A Face Da Loucura
Por Diego Santos | 25/05/2008 | ContosEscrevo esta carta com o objetivo de relatar eventos os quais tive o desprazer de presenciar enquanto de minha estadia em meio a Floresta Equatorial da Amazônia. Cheguei aqui no dia 23 de Janeiro de 1999, em um sábado chuvoso, completamente despreparado para andar nesta horrível mata densa. Não sei quanto tempo estou aqui, mas posso dizer que foi o suficiente para me impedir de distinguir fatos reais ou meras ilusões óticas geradas pela fome severa que vem me acometendo nos últimos dias.
Ainda me lembro do meu próprio nome: Carlos Damasco. Trabalhava como investigador e sentinela para a SIVAM – Sistema de Vigilância da Amazônia – e, para exercer tal função, é claro, tive um treinamento complexo e rígido de como andar por estas matas, o que comer e o que aspirar encontrar. Mas ainda assim eu estava despreparado para me deparar com uma situação que ia além dos aspectos físicos e perigos mortais da floresta ombrófila a qual eu me preparava para desbravar. Encarar a Floresta Amazônica significa enfrentar as mais sombrias e obscuras criptas da própria mente.
Tudo começou com o comunicado que recebi do delegado de polícia Tobias Ubiratã de Manaus, relatando-me atividades ilegais, principalmente de tráfico de entorpecentes em uma região protegida pelo projeto Amazônia Legal. Basicamente o meu trabalho era reunir uma equipe, composta de policiais, guias e operadores de câmera de vídeo, no intuito de investigar o caso. Eu deveria também levar provisões, equipamentos e armamentos, além de uma autorização judicial para agir com prelado no meio daquele inferno verde. Em menos de três dias estava tudo pronto.
Como sempre fui um sujeito solitário, despedi-me apenas do único membro de minha família que morava em minha residência em Manaus, o Senhor Benedito Damasco, meu avô, um historiador aposentado, professor em dezenas de universidades, e especialista em História do Norte do Brasil. Lembro-me claramente das palavras do velho, minutos antes de minha saída: cuidado, jovem, pois o bioma ancestral é responsável por perigos ocultos que nem em um milhão de anos os pesquisadores poderão decifrar.
Naquele dia, achei sinceramente que sabia do que meu avô estava falando. Bioma é o conjunto de seres vivos que habitam uma área extensa. E como na Amazônia uma boa parte da fauna é ainda incógnita, na floresta há perigos inimagináveis. A falta de luz do sol no solo da grande floresta, devido ao número denso de copas em toda a extensão do lugar, tem como conseqüência a falta de vegetação e de animais rastejantes que usufruem dela. Por isso concluíra que meu avô me alertara sobre os morcegos e marsupiais selvagens, grandes vetores de doenças, ou talvez estivesse falando dos mosquitos. Mas hoje entendo o que ele realmente quis proferir.
Toda a equipe se reuniu no dia 21 de Janeiro de 1999 em frente ao escritório do IBAMA, e a mesma estava engajada da seguinte maneira: cinco policiais ambientais, dois guias, um deles descendente dos índios Campas do Acre (Ashaninka) e apenas um operador de câmera, o único que aceitara participar da campanha pra receber alguns trocados. A equipe contava comigo também, claro, um investigador ambiental perito em fauna e flora, biólogo formado pela Universidade de Manaus. No horário marcado chegara uma Kombi negra com um motorista que lembrava muito um daqueles velhos exploradores que costumamos ver em filmes estrangeiros – careca, barba branca acinzentada muito mal cuidada e pele enrugada como ameixa. Em nenhum momento de nossa viagem o velho pronunciou uma sílaba sequer.
O velho não falou nada – e nenhum de nós estava realmente com vontade de conversar, pois, no fundo, o mau presságio vinha sendo sentido a partir daquele momento, quiçá de uma forma muito sutil para a sensibilidade masculina. Três horas depois, a estrada barrenta a qual atravessamos com muita lentidão acabara e, ao longe, todos puderam ver um barco de madeira tosco e pequeno aguardando-nos no meio da tarde. Silenciosos, saímos todos e caminhamos até o barco. O único som que ouvimos, além do som molhado do afluente muito ao longe, foi o ronco engasgado do motor da Kombi, lutando contra o barro e se afastando com velocidade.
"Parece que vamos encontrar a velha Anaconda, amigos" lembro-me que disse um dos policiais, chamado Paulo, "vejam, já posso ver o John Voight daqui". Um outro policial completou "eu te confesso que preferia ter a Jennifer Lopez como companheira de viagem". Estavam fazendo referencia a um filme de exageradas proporções norte-americano de 1997, onde um grupo era assassinado por uma cobra Anaconda de proporções dantescas. Todos estavam rindo despreocupadamente, exceto o nosso guia que era descendente dos Campas, chamado Leo, e eu, que a partir dali comecei a ser cingido por uma nuvem de pensamentos aziagos que vinham me causando arrepios desconfortáveis.
O homem que nos aguardava no barco de madeira não parecia em nada com John Voight. Era um sujeito muito moreno, semblante grave e postura relaxada. Estava vestindo um short de um time de futebol qualquer e estava sem camisa, exibindo um físico desnutrido e cicatrizes por tudo que é parte do tórax. No braço direito, próximo ao ombro, havia uma tatuagem esverdeada e embaçada, do que parecia ser um totem ou um ídolo de alguma civilização pré-colombiana. Tentei uma comunicação amistosa com este cidadão, mas ele não me respondeu, como se não entendesse o idioma português. Decidi que seria melhor não tentar falar com o dito cujo novamente.
Seguimos bem em grande parte da rota fluvial, e não tivemos problemas nos dois dias que se seguiram. O rio Amazonas, afinal, era um rio tranqüilo. Neste ínterim tentei arrancar algumas informações de Leo – lendas locais, folclore e mitologia dos Campas, entre outras informações de cunho antropológico – e Leo pareceu-me um camarada de fácil relacionamento. Foram nestas investidas que consegui descobrir o motivo pelo qual o meio-indígena estava tão sério e desmotivado. Ele me falou de uma lenda tão antiga quanto os primeiros maias que pisaram nas Américas: o Tzinagan, Deus Morcego da Morte, que exigia que seus seguidores lhe montassem altares de ouro e prata em troca da vida eterna. Leo me disse que havia muitas referências deste deus no lendário e incompleto Popol Vuth, a Bíblia Maia, que conta que Tzinagan era um anjo que, exilado dos céus, viera à Terra destruir os primeiros e toscos maias feitos de madeira. No início relacionei o antigo texto maia – o qual Leo ia-me "educando" aos poucos – a uma grande mixórdia cultural com a Bíblia judaica, talvez conseqüência da colonização européia, relacionando o nome Tzinagan a um dos milhares de nomes conferidos ao Lúcifer dos cristãos. Esta minha teoria foi se tornando ainda mais forte à medida que ouvia as outras lendas maias, inclusive sobre um homem santo nascido de uma virgem que combatia demônios e outras forças do mal.
Leo estava preocupado pois estávamos entrando exatamente na área onde, há séculos, rituais estranhos eram feitos em nome de Tzinagan. Treze crianças eram selecionadas para servirem de sacrifício – seus corações eram arrancados e dispostos em fileira em cima de um altar de prata, circundado por treze tochas negras. Este ritual era devotado a Tlaloc, deus da chuva, e era cantado para que as águas pudessem abrir caminho para a chegada do Grande Morcego Tzinagan. Quanto mais as treze crianças chorassem, mais feliz ficava o deus Tlaloc, e mais chuva ele enviava. Se chovesse durante treze horas, ininterruptamente, Tzinagan, um gigantesco morcego negro azulado, materializar-se-ia em uma caverna preparada especificamente para o cerimonial. Aí então o grande feiticeiro indígena, maia ou de outra civilização similar, poderia requisitar a imortalidade física, através de uma citação cabalística: "Senhor da Vida e da Morte, mestre de grandes mistérios ocultos, invoco-te para que baixes a sanar minhas doenças, e para que me dê existência eterna". Esta citação devia ser proferida em frente ao ídolo morcego feito de quartzo, que, acreditavam os indígenas, possuía a essência vital de Tzinagan.
É óbvio que, naquele momento, não acreditei em uma palavra do que o descendente dos Campas me disse, mas, mesmo assim, senti os pêlos de minha nuca ficando em pé. Acredite que, se ouvir uma história dessas, em um ambiente como este que, mesmo ao meio-dia já está parcialmente sob sombras, você acaba captando uma sensação mortificante no ar, e isto com certeza lhe impede de ter um sono tranqüilo. Em todo tempo de nossa excursão em que me permiti dormir, mesmo que por menos de meia-dúzia de horas, tive pesadelos desconfortáveis e, principalmente, agourentos. Para piorar, não sei quantas vezes fui acometido de total estado de letargia, talvez por culpa da desidratação, ainda que eu estranhe um diagnóstico do tipo, levando em conta o fato de que sempre fui robusto e saudável, e nunca me deixei abater por tonteiras e vertigens como estas de que fui vítima. Meus companheiros de viagem, em sua maioria, também sofrerão com estas enfermidades, enquanto Leo insistia em associar os nossos problemas físicos a maldições e quebrantos.
Naqueles dias não notei – ou melhor, não dei importância – a um fator muito curioso: Leo, e o condutor do barco conhecido apenas pela alcunha "Levante", não sofreram com nenhum tipo de indisposição ou virose. Preferi acreditar que ambos estavam tão acostumados a rodar por aquelas bandas que seus corpos já haviam criado anticorpos para protegê-los de tais moléstias. Todavia, estando na condição em que me encontro neste momento, tenho outras conjecturas as quais crer.
Chegamos a um cais medíocre, de madeira podre caindo aos pedaços, e com dificuldade descarregamos os equipamentos do barco, espalhando-os pela terra úmida que precedia a extensão de vegetação rala e árvores gigantes. O outro guia que estava nos ajudando, um paraense chamado Raimundo, anotava cada passo, dificuldade ou sucesso do grupo em um caderno de páginas amareladas que ele chamava de "diário de bordo". Por minha vez, eu apalpava paranoicamente o meu revólver preso no cinto, escondido sob minha camisa pólo, ainda que meus intentos com esta atitude fossem um tanto tolos, pois, sabia eu, os principais perigos da floresta amazônica não vinham das criaturas que nela habitam, e, mesmo assim, as palavras infaustas vindas de meu avô ecoavam em minha mente.
Levante, o condutor, disse que nos aguardaria pelo período de uma semana, pois além de provisões essenciais para sobrevivência, aquele lado do Rio Amazonas era uma boa fonte para a pesca – mesmo no atribulado período de chuvas – , e havia mangueiras e pacobeiras aos montes. Já em terra firme, em uma clareira pequena, tratei de passar os detalhes da missão aos outros policiais, enquanto me imunizava com um creme especial contra insetos. Tínhamos uma semana para investigar a movimentação de traficantes daquele lado da floresta, e não estávamos ali para combater. Éramos batedores apenas, e aquela era uma missão de reconhecimento e busca.
Oh, Deus, os traficantes eram o menor de nossos problemas!
Era dia 23 de Janeiro de 1999, um sábado chuvoso, e as palavras de Leo também não saiam de minha mente. Talvez pela febre gerada por alguma virose ou simples medo da noite que se aproximava, comecei a ter devaneios – mesmo acordado – com a figura totêmica de Tlaloc banqueteando-se de treze corações sobre um altar de prata, lançando risadas fúnebres que ecoavam por toda aquela selva verde. No limiar da sanidade e da demência, achei ter visto sangue ao invés de água caindo do céu torrencialmente. Não uma, mais inúmeras vezes fui vítima destas visões, e, percebendo o meu estado psíquico, Leo me despertava e me mandava tomar um chá feito de ervas que ele colhia sempre que passávamos por uma nova vereda.
Não só a mim estes pesadelos incomuns molestavam, mas também meus companheiros de viagem estavam sofrendo. Poucos dias depois da nossa chegada àquele lugar, peguei o diário do guia Raimundo, e em determinado trecho, onde ele descrevia o ambiente, ele parara de súbito seu relato para escrever isso: sinto que ele está me seguindo... olhos que não vêem, mas que me alcançam.. sinto cheiro de óbito... – depois continuou seu relato normalmente. Os policiais também não estavam saudáveis, atracavam-se por qualquer coisa, golpeavam-se por migalhas de pão, ainda que houvesse provisão suficiente; mas no fim das contas, nos dois primeiros dias, estes acontecimentos não nos impressionavam muito.
O horror aconteceu no terceiro dia. Depois deste dia, perdi totalmente a noção do tempo.
Na noite anterior ao acontecimento ao qual me refiro, ainda no dia 25 de janeiro, montamos acampamento próximo a um estranho platô de barro endurecido, no meio de uma enorme clareira. Apenas um filete de água corrente vindo de um rio distante passava por ali, e árvore não se via a, pelo menos, cinqüenta metros. Assim que chegamos ao local não notamos uma característica muito curiosa, estampada no barro tão claramente que hoje me sinto um idiota por não ter visto tão semelhante atributo. Porém, quem o percebeu foi o homem mais propício para tal, pois não estava doente e conhecia bem aquelas terras.
"Vejam aquilo" – disse Leo, apresentando um semblante que era o misto de espanto e excitação.
O meio-indígena precisou dedicar cinco minutos de seu tempo e paciência para que nós, enfermos do cansaço e da febre, identificássemos o que ele queria nos mostrar. Quando percebemos, porém, toda a lassidão nos abandonou, e eu falo por mim quando digo que quase tive um ataque do coração quando percebi do que se tratava.
Esculpido com uma perfeição insonhável, mesmo em se tratando dos grandes escultores indígenas americanos, estava ali o rosto de um homem. Na verdade, identifiquei o "homem" como sendo a imagem da cabeça de um ancestral da raça humana, possivelmente o australopithecus, contudo esta não era uma premissa que eu poderia afirmar com toda a certeza. O grande problema diante desta visão foi a reação dos policiais, que começaram a tagarelar e a achar que estávamos pisando em solo de selvagens canibais. Tudo se complicou ainda mais quando Leo disse: "Grande Deus. Estamos contemplando o lar do Grande Morcego".
Então eu tive que contar sobre a lenda de Tzinagan aos homens que, atordoados, ouviam com atenção. Contei sobre os sacrifícios, sobre o deus da chuva e sobre a dádiva que ele concede. A mitologia foi emitida aos homens que, temerosos, já não mais se lembravam de sua verdadeira missão naquele Hades. Mas as coisas mudaram quando contei sobre as riquezas, sobre o ouro e a prata abundantes, e sobre o ídolo de quartzo em formato de morcego. O medo se transformou em ambição.
Agora, descansado e um pouco mais tranqüilo, acredito que, não fossem os mosquitos, o cansaço, a febre e a chuva, os policiais, em sã consciência, jamais acreditariam em uma história como aquela, e jamais fariam o que fizeram em seguida. Desmontaram acampamento e acenderam tochas, outros usaram lanterna, e, com a ajuda do guia Raimundo, procuraram a entrada da caverna, dando a volta no portentoso platô. Leo e eu tentamos convencê-los a voltarem atrás em sua decisão. Mas eles estavam determinados. Seguiram em frente. E nós, que não éramos partidários desta decisão, acabamos seguindo-os em sua loucura, pois não achamos conveniente ficarmos sozinhos, em meio à terra úmida e sem nenhum tipo de equipamento ou provisão.
O que aconteceu em seguida, para mim, e inenarrável. Neste momento, a mão com a qual seguro a caneta esferográfica treme de tal maneira que, se tentar reproduzir todas as perversidades e horrores de que fui testemunha naquela ocasião, haveria apenas borrões sobre este papel que uso. E o que posso dizer neste momento é que ninguém sobreviveu àquela empreitada, nem mesmo o pobre Leo, mas acho que Deus foi transigente comigo, salvando-me da sombra que abateu a minha equipe. Tentarei, em pouquíssimas palavras, descrever o que presenciei naquele ambiente.
Era uma furna escura com menos de dois metros de altura. Saindo do teto, estalactites prejudicavam nossa locomoção, mas nada fazia os cobiçosos policiais voltarem atrás. Nas paredes de barro petrificado podiam-se ver, claramente, dezenas de pinturas rupestres indicando a existência e as atividades de Tzinagan. Durante todo o trajeto, era corriqueiro ouvirmos sons estranhos e grunhidos vindos do escuro, em todas as direções. A umidade e o frio presente naquela gruta só estavam me deixando cada vez mais doente.
Houve um momento de silêncio quando um dos policiais, aparentemente, tropeçara em uma pedra ou em um buraco. Este segurava um pedaço de cedro incandescente para iluminar a parte da frente da fila indiana que havíamos iniciado. Contudo, a tocha apagara no momento em que o infeliz sofrera o acidente, e, em seguida, as lanternas dos outros policiais pifaram quase que ao mesmo tempo. Ninguém pode desenhar o panorama do temor que senti sem estar naquele lugar, submerso em negrume.
Perdido na mortalha, eu tentei me comunicar com os outros. Alguns gritavam de medo, outros se escondiam atrás de nada. Ao longe, juro ter visto o brilho auto-suficiente de uma imagem em quartzo rosa, de cerca de cinqüenta centímetros ou menos, no formato de um morcego; no lugar dos olhos havia duas pedras vermelhas e lapidadas, semelhantes a rubis. Esta imagem me deixaria paralisado, de horror ou de fascínio, não fossem os gritos desesperados de alguns homens, os quais não pude identificar. Foi tudo muito rápido. Nós estávamos sendo atacados por um inimigo invisível. Em momentos como esse você não pensa em salvar seus amigos, ou lutar ao lado deles. Você pensa em fugir. Falo por mim, pelo menos. Cansado, com medo e com frio, minha primeira atitude foi correr ensandecido para fora da gruta, esbarrando no pobre Leo que estava atrás de mim. Não sei de onde tirei forças para correr daquela maneira, mas alcancei a clareira onde acampamos. Por sorte, ainda havia alguma provisão e parte dos equipamentos jogados no chão. Recolhi tudo – inclusive o diário de Raimundo, que estou usando para escrever esta carta – e fugi para longe, para o mais longe que pude.
A partir deste momento, para mim, fica complicado relatar os fatos posteriores a minha visita à caverna, pois, talvez pela fome e pela doença, não estou conseguindo lembrar exatamente o que me aconteceu até este exato momento. A questão é que acordei, não sei quantas horas – ou dias – depois, deitado no chão, entre duas colunas de pedra de cerca de um metro e meio de altura, alocadas com perfeição ímpar. Naquele instante, acreditei ter sido capturado por Tzinagan e, com o coração na boca, levantei o mais rápido que pude. De pé, pude ver várias paredes de pedra, estranhamente dispostas, como se uma antiga tribo estivesse preparando um templo ou algo do tipo, mas algo longe de ser um conjunto de casas. E eu sabia que tinha sonhado com aquilo, de alguma maneira, eu sabia da existência daquele lugar antes mesmo de acordar e ver com os próprios olhos.
Minhas mãos estavam muito machucadas, devo dizer. Lembro muito bem que me machuquei bastante quando corri para fugir da caverna, mas, maior parte das escoriações ocorreu nas minhas pernas e nos meus braços, mas nada tão feio nas mãos. Atordoado, tentei enfaixar minhas mãos com a bandagem que, felizmente, eu havia trazido no meio da minha corrida alucinada. Em seguida, andei pelo complexo ajuntamento de pedras, tentando decifrar aquele enigma.
Escrevo esta carta pois sinto que, não vai demorar muito, vou falecer. Mesmo tomando todos os remédios possíveis que consegui carregar, minha febre não passa de jeito nenhum, só aumenta. Acredito que, devido a região pantanosa a que me encontro e o número de mosquitos que me infernizam toda noite, eu tenha contraído malária e, sem o resgate e o tratamento apropriado, talvez eu não dure nem mais um dia. Preciso que esta experiência fique registrada e peço que a pessoa que encontrar meu corpo e esta carta passe a informação adiante, alertando exploradores e até mesmo traficantes de que esta área esconde um perigo muito maior do que qualquer pessoa da cidade possa imaginar.
Mas antes de finalizar esta epístola por completo, quero dizer o que descobri hoje de manhã, referente a este aparente amontoado de pedras em formas estranhas. O fato é que subi em uma árvore alta, a noroeste desta clareira – eu risquei o tronco da mesma com um "X" usando uma faca que tenho em meu poder – e pude observar, quase que perfeitamente, que aquilo era mais racional que um simples aglomerado de pedras. Minha espinha congelou quando percebi que os muros, de pedras irregulares e toscamente polidas, formavam a face de uma criatura antropomórfica, muito similar a que vi na entrada daquela amaldiçoada caverna. A meu ver, isto me parece um misto de macaco e morcego, o que me lembra claramente ao ídolo de quartzo que também tive o desagrado de ver. Quão mais a influência nefasta deste deus pagão se estende na Amazônia?
Espero que, com este pequeno relato, eu possa estar ajudando a erradicar um mal que talvez esteja tomando esta região há milênios. A única coisa que peço em troca de tudo que sofri, é que meu nome seja lembrado nas salas de aula, e em minha terra natal, Manaus.
GAZETA AMAZONENSE
Dia 22 de Fevereiro de 2000.
CORPO DE INVESTIGADOR DA SIVAM É ENCONTRADO. OUTROS MEMBROS DA EQUIPE AINDA DESAPARECIDOS.
A investigação, que já dura cerca de dez meses, finalmente levou os especialistas a encontrar o corpo de Carlos Damasco, biólogo e investigador do Sistema de Vigilância da Amazônia, o SIVAM. Segundo o delegado Tobias Ubiratã, Carlos Damasco era perito em sobrevivência na selva, além de ser o líder da equipe de policiais que partiram de Manaus em 23 de Janeiro de 1999 com a missão de identificar atividade de tráfico de armas e drogas em uma região complicada da floresta tropical.
Foi encontrado com o corpo de Damasco um revólver, uma mochila com lanterna, isqueiros e um diário, onde o próprio investigador escrevera sua experiência naquele local pouco antes de morrer, segundo a Perícia. Dentro de alucinações e enjôos, a polícia descobriu que os dados que Damasco descreveu sobre um estranho culto indígena presente naquela área possivelmente constitua de informação verdadeira, e que os outros membros da equipe podem ter sido mortos por índios com hábitos canibais.
O mais estranho, entretanto, foi o local onde o corpo do investigador foi encontrado. Ali havia dezenas de colunas e muretas de menos de dois metros de altura que, vistas do alto, formavam o rosto de uma antiga divindade indígena conhecida como Grande Morcego da Morte. Para identificar este rosto, os investigadores seguiram as coordenadas do próprio Damasco, que descreveu a estranha visão em seu diário. Segundo o explorador e pesquisador da Universidade de Manaus, Sérgio Mello: "a face, feita as pressas com pedras comuns, não foram feitas por uma antiga civilização pré-colombiana. Sabemos muito bem da engenhosidade e capricho dos maias, astecas e incas, e posso afirmar, com total certeza, que aquele rosto, simbolizando o antigo deus Tzinagan, foi feito por uma criatura sem nenhuma noção de arquitetura".
Os peritos em necropsia, além dos investigadores da polícia do estado do Amazonas, chegaram à conclusão que, ao observar as pegadas, a faca utilizada por Damasco, e os relatos contidos no diário do mesmo, aqueles muros e colunas feitos sem muito asseio formando o rosto da estranha divindade indígena, era não mais do que reflexo do trauma que Damasco sentiu ao observar o ídolo de quartzo rosa, o qual ele descreve no seu próprio diário. Esta afirmação pôde ser comprovada na autópsia, onde os médicos viram ferimentos graves nos dedos e nas mãos do cadáver. Ou seja, o rosto formado por pedras e barro naquela clareira isolada foi erguido pelo próprio Carlos Damasco, imerso em febre e psicose, dominado por "impulso do inconsciente", como explica o professor de psicologia Francisco Vital. Mas de onde ele tirou forças para fazer um trabalho de tal competência?
A polícia segue investigando.