A Fé se Fundamenta na Palavra, Não nos Milagres de Jesus
Por Geraldo Barboza de Carvalho | 23/04/2009 | BíbliaA fé se fundamenta na Palavra, não nos milagres de Jesus
Geraldo Barboza de Carvalho
Não basta ver para crer. Aliás, não é preciso ver para crer. Pois os olhos da fé não são os olhos carnais e psíquicos, mas os do coração. "A gente só vê bem com o coração. Felizes os que não vêem e crêem". Se ver bastasse para crer, os que viram os sinais que Jesus fez teriam crido nele, não traído. É que, vendo os curas e prodígios que Jesus realizava, não foram capazes de ver neles a presença do Reino, por terem o coração de pedra: faltavam-lhes os olhos da fé. Os sinais que Jesus fazia visavam despertar para presença de Deus os corações adormecidos pelas preocupações do mundo, mas tinham sede de Deus. Ora, os que mataram Jesus estavam mortos na fé por estarem presos nas malhas da Lei e do mora-lismo sem misericórdia: nem os sinais da presença do Reino os acordaram. Ora quem crê não precisa de prodígios para crer. Ao velho Simeão bastou a presença do menino Deus para crer nele: "Ele era piedoso e justo (pela fé), esperava a consolação de Israel e o Espí-rito Santo estava nele. Fora-lhe revelado pelo Espírito Santo que não veria a morte antes de ver o Cristo do Senhor. Movido pelo Espírito Santo, ele veio ao Templo, tomou o meni-no Jesus nos braços e a Deus bendisse dizendo: Agora, soberano Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra; porque meus olhos viram a tua salvação, que preparaste em face de todos os povos, luz para iluminar as nações, glória do teu povo, Isra-el". Mas o servo do centurião romano, que era pagão, incircunciso, não careceu da presen-ça física de Jesus para crer que ele curaria seu filho: bastava-lhe a credibilidade da palavra de Jesus para crer que o Reino de Deus havia chegado. "Senhor, eu não sou digno de que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e meu filho ficará curado". Sua fé era implícita, mas era pura, brotada da certeza existencial da presença atuante de Deus em Je-sus. Jesus é a encarnação do Reino de Deus e quem acreditar nele estará de cheio no Reino de Deus. "O Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho". Que boa notícia? A presença acolhedora de Jesus entre nós é a notícia sempre nova, que nunca sairá das manchetes. Mas, para vê-la é preciso mudar o olhar da carne para o espírito, converter-se, "nascer da água e do Espírito". A distância entre o Reino de Deus e nós é medida pelo tamanho da nossa fé. Quem tem fé o verá; quem não crê o ignora. Não se trata de distância física, mas do coração. "Vós me louvais com os lábios, mas vossos corações estão longe de mim. A gente só vê bem com o coração". Por isso, a exemplo do centurião, a resposta do fiel à ação de Deus no mundo e na sua vida é a entrega confiante a Jesus vivo entre nós e aos lugares teologais (valores do Reino) e a prática do amor fraterno, como sinal da autenticidade da nossa fé. A fé gera confiança e afasta o temor no que crê. "A fé é a posse antecipada do que se espera, um meio de demonstrar as realidades que não se vêem". O relacionamento correto do ser humano com o Deus invisível, mas presente, é pela fé, sem exigência de prodígios. São falsas outras formas de comunicação com Deus. Quem crê não precisa de provas milagrosas para crer: seria uma afronta à veracidade da Palavra divina. Os que precisam ver para crer jamais crerão. A fé é para quem não vê, mas sabe que está em comunhão íntima com Deus. A fé se apóia unicamente na Palavra fidedigna de Jesus, oenviado fidedigno, a testemunha fiel do Pai, sem exigência de milagres. Crer na ação per-manente de Deus na sua vida, este é o verdadeiro milagre. Para quem tem fé os milagres são normais, pois o Deus da fé é vivo e está em comunhão conosco. Extraordinários são os sinais do milagre permanente. Eles visam reavivar a fé dos mornos ou despertar a fé nos descrentes. Mas quem crê não carece de sinais da presença do Amado para crer nele, pois já vive o milagre da sua presença pela fé. Se o temos conosco pela fé, que necessidade ain-da temos de sinais comprobatórios da presença dele? Se temos Amado conosco, não preci-samos de sinais para percebê-lo. "Eu não vos deixarei órfãos, mas vos enviarei Deus Mãe, que estará sempre convosco. Eu mesmo estou (verbo no presente) convosco todos os dias até o fim". Será que Jesus tem credibilidade para dizer isto, ou é conversa fiada? "Deus de-monstra seu amor por nós pelo fato de Cristo ter dado a vida por nós quando ainda éramos pecadores. Quem não poupou o próprio Filho, mas o entregou por todos nós, como não ha-verá de agraciar-nos em tudo junto com ele". Precisa de mais prova além da Palavra ho-nesta de Deus? Tomé foi repreendido porque exigiu provas da palavra dos condiscípulos que lhe afirmaram ter visto Jesus ressuscitado. Quando estava com os Doze, Jesus garan-tiu-lhes: "Ide e anunciai a boa nova de Deus-Conosco a toda criatura. Quem vos ouve, me ouve, quem me ouve, ouve o Pai que me enviou". Mas Tomé bateu pé: Quero prova. Se eu não vir em suas mãos o lugar dos cravos, não puser meu dedo no lugar dos cravos e minha mão no seu lado, não crerei". Oito dias depois apareceu Jesus a Tomé com os outros discí-pulos e atendeu a seu pedido, visando reavivar sua fé abalada pelo escândalo da cruz. Je-sus o fez ver que o Ressuscitado é o mesmo Encarnado e Crucificado. "Põe teu dedo aqui, vê minhas mãos! Estende tua mão e põe-na no meu lado, não sejas incrédulo, mas crê". Satisfeito, Tomé vibrou: "Agora, sim. Meu Senhor e meu Deus! Jesus lhe disse: Porque viste, creste. Felizes os que não viram e creram". Balde de água fria na exigência ingênua de Tomé. Na aparição aos discípulos de Emaús Jesus só esteve visível até quando o reco-nheceram pelo gesto paradigmático de repartir o pão. Jesus sentou-se à mesa com eles, "tomou o pão, abençoou-o, depois partiu-o e distribuiu-o a eles. Então seus olhos abriram-se e o reconheceram; ele, porém, ficou invisível diante deles". Quando reconheceram Je-sus pela fé, ele tornou-se invisível. Uma vez abertos os olhos da fé pelo estímulo dos sinais da presença de Jesus, a visão dele tornou-se supérflua. A percepção pela fé da presença de Jesus dispensa sua presença física. O sinal dado por Jesus foi o mesmo da primeira ceia da nova aliança: a fração do pão, do lava-pés e do discurso escatológico alguns dias antes da paixão: "Dei-vos o exemplo, para que, como eu fiz, o façais vós também: Eu tive fome (de toda espécie de pão: respeito, amor, comida) e me deste de comer. Eu estava prisioneiro (da ignorância, do preconceito) e foste visitar-me" (Mt 25,31-46). Tudo isto é partilha do pão, é comunhão com Jesus, que comungou das nossas desgraças para fazer-nos comungar da vida gratuita da SS Trindade. Ao comungarmos a hóstia consagrada, esqueçamos a par-tícula de pão e entremos em comunhão com a Pessoa de Jesus presente na comunidade de fé. Hóstia e vinho consagrados são sinais eficazes, símbolos da presença de Jesus conosco. Se não formos além do sinal sacramental, estaremos praticando idolatria da hóstia consa-grada e comunhão alguma terá havido com Jesus. Pois, através e para além do sinal euca-rístico, é a Jesus mesmo que aderimos pela fé e passamos a viver da vida dele como os ra-mos vivem da seiva da videira, os membros vivem da vida do Corpo, as pedras compõem o Templo que é Jesus. Este é o grande milagre: a atuação transformadora de Jesus Cristo na nossa vida pela fé que vai além dos sinais sacramentais, mediante os quais Jesus comu-nica-nos sua vida e nos capacita a realizar as obras que ele realiza. Portanto, os sinais não são exibição do poder de Deus pra deleitar curiosos sedentos de fantasia, como a palha-çada que Satanás queira que Jesus fizesse após 40 dias de jejum e a prova sob encomenda da sua divindade que os judeus queriam forçar Jesus a dar como condição para crer nele. Em ambos os casos, Jesus se negou a exibir em espetáculo o poder de Deus. Mas, ao con-trário das fúteis expectativas, ele revelou o poder de Deus pelo escândalo da cruz. "Os judeus pedem sinais e os gregos andam ávidos de sabedoria; nós porém anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gregos, loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder e a sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte que os homens". 'Humanamente, a cruz aparece como o contrário do que judeus e gregos esperavam: derrota, em vez sinal da glória de Deus; loucura em vez de sabedoria. Mas, na visão da fé, ela apresenta-se como algo que preenche e ultrapassa as expectativas: poder e sabedoria de Deus. Judeus e gregos buscam seguranças humanas: milagres que garantam a veracidade da palavra de Jesus; sabedoria satisfatória pra inteligência ávida de conhecer. Essa procura não é condenável em si mesma; paradoxalmente, a cruz de Cristo responder-lhe-á. Porém, se o homem fizer dessa busca a condição prévia e indispensável para crer em Jesus, ela se torna inadmissível'. Quem condiciona a fé a milagre, jamais crerá. A fé fun-damenta-se única e exclusivamente na Palavra fidedigna de Jesus, o ponto de chegada de toda a revelação veterotestamentária. Milagre é para despertar a fé dos ímpios; mas, quem crê não precisa de milagre, pois já está em comunhão com o Autor da fé e dos milagre.
Milagres são manifestações esporádicas do poder invisível sempre atuante de Deus na criação e na história. Na verdade, o que se costuma chamar de milagres são sinais visíveis, audíveis e táteis da ação permanente da SS Trindade na criação e na história. "Meu Pai tra-balha até agora e eu também trabalho. Teu guarda jamais dormirá. Não dorme nem cochila o guarda de Israel. Ele dá o pão aos filhos e filhas até enquanto dormem. O Senhor é o teu guarda, tua sombra, ele está a tua direita. De dia o sol não te ferirá nem a lua de noite. Ele te guarda de todo mal, ele guarda a tua vida. Ele guarda tua partida e tua chegada" Jo 5,17; Sl 120 (121),4; 126 (127),2. Eis o milagre permanente, só perceptível pela fé. Os sinais do milagre são esporádicos, variados e observáveis. "Ele era cego e agora vê; era paralíti-co, surdo e agora anda, ouve; ela estava morta e agora está viva". Os sinais são efeitos ob-serváveis do permanente milagre de Deus na vida, na criação, na história. Os sinais todos podem ver; o milagre só os que crêem: os que são movidos e motivados pela fé. Milagre vem de "mirabilia Dei", as maravilhas de Deus. Só os que crêem podem ver as maravilhas de Deus, os milagres, lá onde não há sinal algum da presença dele. Vez ou outra, para des-pertar a fé dos que não crêem, para sensibilizar os corações de pedra para as maravilhas de Deus nas suas vida, na criação e na história, Deus dá sinal da sua presença ativa no meio do seu povo. "Vendo os sinais que fazia, muitos creram em seu nome" Jo 2,23. O maior si-nal da presença de Deus entre nós é Jesus Cristo, o enviado do Pai. "Deus pôs nele o seu sinal". Qual o sinal de Deus? A misericórdia, o acolhimento. Basta olhar para Jesus, e se vê nele as mesmas coisas que o Pai faz por nós: "Ele é bom até para os maus e ingratos". A missão de Jesus não é fazer milagres, mas revelar ao mundo que o Pai nos ama e perdoa. É restituir-nos a auto-estima e dignidade perdidas pela loucura do pecado. Restituir-nos di-gnidade e auto-estima é predispor-nos para a fé. Crer é assumir a própria vida apoiado no poder que o Criador pôs em nosso ser ao criar-nos; é assumir as capacidades que Deus nos dá para realizar na história as mesmas coisas que ele realiza, sem necessidade de milagres. "Quem crê em mim faz as obras que eu faço, fará até maiores". Quem vive em busca, tem mania de milagres abdicou da dignidade que Deus lhe deu, esperando que ele faça aquilo que nos compete fazer. Deus não fará por nós nada que nos compete fazer. Gente aco-modada e sem fé vive à cata de milagres, de exibição do poder de Deus. Jesus não gostava nada disto nem fazia milagres sob encomenda. Ele não curou todos os doentes, só alguns, para despertar a fé do beneficiário em si mesmo e em Deus. O papel de Jesus não é substi-tuir-nos no que podemos fazer e dizer, mas despertar nossa auto-estima e capacidade. "Le-vanta-te e anda, tua fé te salvou, te curou, te restituiu a auto-estima. Como o Pai me envi-ou, eu vos envio também. Quem vos ouve me ouve, quem me ouve, ouve o Pai que me en-viou". Quando "os escribas e fariseus tomaram a palavra dizendo: Mestre, queremos ver um sinal feito por ti, Jesus replicou: Uma geração má e adúltera busca um sinal, mas sinal slgum lhe será dado, exceto o sinal do profeta Jonas. Pois, assim como Jonas esteve no ventre do monstro marinho três dias e três noites, assim ficará o Filho do Homem três dias e três noites no ventre da terra. Quando eu for elevado da cruz, atrairei todos a mim: Olha-rão para aquele que traspassaram e o lamentarão como se fosse um filho único; eles o cho-rarão como se chora sobre o primogênito" Mt 12,38-40; Jo 12,20; Zc 12,10. Ora, os judeus olharam para o Crucificado, mas não viram nele o Filho de Deus, porque não tinham fé. Zombando dele, cinicamente o desafiaram: "A outros salvou; salva-te a ti mesmo, des-ce agora da cruz, para que vejamos e creiamos" Mc 15,32. Ora, a fé vai além da visão na-tural e dos sinais. Vemos os sinais, cremos no Sinalizador. Vemos e comemos pão e vinho consagrados, cremos na Pessoa de Jesus além dos sinais do pão e vinho. "O Criador pôs sua luz, derramou o Espírito Santo em nossos corações para nos mostrar a grandeza das suas obras" Sb 13,1; Rm 5,5. A fé é, pois, a presença da vida divina em nós, que capacita-nos a ver e fazer ações divinas que os olhos carnais não enxergam. Quem precisa de mila-gre para crer, simplesmente não crê. Tomé exigiu tocar Jesus ressuscitado para crer nele. Jesus permitiu, mas repreendeu Tomé: "Porque me viste e tocaste, creste. Felizes os que não viram e creram" Jo 20, 28. A fé se fundamenta na Palavra fidedigna de Jesus e de toda a Escritura. Fé é antes de tudo conhecimento e certeza sobre as coisas reveladas. Crer não é sentir, mas aderir a Jesus apoiando-se unicamente na fidedignidade da sua Palavra. Mes-mo que eu nada sinta, que Deus pareça ausente, sei que está comigo, porque sua Palavra o garante: "ESTOU (não, estarei) convosco todos os dias até o fim dos séculos". Não se trata de conhecimento teórico, mas certeza existencial, da experiência vivida de Deus, contra todas as evidências empíricas da sua presença. Crer é acolher amorosamente a Palavra de Alguém que prova o que diz pelo que faz por mim e desperta em mim o sincero desejo de viver os valores que ele viveu e tornar-me semelhante ao autor e Doador da fé. "Se creres verás a glória de Deus", isto é, o poder de Deus em ação na vida e história humana. "A Pa-lavra divina se fez carne e habitou entre nós; e nós vimos a sua glória, glória que ele tem junto ao Pai como Filho único, cheio de graça e de verdade" Jo 1,14; 11,40. Que glória nós vimos? A generosidade de Alguém que, "sendo rico se fez pobre, para nos enriquecer com seu despojamento. Sendo o Senhor todo-poderoso, fez meu servidor. Tendo a condição di-vina, não considerou o ser igual a Deus como algo a que se apegar ciosamente. Mas esva-ziou-se a si mesmo, assumiu a condição de servo, num corpo semelhante ao nosso corpo de pecado, fazendo-se pecado, maldição, ele que é o santo de Deus, para destruir o pecado pela entrega á morte do seu corpo em favor dos irmãos pecadores". Existe algo mais glori-oso do que isto? A glória do mundo é feita de confete e bajulação. A glória de Deus mani-festou-se na ignomínia, na inglória da cruz. Expressão extrema de amor por quem merece rejeição, julgamento implacável, morte. Ao invés, sua morte nos deu vida, mediante a fé.