A FESTA DE ANIVERSÁRIO
Por Vania Gomes da Silva | 12/04/2010 | ContosA festa seguia alegre. Sentada em uma confortável poltrona na mesa principal do salão, sendo servida antes de todos os convidados, Dona Dalva era a estrela do dia: era seu aniversário e ela completava 80 anos! Estava bem satisfeita em ver que a família crescera e estava reunida para comemorar!
Ao seu lado estava sentada a filha mais velha, Francisca. Como sofreu esta mulher! Foi o braço direito de Dona Dalva, desde que o marido a abandonara com os nove filhos. Naquela ocasião, ainda novinha, Francisca começou a trabalhar como empregada doméstica na casa de um desembargador. Todo final de mês, ela entregava o salário que recebia à mãe, para ajudar nas despesas. Teve sorte: quando o desembargador mudou de comarca, arranjou para Francisca um cargo no almoxarifado de uma repartição pública. Casou-se com um traste alcoólatra, acabou criando sozinha os três filhos que teve e somente há pouco mais de dois anos conseguiu divorciar-se do marido. Finalmente, Dona Dalva pôde sentir que sua filha estava tendo uma vida tranqüila.
Mais adiante, conversando animadamente com o marido de sua neta mais velha, estava seu filho João. Também trabalhou muito na vida. Começou como servente de pedreiro e hoje era mestre de obras, conhecido e procurado na região. Estava casado pela segunda vez e sua filha caçula cursava matemática na universidade. Uma neta universitária! Isso enchia Dona Dalva de orgulho!
- Dona Dalvinha! Me dá um beijo, gostosa!
Dona Dalva esboçou um sorriso para o filho Jorge, atrasado e brincalhão como sempre. Trabalhava bastante, mas não conseguia juntar dinheiro algum. Sempre morou de aluguel, mudando-se de um lugar para outro da cidade. Sua esposa, uma mulher folgada e que se vestia vulgarmente, gastava todo o dinheiro em roupas e maquiagem. Tiveram dois filhos: dois jovens aborrecidos e metidos, como a mãe! Jorge deu um beijo estalado no rosto de Dona Dalva, que brincou como se limpasse o excesso de saliva. Todos na mesa riram. Joênio, o irmão gêmeo de Jorge aproximou-se para dar-lhe um abraço. Como se amavam esses dois! Joênio tivera melhor sorte: casara-se com uma moça que era professora na rede estadual, trabalhadora honesta e inteligente. Tinham três filhos e o caçula era um temporão que estava com doze anos. Dava o mesmo trabalho que o pai dera à Dona Dalva: não gostava de estudar, saía pela rua à tarde e voltava só à noite, arrumava encrenca por onde passava. A diferença é que fazia as má-criações sozinho e o pai, juntamente com o tio Jorge deram preocupação em dose dupla para a mãe. Dona Dalva rezava para que o menino fosse melhor do que o pai que, apesar de ser um bom homem, não parava muito tempo nos empregos que arranjava e já houve época que praticamente viveu à custa da mulher. Esse tempo já havia passado – Joênio encontrou-se na “profissão” de marido de aluguel.
Dona Dalva sentiu um gostoso abraço pelas costas. Conhecia aquele perfume. Era sua filha Josefa, a doce Zefinha. Criou os quatro filhos sozinha, já que o marido morrera assassinado quando as crianças ainda eram pequenas. Zefinha, a exemplo da mãe, começou a trabalhar como diarista e, nas horas vagas, fazia encomendas de bordado. Com muito sacrifício, seus filhos completaram o ensino médio e todos estavam empregados. Decidiram que a mãe não trabalharia mais e sustentavam a casa, pagavam um plano de saúde e ainda viajavam com ela de férias. Zefinha tinha uma família linda, não podia ser diferente. Dona Dalva olhou para a filha que beijou-lhe carinhosamente a face:
- Está gostando da festa, mãe?
Dona Dalva fez que sim com a cabeça. Não podia haver maior felicidade do que ter toda a família reunida, mas faltava uma pessoa.
- Sinto falta apenas de Antônio, Zefinha.
- Ele não se esqueceu da senhora, mãe!
- Eu sei disso, filha. Ele me liga todos os domingos!
Foi quando Dona Dalva ouviu aquela voz macia e calma. Um silêncio tomou conta de todo o salão e seu filho Antônio desejava, junto com a esposa e os netos, um feliz aniversário à mãe, do telão à frente. Ele enviara um vídeo da Austrália, para onde havia partido há quase quinze anos. Voltara para visitar os parentes apenas duas vezes, mas sempre telefonava e mandava cartas e fotos para Dona Dalva. Era trabalhador e vivia bem por lá. Foi ele que mandou dinheiro para o cateterismo que Dona Dalva precisou fazer há dez anos. Pagou todas as despesas sozinho e ligava todos os dias para saber da mãe. Era um bom filho e Dona Dalva sentia falta dele. Uma lágrima caiu de seus olhos. Foi quando ouviu aquela canção que tanto a emocionava, do Herivelto Martins e era seu filho Mário que estava cantando. Como tinha o dom da música esse menino! Cantava no coral da igreja, onde também aprendeu a tocar violão. Não se casou. Nunca levou namorada
Dona Dalva sentiu uma mãozinha quente apertando a sua. Era Tiago, o filho caçula de sua filha Madalena. Madalena casara-se bem. Seu marido, Luciano, era funcionário público do departamento de trânsito do estado. Não era rico, mas ganhava o suficiente para que os filhos estudassem em escola particular e Madalena não precisasse trabalhar. Foi este seu genro que percebeu que Dona Dalva estava enxergando mal e rapidamente arranjou uma cirurgia de catarata pelo SUS, pois ele conhecia um bom médico oftalmologista. Não fosse por esse genro, Dona Dalva estaria cega.
- A dama me dá o prazer dessa dança?
- Oh! Claro que sim! – respondeu Dona Dalva, segurando a mão de Luciano. Com seus passinhos curtos dançou uma valsa com genro. Todos ao redor dançavam e de repente, Dona Dalva viu-se nos braços de João, depois, dançou com Jorge – que agarrava e a rodopiava em seus braços, com Joênio e finalmente com Mário. Estava feliz, mas cansada e pediu para sentar-se.
Madalena sentou-se a seu lado e segurou sua mão. Dona Dalva estava feliz. Sim, era uma vencedora: abandonada pelo marido aos trinta e poucos anos, com nove filhos, cuidou de todos. Nenhum morreu, apesar de faltar comida em casa alguns dias. Fazia faxinas nas casas dos bairros nobres da cidade e à noite costurava para fora. Se Francisca e João não a tivessem ajudado, talvez não conseguisse criar todos aqueles filhos com saúde. Foi difícil, mas ela conseguiu e tinha orgulho de sua família. Quando seu marido morreu, há uns quatro anos, a notícia chegou até seus filhos. Francisca e Zefinha choraram. Os rapazes não se importaram. Tinham muita raiva do pai e diziam que abandonar uma mulher com filhos pequenos não era coisa de homem. Liduína foi indiferente à notícia, pois sempre admitiu que não tinha pai. Surpreendente mesmo fora a reação de Madalena. Ela não tinha uma lembrança sequer daquele homem. Se o visse nas ruas não o reconheceria, mas chorou sentida a morte do pai. Francisca, Zefinha, Madalena e Luciano foram até o interior do Sergipe enterrá-lo. Nessa ocasião, Luciano descobriu que ele era aposentado e conseguiu inscrever Dona Dalva como pensionista, viúva. Dona Dalva achava graça: vivera a vida inteira como viúva de marido de vivo e agora a pensão do traste a amparava na velhice.
Dona Dalva percebeu que todos se achegavam a ela. Ouviu João dizer: “Vou chamar uma ambulância! Não fiquem em cima dela, ela precisa de ar!” Uma dormência tomou conta de seu corpo. Madalena continuava segurando sua mão, agora chorando, dando tapinhas leves no rosto da aniversariante e dizendo repetidamente: “Mãe! Fale comigo, mãe! Está me ouvindo?” Francisca abanava-a com um leque e Zefinha segurava sua outra mão, enquanto Liduína tentava afastar as pessoas. “Não, Lidu! Quero todos perto de mim!” – pensou Dona Dalva, mas não conseguiu balbuciar palavra, apenas sorriu. Pôde ainda ver Jorge e Mário ajoelhados a seus pés e o olhar preocupado de Joênio. Que sensação prazerosa era aquela! Apesar do cansaço e da pequena falta de ar que sentia, uma paz enorme invadia seu espírito, seus filhos estavam ao seu redor e isso era muito bom. As vozes estavam ficando cada vez mais distantes, a dormência aumentava e tudo silenciava enquanto uma luz branca inundava seu ser...
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Brasília, 12 de abril de 2010.