A HISTÓRIA E VIDA

Por Ciro Toaldo | 07/02/2019 | História

Marlene, Fabiana, Vanessa e Ciro Toaldo

O artigo “História e vida: o encontro epistemológico entre Didática da História e Educação Histórica”, escrito por Ronaldo Cardoso Alves, aborda uma importante discussão acerca da formação do campo científico da Didática da História na Alemanha, assim como da History Education na Inglaterra e o encontro epistemológico dessas vertentes, acontecido no início do século XXI. Parte desta epistemologia para relacionar o conhecimento histórico às necessidades de orientação dos seres humanos no cotidiano da Cultura Histórica contemporânea. Percorre esse caminho até chegar a um repertório teórico metodológico que possibilita a qualificação das pesquisas de ensino de História no Brasil, com vistas a investigação acerca da escola como um lugar de desenvolvimento da consciência histórica de estudantes e professores.

Em uma das experiências partilhada pelo autor, ele comenta que trabalhou em sala o processo de escravidão no Brasil em dois contextos diferentes da cidade de São Paulo: em uma escola privada, onde os alunos pertenciam à classe economicamente média alta e em uma escola pública, situada em um bairro periférico, composta por alunos pertencentes a famílias de baixa renda. O autor percebeu que nos dois espaços a questão da escravidão foi relacionada à discussão em torno da adoção de cotas raciais por universidades públicas no país. Mas enquanto boa parte dos alunos da escola privada criticava tal política, utilizando como justificativa uma matéria jornalística proveniente de uma revista semanal de grande circulação no país, a maior parte dos alunos da escola pública, defendia a medida, explicando que a desigualdade social por eles vivenciada no cotidiano já era uma justificativa válida. Isso mostra a importância da reflexão histórica para a vida prática.

A relação entre os feitos da trajetória humana no tempo e as diferentes formas com as quais esse percurso foi contado, transmitido e retransmitido ao longo das gerações constituiu a base do pensar historicamente. Nesse sentido o autor pergunta: será que ao estudarmos História em espaços escolares ou extraescolares conseguimos perceber a profunda relação que ela tem com nossa própria vida?

Alves (2013) dialoga com Droysen, um dos principais expoente do historicismo alemão do século XIX que defendia que a linguagem histórica deveria chegar à população de forma palatável, teria que contemplar um grau de cientificismo que outorgasse credibilidade ao narrado.

Se nas ciências ditas empíricas a objetividade obedece a limites impostos pelo rigor do método e pela demanda antecipada colocada pelo objeto de estudo, na ciência histórica a arte reside na relação entre a objetividade (do trabalho metodológico junto às fontes) e a subjetividade (do interpretativo do pesquisador). Subjetividade e objetividade, entremeadas, constituiriam o ato artístico e metodológico de fazer (e viver) História.

O autor concorda que História (como ciência) e vida (prática) sempre estiveram relacionadas, seja no âmbito dos interesses de satisfação das carências de orientação da sociedade, seja na necessidade do estabelecimento de parâmetros que possibilitem fiabilidade às narrativas geradas para representarem essa mesma ação temporal dos seres humanos. E afirma que é nesse contexto que emerge o desafio de compreender as pretensões da racionalidade do pensamento histórico.

Citando o autor contemporâneo Jorn Rusen, Alves (2013) observa que é exatamente a relação entre História e Vida que deve nortear o labor historiográfico sem o qual não haveria sentido construir relacionalmente o conhecimento histórico. Observa também a preocupação dos autores alemães, separados por século, em relacionar História e Vida no contexto do aprendizado na Alemanha.

Com o processo de cientifização da História, inaugurada pelo Iluminismo,
a formação do pensamento histórico e, consequentemente, a construção da
consciência histórica, saiu do espaço público e adentrou paulatinamente ao
espaço privado à medida que se vinculou ao trabalho metodológico criado e
partilhado por especialistas desse tipo de conhecimento. O ato de ensinar, de
transmitir a História às novas gerações - a denominada Didática da História -
sofreu uma espécie de assepsia, pois deixou uma função estruturante na
aprendizagem histórica (mesmo limitada à reprodução de um conjunto de
memórllias do cotidiano prático das pessoas) e se tornou conjuntural (até mesmo
marginal) à medida que lhe foi destinada a pragmática função de treinar
professores que simplesmente deveriam transformar saber histórico acadêmico
em saber histórico escolar.

Uma Didática da História com tais prerrogativas como as demonstradas acima, só poderia cumprir a função de reprodução irrefletida do conhecimento nos bancos escolares. Aos alunos caberia apenas reproduzir a História ideologicamente concebida ideologicamente concebida com vistas à manutenção no poder dos grupos políticos desejosos de ali continuarem arraigados - algo que Rüsen (2007, p.89) chama de “Didática da Cópia”.

A partir disso os Estados modernos, os regimes totalitários e as ditaduras apóiam a construção de um conhecimento histórico que possa transmitir e expandir a ideologia de um pensamento que seja obediente as suas convicções. Divido a  isso seu caráter reflexivo acabar sendo contido. Nessa perspectiva devemos analisar que a disciplina de História deve se concentrar em caminhos que caracterizam o desenvolvimento da cultura histórica nos indivíduos e como os mesmos pode empregar a história em seu cotidiano intra e extra-escolar.

Mas para que essa formação histórica seja plausível é necessário elaborar uma matriz curricular que englobe Filosofia, Historia e Vida Prática, para se ter uma mediação sobre a razão histórica, ou seja, segundo Rüsen enfatiza a importância de um referencial epistemológico para que a Didática da História possa verificar todas as funções e formas de raciocínio contemplando a vida e pratica cotidiana.

Isso estimulou Rusen a elaborar um trabalho com base em todas essas Ciências da Filosofia, da História e da Vida Prática, as realizando em diversos países como Grã-Bretanha, Reino Unido e Alemanha. Tendo como objetivo descrever as ocorrências dos pensamentos históricos dos alunos a partir de analises narrativas investigar as fontes histórica e imaginarias dos alunos. Assim com todas essas pesquisas de investigação sobre o conhecimento da História e metodologias novas implantadas puderam implantar a Educação Histórica que permitem à maturação do raciocínio histórico a avaliação com evidências para comprovar interpretações na construção de uma pluralidade histórica.

Os esforços em prol dos estudos sobre possibilitar a progressão do pensamento históricos nos alunos vieram a partir de outras vertentes dos estudos da cognição histórica na Europa, partindo da necessidade de fortalecer o ensino de História na Grã-Bretanha e autenticar esse campo específico.

Inicialmente, em 1960, com a última fase do “Projeto 13-16” coordenado por Dennis Shemilt desenvolveu-se a utilização de ferramentas do trabalho historiográfico junto a pequenos grupos de professores e alunos (com idade entre 13 e 16 anos) com o fim de modificar a forma pela qual a História era ensinada nas escolas britânicas, com ele o currículo de História foi modificado tendo aderência rapidamente de um terço das escolas britânicas, segundo Peter Lee isso ocorreu porque as crianças passaram a ver a disciplina como sendo interessante.

A partir de então, as pesquisas nesse campo fluíram e cresceram. Em 1996, foi desenvolvido o Projeto Chata, baseado em pressuposto, inicialmente, da Filosofia da História anglo-saxã, junto a um grupo de alunos com idade variando entre seis e quatorze anos e que teve como objetivo estudar a ocorrência de progressividade no pensamento histórico dos alunos através da análise de narrativas construídas a partir da investigação de fontes históricas imagéticas e escritas, os pesquisadores construíram uma metodologia que privilegiava a análise de dados seguindo um modelo conceitual envolvendo diferentes níveis de compreensão, explicação, interpretação de fontes e percepção crítica de diversas narrativas históricas. Concluiu-se que a progressão do pensamento histórico dos alunos é determinada pelo adquirir de habilidades metodológicas que permitem a maturação do raciocínio histórico na avaliação de evidências que comprovem suas interpretações a respeito de uma determinada demanda histórica e não está ligada a idade ou seriação escolar.

Dessa maneira surgiu a denominada History Education (Educação Histórica) que hoje é reconhecidamente campo do conhecimento no Reino Unido e tem se espalhado no mundo, inclusive no Brasil.

Por meio de um percurso diferente da vertente alemã, a Educação Histórica também recusou os denominados saber escolar e saber científico. De um lado, a Didática da História alemã parte da racionalidade histórica, estruturada principalmente no espaço escolar, que relaciona a História às necessidades da vida cotidiana com a finalidade de construir consciência histórica. Do outro lado, a Educação Histórica anglo-saxã, toma a vivência escolar como ponto de partida para a construção do conhecimento histórico, mediada por uma reflexão epistemológica construtora de metodologias que dotem alunos e professores de habilidades e competências históricas que os façam ler e agir no mundo que os cerca.

Num contexto histórico no qual a História tem passado por constantes questionamentos de seu caráter de cientificidade e enquanto disciplina, o intercâmbio de pesquisas dessas diferentes correntes do Ensino de História, ocorrida a partir do início do presente século, tem sido de vital importância para o reconhecimento e legitimação, inclusive política, desse campo do conhecimento científico na Educação. Objetiva-se, portanto, uma formação histórica que compreenda os estudantes não como depositários de conteúdos factuais, mas como portadores de habilidades e competências que os farão enfrentar, crítica e autonomamente, os desafios do mundo contemporâneo.

Nessa linha, a autora portuguesa Isabel Barca tem desde o ano de 2003, coordena o Projeto HICON (“Consciência Histórica – Teoria e Práticas”), composto por uma série de pesquisas desenvolvidas em Portugal, em intercâmbio junto ao Brasil e a outros países de fala portuguesa como Moçambique, Angola e Cabo Verde. A partir da análise das respostas a um questionário que relacionava fontes históricas a diferentes narrativas historiográficas de uma passagem da história portuguesa, construiu um modelo que apresentou diferentes níveis de explicação provisória em História, constatando, assim, a progressividade no pensamento histórico nos estudantes. Seu grupo de investigação expande diálogos acerca da Educação Histórica no mundo ao promover constantes intercâmbios com interlocutores da América (inclusive no Brasil), Europa, África e Ásia, o que a reveste de característica singular.

Esse importante histórico de contribuições em todo o mundo no campo do ensino de História contribuiu para o desenvolvimento de um grande número de pesquisas no Brasil que relacionam a formação do pensamento histórico à sua aplicação prática no cotidiano de pessoas de diferentes realidades socioeconômicas, políticas e culturais.

O conceito de consciência histórica, definido por Rusen, dialoga com interlocutores do contexto histórico europeu. No contexto pós-queda do muro de Berlim (1989) que promoveu a abertura de um novo espaço de mobilidade socioeconômica e, consequentemente o encontro de pessoas com características que as aproximavam e, ao mesmo tempo distanciavam, foi necessário o concerto de pilares epistemológicos da ciência da História que provessem as diferentes gerações (com sua diversidade de características e memórias) de elementos que possibilitassem sua construção identitária individual e coletiva e, paralelamente, auxiliassem em sua orientação prática no tempo, assim como ocorreu na própria Alemanha, na convivência entre habitantes das antigas partes Ocidental e Oriental que, embora tivessem a mesma identidade nacional – todos são alemães - possuíram um passado histórico recente vivido em bases políticas, econômicas e até mesmo socioculturais que os distanciaram perversamente.

Essa situação também demonstrou a necessidade de se discutir os problemas de identidade apresentados por esse processo, no exemplo da Alemanha, era necessário saber que contingências históricas determinaram a diversificação da configuração socioeconômica do país unificado. Expandindo para a Europa, como discutir as demandas de identidade que definem o ser europeu em concomitância com o ser alemão, português, dinamarquês ou turco, se não por uma reflexão a respeito do processo histórico europeu e sua interferência em todas as suas nações?

O processo de globalização ampliou o movimento migratório das nações subdesenvolvidas economicamente para as nações desenvolvidas. No caso europeu, passados mais de vinte anos da queda do muro, gerações de famílias dos antigos países colonizados da África, Ásia e até mesmo da América construíram suas vidas em território de seus ex-colonizadores em busca de uma estabilidade que não possuíam em seus países devido à falta de infraestrutura. Houve também o deslocamento de famílias inteiras vindas dos países que sucumbiram economicamente com a queda do comunismo e ainda passam por conflitos internos de ordem civil.

A atual crise econômica que assola o mundo, resultado de um processo de globalização desregrado, modificou a paisagem humana europeia. Empregos de pouca qualificação passaram a ser disputados até por quem tem qualificação com objetivo de obter mínima remuneração para as despesas básicas.

Ao ser aplicado num contexto brasileiro, o conceito de consciência histórica reedita características semelhantes ao de sua concepção na medida em que suas dimensões continentais demandam discussões acerca da identidade, mas exige também o pensar a respeito da formação de uma consciência histórica dialógica que reflita sobre as diferenças sociais de um país que, embora não tenha sofrido tanto o impacto da atual crise econômica mundial, continua a reproduzir um modelo político e socioeconômico baseado num patrimonialismo que beneficia oligarquias político econômicas em detrimento da ampla parcela mais pobre da sociedade. a discussão em torno da consciência histórica na sociedade contemporânea globalizada passa pela relação que os seres humanos constroem com a Cultura Histórica da qual são participantes.

Como professores e pesquisadores do Ensino de História no Brasil, o encontro epistemológico entre a Didática da História e a Educação Histórica é uma fonte de possibilidades de reflexão, precisamos objetivar a construção de caminhos que qualifiquem a formação histórica escolar, na educação geral do país.

Essa reflexão a cerca da Didática da História e Educação História é feita pela escritora portuguesa Isabel Barca, ela defende que o professor precisa proporcionar aos alunos o exercício crítico para exercer sua cidadania e entender que o conhecimento é uma ferramenta que auxilia grandemente o saber aprofundado.

Este mundo do saber aprofundado, especificamente no campo do ensino da História, processa-se em todo o mundo, inclusive no Brasil onde se desenvolve um grande número de pesquisas relacionadas com a formação do pensamento histórico e sua aplicação prática no cotidiano dos alunos, em suas diferentes realidades.

Obviamente que haverá o reflexo histórico do processo de colonização do decorrer da História que gerou desigualdade socioeconômica, isto precisa fazer parte da discussão da consciência histórica. Lembrando que a Europa, o todo poderoso continente, vive na atualidade um processo de miscigenação, onde as diferentes de etnias não podem ser negadas e nem escondidas, pois fazem parte do contexto social e econômico deste continente.

Também, no Brasil, este processo histórico aconteceu, sobretudo, na transição dos séculos XX para XXI, quando se iniciou um processo de diminuição das diferenças sociais, mas com fragilidades, uma vez que as instituições democráticas e os próprios ditames governamentais relutavam e restringiam as questões da consciência histórica para não se perceber as especificidades.

Em que pese todo trâmite das discussões em torno da consciência histórica na sociedade contemporânea globalizada, não se pode esquecer que ela sempre irá passar pela relação entre os seres humanos que constroem sua Cultura Histórica da qual são participantes. Assim, entende-se que o campo da cultura é a interpretação do mundo e de si mesmo, pelo ser humano, no qual devem efetivar-se as operações de constituição de sentido da experiência do tempo, determinado pela consciência histórica humana, sendo assim, o conceito de cultura está umbilicalmente relacionado à História.

Não se pode esquecer que a cultura histórica apresenta-se aos seres humanos em entrelaçada com a identidade, memória, representação temporal, símbolo, ideologias e outros componentes da cultura que influenciam diretamente a histórica de cada indivíduo.

Outro aspecto que o autor nos faz refletir é que a política também representa uma dimensão da cultura histórica. Quando se reflete que a politica é a arte de relacionar-se, especificamente com o poder, deve se buscar perceber se há legitimidade dos sistemas e organizações políticas das instituições construídas historicamente, pois se alimenta das experiências humanas. Sendo assim, o ser humano ao deparar-se com suas prescrições, os seres humanos podem referendá-las, rejeitá-las, aderi-las ou mesmo revolucioná-las... a consciência histórica, nesse contexto, possibilita aos seres humanos o poder de decidir a respeito da legitimidade dos discursos e ações políticas para a vida prática.

Também é importante lembrar que o conhecimento é importante, uma vez que dá credibilidade que permitem a seleção de experiências a serem interpretadas com o fim de orientação temporal. E, a ciência da História tem papel fundamental para o exercício desse trabalho seletivo e interpretativo, pois fornece métodos de investigação que possibilitam a construção de parâmetros analíticos do material produzido culturalmente.

Muito haverá que crescer o pensamento histórico no âmbito escolar no Brasil, sendo assim, pesquisas deve ser desenvolvido para avaliar e se discutir o que o aluno aprende na escola e sua aplicação no cotidiano vivido por este aluno. Assim, teremos a oportunidade de aprimoramento histórico por parte do aluno para que não prossigamos cometendo tantos erros históricos. Este encontro entre a Didática da História e a Educação Histórica nos fornece refletir sobre o tipo de nação que queremos.

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