A Filosofia da Arte de Merleau-Ponty

Por Antonio Djalma Braga Junior | 06/08/2009 | Filosofia

A Filosofia da arte de Merleau-Ponty

Por Antonio Djalma Braga Junior

A obra de Merleau-Ponty é vista sempre como uma conversa com Sartre, filósofo com quem dirige a revista Les Temps Modernes no ano de 1945. Ambos se preocuparam com a questão das artes. No entanto, enquanto a doutrina de Sartre privilegia a literatura, Merleau-Ponty privilegia a pintura: a pintura é a expressão mais clara daquilo que ele quer dizer.

Na França de Sartre havia a idéia de teatro engajado. A literatura era vista como um produto de exportação. Ele publicou na sua revista, Les Temps Modernes, a sua teoria do engajamento, dizendo que a literatura deveria ser uma literatura engajada. Isso gerou uma reação tão feroz que ele achou necessário escrever um livro explicando o que é a literatura.

Sartre acredita que a literatura moderna é um intenso debate. Mas, de que forma a literatura deve engajar-se? Adotando um partido político? Ora, não era bem essa a idéia de Sartre. A leitura "política" da teoria do engajamento era equivocada.

Para Sartre, a literatura é a única arte que lida com o signo. Ela é antes de qualquer coisa uma comunicação que dá a conhecer o mundo de uma forma mais clara. Ela é quem dá comunicação sobre a estética, o belo. A imaginação ganha importância na filosofia de Sartre: ela é quem apreende o objeto. O sujeito só apreende o objeto estético através da imaginação. A literatura é uma especificidade estranha. O texto é aquilo que Sartre chama de análogon, um suporte material, a coisa do ponto de vista físico que está no imaginário. Desta forma, o texto passa a ter a qualidade de ser um objeto estético e irreal, sem perder a sua característica de ser comunicação.

Merleau-Ponty, por outro lado, afirma que há um mundo que está escondido, esquecido e que a ciência prolonga. O olhar da ciência é de um jeito – trata o olhar como objeto. Já o olhar filosófico é visto como uma experiência, e não como objeto. É a partir desta idéia que irá se formar uma filosofia que apreende uma forma concreta, e que não trabalha com abstrações. Este tipo de filosofia visa formular uma experiência do mundo e não explicar o mundo. A tarefa da filosofia é acolher a experiência, este fato originário, este concreto. Assim, como não há uma cor sem superfície, também não há uma apreensão do mundo que não seja total, anterior à abstração. Ser-no-mundo é o todo, e toda separação já é um falseamento da realidade, uma abstração. Portanto, esse sujeito não pode estar separado do mundo.

Ora, se a filosofia se dá a tarefa de recuar ao mundo anterior à abstração, ela, juntamente com a literatura, tornam-se diferentes expressões do ser. Neste sentido, a filosofia tem mais a ver com a literatura – e vice versa – que a ciência, pois a ciência trabalha com abstrações. A tarefa da filosofia é acolher essa experiência do concreto e a metafísica é a manifestação dessa vida humana.

No texto O Corpo como Expressão e a Fala, Merleau-Ponty afirma que a "Palavra tem um sentido". Antes disso, porém, ele apresenta as duas versões sobre a palavra. São as expressões elaboradas pelos intelectualistas e empiristas. Estes caem no mesmo erro: não levam em conta que a palavra tem um sentido. O primeiro acha que a nossa consciência, pensamento, é tal que não é linguageira: eu penso e depois passo a falar. É como se o pensamento viesse antes da palavra. Neste sentido, a linguagem seria uma espécie de roupa do pensamento. Há aqui uma diferença, um espaço entre o pensamento e a linguagem, ou seja, entre a significação e o signo. Já os empiristas afirmam que a palavra desde a infância deixa traços. Nós ligamos estes traços e associamos a um significado. A criança vai construindo a linguagem desta forma. Todavia, também para estes vai haver uma distancia entre a palavra e o sentido. Enquanto que na versão intelectualista há um sujeito pensante e não um sujeito falante, na versão empirista, simplesmente não existe sujeito. Em ambos há uma exterioridade entre símbolo e significado.

Para Merleau-Ponty, nem a palavra é simples veste do pensamento, nem ela é simples articulação devido à associação: a palavra tem um sentido! Dizer isso é dizer que a palavra traz consigo um significado. A palavra conduz o significado. Quando conversamos, eu não ativo o meu pensamento, pego a roupinha e falo. Você que houve, não recebeu o significado. Se assim fosse, a linguagem ficaria no lugar do equívoco. Assim, deve haver uma palavra carregada de pensamento. A significação vem da fala e não da subjetividade, ou ainda, a significação é conduzida pela fala. O sujeito aprende seu pensamento falando. A fala não é a tradução de um pensamento, mas é a realização, a consumação de um significado. Não há fala sem sujeito. Entretanto, o significado não está no sujeito, mas este apreende-o falando. O pensamento não uma representação do qual a palavra é um invólucro inerte.

A fala, porque veicula comunicação, é operação expressiva – na medida em que ela conduz o pensamento, na medida em que o signo tem significado – uma vez que a expressão implica na imbricação entre signo e significado. Deste modo, a significação se encarna na fala e, portanto, a fala não traduz, mas é a própria encarnação do significado, assim como "a significação musical da sonata é inseparável dos sons que a conduzem: antes que a tenhamos ouvido, nenhuma análise permite-nos adivinhá-la; uma vez terminada a execução, só poderemos, em nossas análises intelectuais da música, reportar-nos ao momento da experiência" (MERLEAU-PONTY, 1996, p. 248).

Diante disso, se pode perceber que na prosa ou na poesia, a potencia da fala é a menas visível. E por que menas visível? Porque a fala tem uma especificidade que a distingue da música ou da pintura. Na musica ou na pintura, a obra de arte se exibe nos signos que se apresentam ao sujeito. Geralmente, as pessoas têm a ilusão de já possuir em si o sentido comum das palavras que é preciso para compreender um texto. Tem-se a ilusão de ter o aparato necessário para apreender qualquer texto. Todavia, tais pessoas se esquecem que foi aquele texto mesmo que lhe ensinou alguma coisa, que o significado veio pelo texto. É a virtude do signo, de passar despercebido, que nos causa essa ilusão. Neste sentido que se pode afirmar: eu posso falar a fala. Mas não posso pintar a pintura, ou fazer música sem sons. A fala é tal que a significação parece destacar-se dela, dos signos que a conduzem. É isso que me permite criar a idéia de um pensamento sem fala. Isso só é possível porque a linguagem tem a virtude de parecer destacar-se daqueles signos que a conduzem. Não posso pensar uma música sem sons, mas posso pensar uma fala sem palavras. É por um momento retrospectivo e ingrato que eu penso haver este destacamento.

Portanto, esta idéia é uma ilusão retrospectiva. Merleau-Ponty percebe que a ilusão intelectualista é bem fundamentada, eles se aproveitam da virtude da linguagem de fazer-se despercebida. Eles perceberam que existem falas que são faladas, ou seja, a significação está dada, já foi falada, e justamente por isso posso ter a ilusão de pensar sem fala; e que existem, também, palavras que são falantes, que são formuladas pela primeira vez.

Merleau-Ponty percebeu que "toda linguagem se ensina por si mesma e introduz seu sentido no espírito do ouvinte" (1996, p. 244). Há, no entanto, uma diferença em relação a prosa e a poesia. Neste caso, "a potência da fala é menos visível, porque temos a ilusão de já possuirmos em nós, com o sentido comum das palavras, o que é preciso para compreender qualquer texto" (MERLEAU-PONTY, p. 244). Ele viu que se faz necessário estar diante do texto para começar a animar aqueles traços negros sobre um papel branco. Porém, em algum momento, o texto vai te ensinar algo. "Há portanto, tanto naquele que escuta ou lê, como naquele que fala ou escreve, um pensamento na fala que o intelectualismo não suspeita" (MERLEAU-PONTY).

Assim, nota-se que a significação é inseparável dos signos que a conduzem. Ocorre o mesmo com a percepção, com a coisa percebida. É a operação expressiva que realiza ou efetua a significação e não se limita a traduzi-la somente.

Desta forma, vê-se que o mundo é expressivo, mas nem toda percepção é atenta aos detalhes. Merleau-Ponty diz em sua obra Conversas que enquanto estamos em uma postura prática ou utilitarista, pensamos ser este mundo da percepção como o melhor que nós temos. Todavia, se deve reaprender a ver o mundo. A perspectiva prática ignora o mundo e reaprender a ver o mundo vai implicar em uma suspensão desta atitude prática e utilitária.

Este é um paradoxo, pois, para restituir ao mundo que se vive a sua utilidade, se faz necessário suspender a atitude prática e utilitária. Há uma necessidade de reaprender a ver aquilo salta aos olhos, que é visível. Assim, o pintor é aquele que se entrega ao mundo visível. No esforço para fazer reviver o mundo perdido, o artista recorre à pintura, uma vez que a pintura se consagra interiormente ao mundo sensível. Os temas da pintura são os elementos do mundo visível, do mundo da percepção, como as luzes e as cores. O pintor rumina o mundo e justamente por isso, Merleau-Ponty diz que se deve reaprender a ver o mundo.

Mas por que é necessário despertar este mundo da percepção? Ora, esse mundo é fluente, está acontecendo e terá uma forma temporal; é indócil aos conceitos e não se deixa apreender, se aprisionar pelos conceitos. Os conceitos aprisionam este despertar. A minha vida retém o passado. Eu tenho de estar no presente, sendo presente, mas retendo o passado.

A filosofia e as artes modernas tem a função de despertar este mundo originário, sensível, o mundo da percepção. Isso não é falar do mundo, mas é fazer o mundo falar. Merleau-Ponty suspende tudo aquilo que a ciência nos diz. Ele vai lidar não com conceitos, mas com fenômeno, com aquilo que se manifesta, que se mostra. Quando se tenta ajeitar, medir, comparar as coisas, já se está objetivando-as. Ele não objetiva o mundo, mas lida com ele como um fenômeno. Dessa forma, o pintor rumina o mundo e ele faz de tal forma que ele para de falar do espaço e da luz, mas faz o espaço e a luz falarem. Tudo se passa como se esses meios visíveis apresentassem ao mundo o que eles são de fato: a pintura vai fazer a paisagem falar; a montanha se vai mostrar montanha aos nossos olhos.

A pintura moderna se dá a tarefa de retomar a perspectiva da experiência do olhar: ela descreve os fenômenos. Em A dúvida de Cézanne, Merleau-Ponty descreve bem essa idéia: o Cézanne não pensa a paisagem, a paisagem pensa-se nele e ele é a consciência (2004, p. 133).

O pintor começa a animar a paisagem. Porém, em um determinado momento, a paisagem o conduz a um lugar que ele não conhecia. Portanto, nota-se que a obra carrega consigo significação.

Assim sendo, ao término desta reflexão, podemos concluir que ambos os autores – Sartre e Merleau-Ponty – se preocuparam com a questão das artes, vendo nelas uma forma de dizer aquilo que se quer dizer. Todavia, enquanto Sartre privilegia a literatura, Merleau-Ponty privilegia a pintura. Sartre vê o sujeito como alguém que cria a obra e como alguém que dá sentido a obra: o sujeito é doador de sentido. O artista se faz criador para constituir o texto como um objeto estético. Já para Merleau-Ponty, o sentido está nas coisas mesmas e não é dado pelo sujeito. O sentido não vem da cabeça, mas está no mundo. A ambigüidade está em que precisa existir sujeito para perceber o mundo. No momento em que o sujeito abre as coisas ele se deixa também ser levado pela coisa. O significado é sensível, e por isso é percebido. Assim, o pintor ideal é aquele que ao animar o mundo, se deixa ser conduzido pelo mundo. Através do pintar o mundo se desvela. Há em Merleau-Ponty uma descentralização do sujeito.

Sartre privilegia a literatura e afirma que é na prosa que se vê a relação entre signo e significado: vê-se aí uma configuração ideal de sujeitos livres; Merleau-Ponty privilegia a pintura e diz que no projeto de restituir ao mundo, à coisa percebida, a sua especificidade própria, já há a descentralização de sujeito, sendo a pintura, mais que tudo, quem tematiza as coisas do mundo.

De tal modo, vemos que cada qual privilegia uma coisa em função da justificação de seu projeto filosófico.

BIBLIOGRAFIA

MERLEAU-PONTY, Maurice. Fenomenologia da Percepção. São Paulo: Martins

Fontes, 1996;

______. Conversas - 1948. São Paulo: Martins Fontes, 2004;

______. O Olho e o Espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004;

SARTRE, J. P. O Imaginário: Psicologia fenomenológica da imaginação. São Paulo: Ática, 1996;

______. Que é literatura? São Paulo: Ática, 1999;

SILVA, F. L. Ética e literatura em Sartre: Ensaios introdutórios. São Paulo: Unesp, 2004.