cautelar para discuti-la com maior profundidade no mérito.

Em 7/4/2011, o Ministro Relator Ayres Britto, trouxe o feito a julgamento, votou pela procedência parcial dos pedidos. Mas o Ministro Luiz Fux pediu vista ao processo, em data posterior, também pediu vista o Ministro Marco Aurélio. Portanto, a ação ainda não foi julgada.

O prof. Gustavo Justino (2009, p. 175), citando Gaspar Ariño Ortiz, enfatiza a concepção do Estado financiador, concentrado na atividade de fomento, entendida como atividade de estímulo e pressão, realizada de modo não coativo, sobre os cidadãos e grupos sociais, para imprimir um determinado sentido a suas atuações. Para o autor, por meio de subvenções, isenções fiscais e créditos, o Estado não obriga nem impõe, mas oferece e necessita de colaboração do particular para que a atividade fomentada seja levada a cabo

Em outro trecho, o autor ensina:

a transferência de recursos públicos a entidades privadas caracteriza-se como uma das possíveis técnicas de fomento. Presta-se ao menos para dois fins: a) para incentivar que tais entidades privadas, quando lucrativas, por meio do exercício de atividade econômica acabem gerando benefícios públicos e b) para incentivar que entidades não lucrativas passem a realizar atividades de interesse público, gerando igualmente benefícios (sobretudo de modo direto) para a comunidade. (OLIVEIRA, 2009, p. 175).

Finalizando, conclui-se que é relevante a participação das entidades do terceiro setor na gestão pública, o que não pode ser medido apenas pelo volume de recursos oriundos dos orçamentos públicos ou pela quantidade de entidades que surgiram, mas sim pela contribuição que elas prestam a sociedade, como veremos no exemplo relatado a seguir.

6.      Estudo de Caso – Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais do DF (Apae/DF)

Visitou-se a Apae/DF, situada no SEPN 711/911 Conjunto "E", Asa Norte, Brasília-DF, CEP 70.790-115, em 20 de junho de 2013.

Sua fundação se deu em 20 de agosto de 1964, na condição de uma organização não-governamental sem fins lucrativos que atende prioritariamente pessoas com deficiências intelectual e múltipla acima dos 14 anos de idade. Os principais programas da Associação estão voltados para o atendimento sócio-ocupacional, a educação profissional, a inserção e o acompanhamento no trabalho. A entidade beneficia cerca de 600 pessoas por ano, entre profissionais com deficiência acompanhados no mercado e aprendizes atendidos nas oficinas da instituição.

Durante a visita, foi possível verificar as diversas oficinas existentes: pintura, música, informática, trabalhos externos, cozinha, refeitório, limpeza, recepção entre outros.

O principal objetivo é dar assistência aos deficientes intelectuais inserindo-os na vida social, por intermédio de uma ocupação. Eles ganham independência e autonomia. Assumem obrigações e conhecem seus direitos.

Nessa instituição, observa-se a presença das características marcantes das entidades sem fins lucrativos. A organização definida no estatuto social e no regimento interno da entidade, a presença de conselhos deliberativo e fiscal, prestação de contas e assembleias. Ela é privada e autogovernável, ou seja, independe do Estado ou de empresas, embora as parcerias sejam constantes e atendem aos propósitos de todos. Os recursos financeiros arrecadados são aplicados na finalidade da instituição. Por último, existem pessoas trabalhando de forma voluntária e doações variadas.

Na região, além da sede, a Associação é composta por outras unidades de atendimento em Ceilândia, Sobradinho e Guará (Regiões Administrativas do DF).

A entidade é nacional, por isso a Apae/DF é filiada à Federação Nacional. O Movimento Apaeano, como é denominado, é formado por uma rede organizacional composta pela Federação Nacional das APAEs, 21 Federações nos Estados, 187 Delegacias Regionais e mais de 2 mil Apaes espalhadas por todo território brasileiro.

Todas as atividades realizadas pela Apae/DF são custeadas por meio da contribuição de sócios, doações diretas da comunidade, arrecadações do serviço de telemarketing, realização de campanhas e eventos, comercialização de produtos e prestação de serviços. A entidade também possui convênios com a Secretaria de Educação do Distrito Federal (para a cessão de professores) e com a Secretaria de Desenvolvimento Social e Transferência de Renda (que cobre parte das despesas com aprendizes de baixa renda). Há também parcerias específicas e/ou esporádicas com outros órgãos do governo, empresas privadas e organismos internacionais.

É oportuno listar as finalidades da Apae/DF de acordo com o art. 9º do Estatuto social:

I promover a melhoria da qualidade de vida das pessoas com deficiência, preferencialmente intelectual e múltipla, e transtornos globais do desenvolvimento, em seus ciclos de vida: adolescentes, adultos e idosos, buscando assegurar-lhes o pleno exercício da cidadania;

II prestar serviço de habilitação e reabilitação ao público definido no inciso I deste artigo, e a promoção de sua integração à vida comunitária no campo da assistência social, realizando atendimento, assessoramento, defesa e garantia de direitos, de forma isolada ou cumulativa às pessoas com deficiência, preferencialmente intelectual e múltipla, e para suas famílias;

III prestar serviços de educação especial às pessoas com deficiência, preferencialmente intelectual e múltipla;

IV - promover a escolarização, habilitação profissional e o encaminhamento da pessoa com deficiência, preferencialmente intelectual e múltipla, para o trabalho, oferecendo-lhe condições para o ajustamento, desenvolvimento, promoção da cidadania e a integração/inclusão na sociedade;

V – oferecer atendimento sócio-ocupacional a pessoas idosas, preferencialmente com deficiência intelectual e múltipla, que não apresentem perfil para o mercado competitivo do trabalho;

VI oferecer serviços na área da saúde, desde a prevenção, visando assegurar uma melhor qualidade de vida para as pessoas com deficiência, preferencialmente intelectual e múltipla.

Cumpre salientar a principal contribuição da existência de uma entidade semelhante a essa, que inserida na comunidade cuida de pessoas especiais, as quais são devolvidas a sociedade com o ânimo e a coragem revigorados. É possível mensurar o retorno disso? Muito difícil medir. Para o indivíduo e seus familiares não tem preço.

7.      Considerações Finais

Buscou-se neste texto apresentar os conceitos e a relação entre o terceiro setor e a gestão pública. Somados a experiência de visitar uma entidade privada sem fins lucrativos, foi possível constatar a presença dos conceitos teóricos na realidade dessa instituição. Portanto, não se discute mais a existência ou não do terceiro setor, tampouco se questiona sua imprescindível colaboração. Ele existe e as pesquisas trazem informações sobre suas atividades, seu tamanho e suas áreas de atuação. As entidades privadas sem fins lucrativos atingiram expressivo número de 290 mil em 2010. São profundamente marcadas pela natureza privada, organização, autogerenciável, não distribuem lucro e contam com trabalho voluntariado. Elas participam na gestão pública, pois ocupam espaço ou colaboram com a administração pública por intermédio de serviços de assistência social, educação, saúde entre outros. Em contrapartida, firmam parcerias mediante convênio ou outros instrumentos, além de receberem doações das mais diversas fontes.

Na verdade, a gestão pública enfrenta cada vez mais problemas complexos e multifacetados, os quais não serão resolvidos apenas com a atuação estatal. Eles exigem múltiplas competências e habilidades. A administração pública solitária não consegue atender as demandas de forma satisfatória. Os desafios terão de ser enfrentados conjuntamente. Governo, não importa a esfera, empresas e sociedade civil, ou seja, primeiro, segundo e terceiro setores juntos. Assim, o desafio implica em participação, articulação e gestão compartilhada de diferentes grupos estratégicos.

Nota-se que não existe ainda o instrumento jurídico adequado para isso, muito menos a denominação mais acertada. Falconer chamou de “gestão de relacionamentos colaborativos complexos”. Já Matias-Pereira de “Parcerias estratégicas flexíveis”. Realmente, a nomenclatura não importa, mas o fato de descobrirmos que o trabalho em conjunto, a troca de experiências, a cooperação, a soma de esforços e competências nos levam a atingir objetivos maiores do que cada ente isolado pudesse sequer imaginar, isso é o que deve ser ressaltado. Assim, não se trata apenas de aporte de recursos financeiros, mas de buscar a solução para problemas, como por exemplo: melhoraria do serviço público de educação, saúde e muitos outros, ou seja, a formulação de políticas públicas transversais e marcadas pela participação ativa de todos.  Talvez seja o grande desafio da gestão pública, da empresa, do terceiro setor e da sociedade.

8.      Bibliografia

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