A IDENTIDADE DETERIORADA PELO ESTIGMA DA LOUCURA EM TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Por Renata Rodrigues | 01/05/2011 | Literatura

A IDENTIDADE DETERIORADA PELO ESTIGMA DA LOUCURA EM TRISTE FIM DE POLICARPO QUARESMA

Renata Rodrigues


Resumo

Pretende-se, neste ensaio, observar a identidade deteriorada pelo estigma da loucura, fazendo uma breve análise do romance Triste fim de Policarpo Quaresma do escritor Lima Barreto (1914), cortejando a vida do autor e do personagem, visto que, se identifica na obra, de certa forma, a biografia de seu autor. Para se cumprir o objetivo desse trabalho fez-se leituras de autores como: Foucault; De Decca e Woodward.


Palavras ? chave: Identidade. Loucura. Razão. Ufanismo.



Policarpo Quaresma, personagem criado por Lima Barreto, surge na literatura brasileira como representante de um grupo anônimo de pessoas que fizeram parte da história da República, os mesmos que tiveram coragem de pensar, criticar, de expor suas idéias, que não condiz com o que a sociedade estipulou de "certo" de "ideal" é considerado como comportamento transgressivo.

Sendo assim, a temática da loucura é utilizada por Lima Barreto para dar corpo e voz a um personagem que questiona leis e valores da sociedade brasileira, por isso, causa ameaça e mal-estar, aos poderosos da Republica de Floriano Peixoto. De acordo com De Decca:


[...] a busca de uma identidade nacional em Policarpo Quaresma assume a dimensão de uma tragédia, a ponto do personagem vir a ocupar, também, um lugar na galeria dos loucos da Republica. O nosso herói é testemunha de um massacre e ao mesmo tempo, é considerado um louco (DE DECCA, 1990, p.49).


A loucura de Policarpo Quaresma, pode-se dizer que é uma metáfora ou estratégia encontrada pelo autor para fazer uma denuncia social e ideológica. Sendo assim, o louco é maleável, manipulável diante das mãos de seu criador. Já o tratamento dado ao louco, mostra como o outro, aquele que não tem voz nem espaço, é visto e representado na realidade e na literatura.

Assim, pode-se dizer que ele é o outro do discurso, aquele de quem se fala, do excluído, enclausurado e perseguido, por um sistema de poder, que neste caso é representado pelo Estado, "figura máxima da alteridade".

Nota-se que existe uma espécie de guerra entre discurso que se divergem do poder, e assim, é desenvolvido uma relação de forças, que estariam em toda parte interferindo na maneira do indivíduo enxergar o mundo, criando verdades e segregando as mentalidades que se diferenciam da maioria na sociedade. Foucault classifica essas atitudes diferenciadas de "loucas".
Observe:

Em toda a sociedade a produção do discurso é simultaneamente controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo numero de procedimentos que têm por papel exorcizar-se os poderes e os perigos, refrear-lhes o acontecimento aleatório, disfarçar a sua pesada e temível materialidade (FOUCAULT, 1997, p.09)


Em triste fim Policarpo Quaresma se observa a visão de um sonhador, de um patriota exaltado, que se deixa dominar pela idéia de um Brasil acolhedor, que vê seu país como um lugar de farturas, facilidades compreensão e amor. Diante dessa "visão ilusória", surge o projeto de reforma nacional. Quaresma prepara-se para a reforma cultural, agrícola e política. Diante desse desejo de ufanista , o país revela-se cruel, opressor, precário e infecundo.

Lima Barreto traveste-se na figura daqueles heróis que lutaram por causas sociais e humanistas. Ao acreditar que podem mudar o mundo, mesmo que a realidade mostre sempre o contrario. E, dessa, maneira, o heroísmo o leve sempre ao caminho da insanidade. Para De Decca:

O discurso psiquiátrico serviu de base para a definição dos perfis desses personagens anônimos que ousaram subverter a ordem estabelecida. [...] Quaresma não foi o único personagem anônimo da história que acabou em um manicômio (DE DECCA, 2000, p.52).

Desta maneira este romance pode ser definido como uma biografia do autor, camuflada pela história de vida do personagem, já que ambos apresentam pontos em comum ? a exemplo da loucura tanto de sue pai como a sua. Nessa construção discursiva, o autor critica a sociedade e denuncia os desatinos da ordem social, política. E, critica o idealismo inconseqüente, que é incapaz de enxergar as verdadeiras dimensões do real. Nesse sentido; "Os discursos e os sistemas de representação constrói os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar" (WOODWARD, 2000, p. 17).

Evidencia-se na obra que a bondade e a pureza de Policarpo Quaresma são confundidas com loucuras. A loucura representa a maneira humanizada de der a sociedade e seu destino. Ela também se configura como denuncia de irracionalidade da própria condição humana. Do homem que vive preso nas relações sociais, tais como: ambição, barbárie, injustiças e maldade. Estes mesmos homens são forçados a ajustar-se aos padrões pré- estabelecidos pela sociedade.

Deve-se observar este fragmento de diálogo entre Genelício, Florêncio e Albernaz, em que tratam dos motivos da loucura de Quaresma:


[...] sabe de uma coisa, general?
O que é?
O Quaresma estás doido.
[...] eu logo vi, disse Albernaz, aquele requerimento era de doido.
[...] fez um oficio em tupy e mandou ao ministro.
[...] nem se podia esperar outra coisa, disse Dr. Florecio. Aqueles livros, aquela mania de leitura...
[...] ele não era formado, para que se meter em livros? (BARRETO, 1997. p.47).


O não enquadramento aos ditames da sociedade levou Policarpo Quaresma a ser enquadrado como louco. O mesmo possui uma conduta racional e objetivo, o qual o leva a loucura diante dos olhos daqueles que se consideram donos da razão.

De toda forma, se observa que a loucura é uma criação cultural, construída por uma rede de discurso, que ganha vida mediante os valores históricos da determinada cultura e sociedade. Para estes, o louco se constitui um desvio, que se opõe a identidade da razão "a verdade da loucura é ser interior à razão, ser uma de suas figuras, uma força e como que uma necessidade momentânea a fim de melhor certificar-se de si mesma". (FOUCAULT, 1997. p.36).

Fica evidente que "nem todos têm o direito de falar", esses direitos são concedidos aos "doutores" que tem sua palavra tomada como verdade. Sendo assim, evidencia-se que esta é uma maneira de controlar a propagação de novos discursos, uma vez que, se limita a quantidade de indivíduos detentores do poder da palavra, ao contrario, esse discurso pode ser "vigiado e punido", a exemplo de Policarpo Quaresma.

O tupi encontrou a incredulidade geral, o riso, a mofa, o escárnio, e levou-a loucura. Uma decepção. E, quando o seu patriotismo se fizera combate, o que achara? Decepções. Onde estava a doçura de nossa gente? Pois ele não o viu combater como feras? Pois não havia matar prisioneiros, inúmeros? Outra decepção. A sua vida era uma decepção, uma série, melhor, um encadeamento de decepções (BARRETO, 1997, p.166).


No discurso patriótico e ufanista desse personagem de Lima Barreto, se evidencia que a loucura atribuída ao personagem é fruto de suas ilusões e sonhos e representa para este, não a verdade do mundo, mas a verdade que se distingue de si mesmo. Para Foucault:


Não é nosso saber que se tem de interrogar a respeito daquilo que nos parece ignorância, mas sim essa experiência a respeito do que ela sabe sobre si mesma e sobre o que pôde formular com relação a si própria (FOUCAULT, 1997, p. 83).


A narrativa segue e o Major Quaresma acredita que a solução para o Brasil deveria vir de uma reforma na agrícola. Então se mudou para o sitio Sossego. Em pouco tempo é vencido pela má qualidade do solo, pelas formigas e pela mesquinharia da política local. Quando perdeu tudo que investiu, voltou para o Rio de Janeiro a fim de salvar a Pátria do perigo representado pela Revolta da Armada, que então surgiu na capital do país. Ao terminar a Revolta da Armada, Policarpo questiona a causa à qual se dedicara toda sua vida:


Iria morrer, quem sabe se naquela noite mesmo? E que tinha ele feito de sua vida? Nada. Levara toda ela atrás da miragem de estudar a pátria, por amá-la e querê-lá no intuito de contribuir para sua felicidade e prosperidade. Gastara a sua mocidade nisso, a sua virilidade também; e agora que estava na velhice, como ela o recompensava como ela o premiava como ela o condecorava? Matando-o! E o que não pandegara, não amara ? todo esse lado da existência que parece fugir um pouco à sua tristeza necessária, ele não vira, ele não provara, ele não experimentara. Desde os dezoito anos que o tal patriotismo lhe absorvia e por ele fizera a tolice de estudar inutilidade (BARRETO, 1997. p.166).


Diante desse contexto, a loucura é apresentada como apontara Foucault "um estágio que antecede a morte" (Foucault, 1997, p. 183). Portanto, os problemas sociais visualizados em Triste Fim de Policarpo Quaresma são o nacionalismo e a loucura do personagem (que se mistura a vida real do autor).

O que se observou ao ler e analisar este romance foram situações simbólicas, ficcionais, que representam as questões nacionais, como também preocupações e reflexões do autor, que surgiu a partir de seu "desajuste" na sociedade em que vivia.












REFERÊNCIAS


BARRETO, Lima. Triste fim de Policarpo Quaresma. São Paulo: o Globo/ Klick Editora, 1997.

DE DECCA, Edgar Salvadori. Quaresma: um relato de massacre republicano. In: Anos 90. Porto Alegre, 1997.

FOUCAULT, Michel. A história da Loucura na Idade Clássica. 1997. São Paulo, Perspectiva.

WOODWARD, Kathryn. Identidade e diferença: uma introdução teórica e conceitual. In: Identidade e diferença: a perspectiva dos Estudos Culturais. Petrópolis: Voxes, 2000.

SANTOS, Nádia Weber Maria, "Você, Quaresma, é um visionário": alma nacional e loucura em Triste fim de Policarpo Quaresma de Lima Barreto. Nuevo Mundo Mundos Nuevos, Debates, 2006, [Em línea], Puesto em línea El 28 enero 2006. URL: http://nuevomundo.revues.org/1513. Consultado em. 23 de outubro de 2010.