A GARRAFA QUE VEIO DO MAR

Por Romão Miranda Vidal | 06/12/2012 | Contos

A GARRAFA QUE VEIO DO MAR

Amanhecia o dia nublado e com ondas orquestrando a sinfonia do vai e volta, demonstrando sua alegria nas espumas brancas e faceiras.

A areia fina e macia úmida suficiente para deixar marcas dos pés. As pegadas ora seguiam em linha reta, ora desapareciam para aparecer novamente em ziguezague.

Era esta sua rotina. Caminhar despreocupada todas as manhãs sem compromisso com o horário. Não agendava nenhum compromisso matutino, pelo simples fato de acordar muito cedo e se dedicar ao que mais gostava de fazer: pesquisar sobre naufrágio de embarcações na costa brasileira e os arrecifes formados pelo afundamento de navios que não se destinavam a serem sucateados.

Não tinha nenhuma ligação com ritos e religiões. A Natureza lhe bastava. Vida quase que espartana. Vivia dos rendimentos de artesanato e dos inúmeros aluguéis que administrava em seu escritório particular em uma das avenidas com vista plena e total para o mar. Despreocupada desde jovem quando adquiriu o primeiro imóvel e em seguida alugou. Com a renda do aluguel comprou um terreno e construiu uma casa. Alugou. E assim foi realizando em não mais do que dez anos um patrimônio equivalente a vinte e três imóveis. Agora com a idade beirando os trinta e oito anos e solteira, mantinha a sua independência social, sexual, religiosa e amorosa, não se preocupava em relacionar o cotidiano da sociedade com o seu cotidiano ambiental. Naturalista? Nem tanto. Indiferente ao que acontecia ao seu redor? Não. Patrocinava e incentivava ações preventivas e defensivas das praias, das restingas, dos mangues, das aves e se preocupava com o padrão de vida dos habitantes nativos das praias próximas à sua casa.

E na manhã nublada, distraída com as ondas no seu constante arrebentar e depois deslizar suavemente com bolhas coloridas, notou que um objeto estranho encalhado na areia. Curiosa empurrou com o pé para ver com mais nitidez. Uma garrafa. Abaixou-se e por simples vontade de ver aquela garrafa, toda cheia de craca e algas com um detalhe a rolha apresentava um lacre vermelho. Olhou, virou e revirou. Retirou um pouco das cracas e das algas com a ajuda da água do mar. Uma garrafa diferente. Robusta, digamos. Não era de levar para casa o que encontrava nas praias. Mas aquela garrafa parecia lhe atrair de forma especial.

A caminhada chegara ao fim. Uma sensação gostosa invadia a sua existência. Pés descalços cheios de areia. Grama suave úmida pelo sereno da madrugada. Pés limpos na bica de água corrente e sentou-se na varanda. A garrafa ali estava. Com auxílio de uma espátula foi removendo as aderências marítimas e depois de totalmente limpa, com muito cuidado retirou a rolha. Não era nenhuma garrafa mágica do Aladim. Olhou e para sua surpresa não escorreu nenhum líquido. Vazia? Mas por qual razão lacrada? Olhou com mais cuidado e um rolinho solto no interior da garrafa. E agora? Como retirar o rolinho? Virou para baixo, bateu no fundo e nada. Solução quebrar a garrafa? Nem tanto. Com um barbante fez uma laçada e tentou uma, duas... dez vezes até que conseguiu laçar o rolinho. Cuidado extremado. Respiração miúda. Aos poucos o tal rolinho foi surgindo. Agora era as mãos que trêmulas puxavam-no para fora. Estava amarrado com um fino fio de seda. Desatou o nó. Era um tipo de pergaminho, mas muito fino, parecia que trabalhado de tal forma que o tornou fino quase transparente. Surpresa total. Uma mensagem escrita em francês. Pouco ou quase nada sabia, a não ser bon-jour e outras coleções de frases. E agora? Izabel! Você ainda leciona francês? Corre aqui pra casa. Urgente? Bota urgente nisto. Um banho frio. Uma xícara de café quente e forte. Sem açúcar. Que loucura é esta? Leia e traduza. Leu. Trêmula e balbuciando palavras desconexas. Branca e suando. Marie Anne Justin, 16 de julho de 1844. Tá louca? Que brincadeira é esta? Não é. Estava dentro desta garrafa. É verdade, olhe no fundo está escrito Bordeaux-France e veja o seu estado. Explicou e convenceu.

Mas é o mesmo nome que o meu e a data de nascimento é a mesma que a minha, com diferença que foi escrita há 168 anos. Coincidência ou não, quem assina esta carta ou algo que o valha tem o mesmo nome que o meu e escreveu esta carta no mesmo dia do meu aniversário, só que há 168 anos passados. Calmas. Refeitas. Resumo da carta. Relata resumidamente que um barco ou um navio de médio porte, com várias famílias, vindos da França, perdeu-se durante uma tempestade no litoral norte do Brasil e ao se aproximar muito da costa, encalhou próximo a uma ilha muito grande e que foram salvos pelos seus habitantes e que escrevia aquela carta na esperança que a garrafa fosse encontrada por alguém e os viesse salvar ou resgatar.

Intrigada. Nome e data nascimento iguais. Mas é a data da última aparição de Nossa Senhora em Lourdes... Iniciou a pesquisa sobre embarcações desaparecidas, afundadas, perdidas, encontradas no litoral brasileiro no ano de 1844. Nada. Capitania dos Portos. Idem. Analisou as finanças. Compromissos. Reserva técnica orçamentaria. Merecia umas férias. Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro. Nada. Marinha Brasileira, também. Telefonou para uma prima que morava em Recife. Hospedagem garantida. Pesquisa novamente na Marinha do Brasil. Infrutífera.  Viajou para Fernando de Noronha. Permanência restrita. Registrou-se com pesquisadora da História do Brasil. Não perdeu tempo. Quer saber a história de um lugar? Procure o morador mais velho e mais antigo. Aonde mora o seu Zé das Tarrafas? Na praia da Biboca. Senta moça. Navio encalhado? Ah! O navio dos “franceis”?. Me alembro sim. Não do navio, mas das histórias que o meu bisavô contava para o meu avô e depois para o meu pai e o meu pai contava para nós. E o navio afundou? Não. Ficou ali encalhado no banco de areia, por quase um ano. Mas na maré alta de agosto do outro ano, na maré da lua cheia, eles conseguiram desencalhar o navio. O meu bisavo e meu avô ajudou a desmontar quase todo o navio. Ficou só no casco. Era um navio de vela, não tinha motor. Na maré vazante todos trabalharam para tirar a areia e fazer um canal bem grande, para quando a maré grande viesse ela conseguisse sair. E saiu? Saiu. Depois ficou mais um bom tempo para ser remontado. Isto levou quase uns oito meses e depois de pronto foram embora. Mas deixaram muita coisa aqui na ilha. Mas qual a razão? Encheram o barco de comida. Tinha de tudo. Só de cambira, era um Deus nos acuda. Carne de porco frita e depois colocada na banha, tinha para um mundão de gente comer. As mulheres faziam uns doces que até hoje a gente faz aqui na ilha. Ah! O que eles levaram também foi pinga. Levaram um monte de rapadura e côco levaram o que tinha. Tudo isso o meu bisavô contava para o meu avô, que contou para o meu pai e ele contou para mim e eu conto para os meus filhos e netos. Agora estou contando para a senhora. O navio tinha tanta comida e bebida que quase não atravessa a barra. O meu bisavô, meu avô e os amigos pescadores, acompanharam o navio até lá longe... mas eles não voltaram. Acho que eles foram pra casa deles. A senhora não acha? Disseram para o meu bisavô que voltariam para buscar e até hoje não vieram. A senhora quer dar uma olhada? Era tudo que esperava. Olha dona, tem uns baús aqui na minha casa e outros na casa do meu filho. Eram seis baús. Abriu o primeiro. Colocadas sobre um estrado encontrou quarenta telas retratando as praias. Chamava a atenção o estado de conservação. Entre uma tela e outra havia uma pele animal. Que é isso? Perguntou. É couro de cabrito curtido e raspado até ficar fininho, fininho. Até hoje a gente faz isso, para usar como camisa. Foram os “franceis” que ensinaram os mais velhos e eles ensinaram “nóis”. E no fundo uma camada espessa de conchas marinhas. Não perguntou. Servia para absorver a umidade. Na outra caixa, telas retratando as pessoas da convivência diária. Outras reproduziam aves, peixes, barcos, pescadores. Ao abrir o último baú e retirar a primeira tela, desmaiou. Acorda dona. Acorda dona foi o que ouviu. A dona tá passando bem? Meio confusa deitada em uma rede, estava cercada pelos familiares do seu Zé das Tarrafas. Voltou ao interior da humilde casa. O sentido era de arrebatação total. Com a tela nas mãos sentou a beira da cama do casal e não acreditava no que via. Dona este retrato é igual à senhora. Sim a retratava como se fosse recente. Mas não. Fora pintado a pelo menos 168 anos. A simplicidade e inocência do seu Zé das Tarrafas era algo de divino. Amanhã nós vamos lá casa do meu filho, para ver umas outras tantas. Não perguntou quantas sabia da limitação. Voltou para a pousada. Não dormiu. Passou a noite a analisar os fatos. A garrafa, a mensagem escrita, a data e o nome. Coincidências demasiadas. A passos apressados dirigiu-se ao encontro agendado. A casa do meu filho fica ali na curva da praia. Modesta, bem arrumada. Panelas de alumínio brilhavam mais que prata. Dava para se espelhar. Um gole de suco de maracujá e os dois baús ali a sua disposição. Abriu e novamente surpreendeu-se. Livros, encadernações, manuscritos e uma preciosidade. O Evangelho Segundo o Espiritismo, em francês, datado de 1864, envolto com várias camadas de couro fino. Raríssimo. Com cuidado foram retirando os pertences. Alguns objetos de uso pessoal, outros de utilidade doméstica. Cuidadosamente embalados.

Ficou para almoçar. Caldeirada com banana da terra cozida e cará com melado. A conversa corria solta. E foi quando chegou a hora de dizer que no prazo de três dias iria embora e gostaria de levar uma lembrança deles, fotografando-os e depois mandaria umas cópias. O percurso até a pousada foi longo. Pensamentos iam a viam. Coincidências mil. Aproveitou à tarde para tomar um reconfortante banho de mar. Voltou para o apartamento para dar uma arrumada nas malas, acessar a Internet e se ligar com o mundo, pois já eram passados cinco dias que se encontrava na ilha. As opções de bares e restaurantes não eram lá muito grande. Gostava de tudo que fosse ecológico e por coincidência havia um deste tipo. Aproveitou para tomar uma caipira com cachaça da ilha e de aperitivo ostras frescas e ostras gratinadas. Jantou tranquila. Dispensou a sobremesa.Saiu para caminhar e quando estava voltando foi surpreendida pela chegada do seu Zé da Tarrafas. Ficou apreensiva com a sua presença. Mas era preocupação atoa.  A senhora vai embora depois de amanhã? Sim. A senhora já vai para a pousada? Posso ir com a senhora? Então vamos. A conversa corria solta sobre as marés, a troca da lua, o vento de oeste, as tartarugas que estavam chegando, os golfinhos e chegaram à pousada. Sentaram na varanda. Uma cerveja? Boa pedida. E então seu Zé o que está deixando com esta cara de preocupado? Nada não. É que o meu filho já tentou tocar fogo nos baús e eu não deixei. Sabe? Ele é meio esquisito, depois que casou com esta mulher crente. A senhora não quer levar para a sua casa? Todos os baús? A senhora é que sabe. Mas o senhor vai me dar mesmo? Vou. Só que tem que ir buscar lá em casa e na casa do filho. Chamou a gerente da pousada. Como falar com o representante da companhia aérea? É ali do outro lado da rua. Espera que eu peço para ele vir aqui. Pois não. Em que posso lhe útil? Explicou da necessidade de despachar oito baús para Florianópolis. Mas que precisava que fossem embalados em plástico e lacrados. E que fossem etiquetadas como “frágil”. Telefonou para a prima em Recife e pediu para comprar dois motores para barco de pesca e despachasse no primeiro voo. Pela manhã foi ao encontro do seu Zé das Tarrafas e o encontrou meio triste. O que foi seu Zé? Moça, não vamos poder sai pro mar. Fundiu o motor do meu barco e o do meu filho está quase indo pro mesmo caminho. E como o senhor vai fazer? Tem que mandar pro continente e vai sair muito caro. Coincidência ou não, havia encomendado os motores. Para prevenir algum contratempo, comprara oito cadeados na loja de ferramentas da ilha e oito sistemas fechaduras presas por parafusos. Uma carroça transportou os seis baús até a loja da empresa aérea. Em seguida foi buscar os dois restantes. Documentação de despacho resolvida. Todos os oito baús plastificados. Seguiriam para Florianópolis no dia seguinte, ou seja, um dia antes do seu retorno. Isto a deixou apreensiva. Muda o dia do despacho. Vai no mesmo voo que eu vou. Assim não haveria separação dela com os baús. Os motores chegaram. Pediu que seu Zé das Tarrafas o acompanhasse na loja da companhia aérea. Não entendia nada a respeito do que estava acontecendo. Quase morre do coração. São para nós? Eu e meu filho? Mas como vamos pagar? É um presente. O senhor não me presenteou com os baús? Então agora eu presenteio o senhor e seu filho com os motores. Abriu aquele sorriso de felicidade e gratidão. Aqui está a Nota Fiscal, saiu no meu nome, só para poder transportar. E outra coisa. No próximo barco grande, o senhor e seu filho vão receber dois barcos de alumínio todo equipado. Mas dona “pro que di tudo isso”?  É que ouvi a voz do coração. Mesmo que o senhor não me tivesse dado os baús, eu lhe daria esses presentes. Mais...dona e coração fala? Fala. Boquiaberto com os motores e agora com o coração que falava, era demais para a sua cabeça. Vou de carreira até a casa do filho, pra morde de ajudá nois leva os motor. Já tô de volta. É um pé cá e outro lá. Deixa disso seu Zé, vamos tomar uma cerveja e comer uns camarões. Eu peço para o pessoal da pousada levar com a charrete. Esquenta não! Parecia que o mundo agora mudara de cor e tom. Tudo era mais leve. As economias foram suficientes para as compras e a estadia. Voaria praticamente direto. Escala em Recife, a tempo de telefonar para os parentes e agradecer os favores. Depois era São Paulo e finalmente Floripa. Estava com a bunda quadrada de tanto ficar sentada. E barrinhas, amendoins e sucos servidos em copos abarrotados de gelo, para economizar no suco deixava qualquer um ... Senhoras e senhores passageiros aqui fala o comandante ...estamos procedendo para o pouso em Florianópolis, temperatura de 25º, tempo limpo. Gostaria de transmitir um recado a nossa passageira Maria Ana Justin, que recebemos via rádio: le navire et son équipage arrivés sains et saufs à Marseille et toujours en voyage, tous les jours vous venez de visiter. Un baiser dans son cœur. Anne Marie Justin. A nossa chefe de cabine irá solicitar o seu enderêço eletrônico, para que possamos enviar a senhora a mensagem. Após o desmbarque por favor entre contato. Boa noite.

 As lágrimas suavemente deixavam seus olhos mais brilhantes. E delicadas se pudessem escrever no seu lindo rosto escreveriam : A vida continua..em um plano mais elevado e cheio de luz.

  Todos os dias ao caminhar pela praia olhava distante, na esperança que um navio veleiro com bandeira francesa apontasse no horizonte..