A EVOLUÇÃO DOS PRINCÍPIOS ORÇAMENTÁRIOS BRASILEIROS

Por Giuliana Maria Nogueira Pereira | 04/08/2011 | Direito

Introdução A matéria tributária está normatizada na Constituição Federal e como forma de interferência do Estado no patrimônio privado, à tributação não pode ser infinita, obrigando-se a obedecer aos direitos fundamentais. Ao mesmo tempo em que os direitos fundamentais aprovam a tributação, eles também restringem o poder de tributar. Por exemplo, uma vez que são previstos constitucionalmente os ditos "direitos sociais" é o Estado que se responsabiliza por oferecê-lo a quem não os possui. Para isso, carecerá de recursos, que, necessariamente, serão fornecidos pela tributação. As limitações ao poder de tributar podem ser de diversas ordens, dentre as quais se destacam: as imunidades, as proibições de privilégio, as proibições de discriminação fiscal e as garantias relacionadas diretamente com os direitos fundamentais, traduzidas em verdadeiros princípios tributários. Na verdade, todas as limitações ao poder de tributar decorrem, ainda que indiretamente, dos direitos fundamentais. Vale salientar ainda, que a incursão do patrimônio privado pelo Estado apenas se coaduna com os direitos fundamentais, se considerado o mínimo existencial. A tributação não poderá ter efeito confiscatório, afetando a existência proba do cidadão. Nesse sentido os princípios orçamentários aparecem como um divisor de águas que além de se distinguirem das regras, são mais que importantes nesse ramo jurídico, fazendo um diálogo das fontes, com os demais ramos do ordenamento. 1 A Distinção entre Princípios e Regras As normas existem para regular casos concretos, estabelecendo o "dever ser" da realidade em que procuram atuar. Por não terem o mesmo feitio e a mesma estrutura, pode-se dispor as normas em dois amplos grupos, que desvendam significativas diferenças: os princípios e as regras. Os princípios possuem um maior grau de indeterminação e de generalidade, enquanto que as regras são concretas e específicas, prescrevendo imperativamente uma conduta determinada. Princípios e regras também se diferenciam na questão da determinabilidade dos casos de aplicação, uma vez que, enquanto os princípios têm uma eficácia plena, por meio da qual guiam a interpretação e o bom emprego de outras regras do sistema, as regras têm aplicação restrita, regulando situações específicas e concretas. Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos (2003, p. 109-110) procuram sintetizar tal diferenciação, nos termos seguintes: Regras são, normalmente, relatos objetivos, descritivos de determinadas condutas e aplicáveis a um conjunto delimitado de situações. Ocorrendo a hipótese prevista no seu relato, a regra deve incidir, pelo mecanismo tradicional da subsunção. (...) Princípios, por sua vez, contêm relatos com maior grau de abstração, não especificam a conduta a ser seguida e se aplicam a um conjunto amplo, por vezes indeterminado, de situações. Regras e princípios podem, ainda, ser distinguidos em decorrência das peculiaridades de sua aplicação. Consoante o referido critério distintivo, a antinomia entre regras proporcionará conseqüências próprias e diferentes daquelas provenientes de um conflito entre os princípios. O conflito entre regras é resolvido através da aplicação de critérios hermenêuticos, pelos quais se constatará qual regra será consagrada no caso concreto, ou, em outros termos, qual a regra adequada para regular o caso em comento. Nessa constatação, a regra inválida precisará abdicar lugar àquela regra capaz de proporcionar a solução para o caso concreto, preservando-se a integração com o ordenamento jurídico. De todo modo, da distinção entre princípios e regras advem enormes consequências para a apreciação de conflitos que, eventualmente, possam haver no ordenamento jurídico brasileiro. Tais balizamentos se desdobram, por decorrência, dos conflitos na esfera dos princípios que norteiam as finanças públicas brasileiras e, em particular, no sistema de orçamento e planejamento. 2 Conflitos entre Princípios Orçamentários A Constituição Federal de 1988 traz, em seu interior, inúmeros princípios orçamentários. A doutrina também tem atentado para a existência de vários deles, discutindo o conteúdo e a extensão de cada um. Nesse instante destaca-se a análise de dois deles: princípio da anualidade e princípio da plurianualidade dos investimentos. O primeiro vem disposto no art. 165, § 5º ("a lei orçamentária anual compreenderá"), por sua vez, o subseqüente encontra-se expresso no art. 167, §1º ("nenhum investimento cuja execução ultrapasse um exercício financeiro poderá ser iniciado sem prévia inclusão no plano plurianual, ou sem lei que autorize a inclusão, sob pena de crime de responsabilidade"). Em face da existência de dois princípios constitucionais orçamentários, de sentido antagônicos, há que se derivar à sua compatibilização, para que se possa retirar a real finalidade do Constituinte de 1988. A própria doutrina brasileira já proferiu sobre a existência desses dois princípios, como ressalta os dizeres de José Afonso da Silva (1973, p. 134): O sistema brasileiro, que integra orçamento e planejamento, concilia ambas as exigências, ou seja, o princípio da anualidade e o princípio da plurianualidade cíclica (...) o sistema brasileiro compatibiliza o princípio da anualidade orçamentária com a necessidade da programação plurianual dos investimentos públicos, pois nenhum investimento, cuja execução ultrapasse um exercício financeiro, poderá ser iniciado sem prévia inclusão no orçamento plurianual de investimento ou sem lei que o autorize e fixe o montante das dotações que anualmente constarão do orçamento, durante o prazo de sua execução (CF, art. 62, § 3º). Em divergência a tal entendimento, o princípio da anualidade orçamentária tem sido tratado, de modo errado, como se regra fosse. Deste modo, procura-se proibir toda e qualquer experiência de se estabelecer regras ou mecanismos que admitam a consolidação de princípios distintos, sob o argumento de sua pretensa violação. Se lhe for atribuído caráter de regra, incide verdadeiro desvirtuamento de sua extensão e finalidade. Já a anualidade orçamentária, por ser um princípio, precisa nortear a leitura das outras regras complementares ao sistema e ser compatibilizada com os demais princípios constitucionais, como por exemplo, os princípios da continuidade, da eficiência, da plurianualidade e da economicidade dos investimentos. Assim, princípios são preceitos de otimização, enunciados genéricos que devem orientar a leitura de outras regras e devem ser compatibilizados em face da existência de outros princípios, de sentidos opostos (FARIA, 2010, p. 4). Deste modo, perfeitamente compatibilizado com o sentido do texto constitucional, a possibilidade de se instituir o tratamento plurianual dos investimentos, até mesmo porque tal diretriz se coaduna e fortalece o próprio entendimento do texto da Constituição de 1988. 3 Os Princípios Orçamentários Os princípios orçamentários, segundo Sanches (2004, p. 277), são: Um conjunto de proposições orientadoras que balizam os processos e as práticas orçamentárias, com vistas a dar-lhes estabilidade e consistência, sobretudo no que se refere e à sua transparência e ao seu controle pelo Poder Legislativo e pelas demais instituições da sociedade. Como observa o mesmo autor, apesar das divergências sobre a estrutura e conceituação desses princípios, existem vários deles que são geralmente aceitos e consagrados na literatura técnica. Pelo princípio da anualidade e da periodicidade tem-se: Princípio orçamentário clássico, de origem inglesa, também denominado Princípio da Periodicidade, segundo o qual o orçamento público (estimativas da receita e fixação da despesa) deve ser elaborado por um período determinado de tempo (geralmente um ano), podendo este coincidir ou não com o ano civil (Sanches, 2004, p. 29). Complementando, Giacomoni (2005, p. 79), afirma que "a origem mais remota desse princípio está na regra da anualidade do imposto, que vigorou na Inglaterra antes mesmo do surgimento do orçamento". No ordenamento jurídico pátrio este princípio se acha acolhido no art. 2º da Lei nº 4.320/64, juntamente com os princípios da Unidade e Universalidade, e nos arts. 165, inciso III e 167, inciso I da Constituição. Já pelo princípio da clareza tem-se que: Princípio orçamentário clássico segundo o qual a Lei Orçamentária deve ser estruturada por meio de categorias e elementos que facilitem sua compreensão até mesmo por pessoas de limitado conhecimento técnico no campo das finanças públicas (SANCHES, 2004, p. 62). Em termos de clareza, os orçamentos brasileiros alcançaram notável progresso, especialmente após a implementação do orçamento-programa, que trouxe a informação fundamental relacionada aos programas de trabalho, constituídos de projetos e atividades, por sua vez vinculados a uma estrutura de programas e subprogramas (atualmente funções, subfunções e programas), possibilitando a identificação dos objetivos governamentais. Princípio na especificação ou discriminação: Princípio orçamentário clássico, de caráter formal, conhecido também por Princípio da Discriminação, segundo o qual a receita e a despesa públicas devem constar do Orçamento com um satisfatório nível de especificação ou detalhamento, isto é, elas devem ser autorizadas pelo Legislativo não em bloco, mas em detalhe (SANCHES, 2004, p. 142). A Lei nº 4.320/64, nos seus arts. 5º ("a Lei de Orçamento não consignará dotações globais destinadas a atender indiferentemente a despesas de pessoal, material, serviços de terceiros, transferências ou quaisquer outras, ressalvado o disposto no art. 20 e seu parágrafo único") e 15 ("na lei de Orçamento a discriminação da despesa far-se-á, no mínimo, por elementos"), reforça a necessidade de programar a despesa, no seu aspecto de objeto de gasto, em níveis de especificação adequados, que permitam ao Legislativo, quando da apreciação da Proposta Orçamentária, saber em que Elementos de Despesa os recursos serão aplicados. O mesmo vale para a estimativa da receita, que deve ser feita com um nível satisfatório de discriminação, de tal forma a possibilitar ao Legislativo a identificação pormenorizada da origem dos recursos. Princípio da Exclusividade, como ensina Sanches (2004, p.149): "o princípio da exclusividade é um princípio orçamentário clássico, segundo o qual a lei orçamentária não conterá matéria estranha à previsão da receita e à fixação da despesa". Este princípio tem por objetivo, segundo o mesmo autor: Disciplinar a votação do orçamento nas Assembléias Legislativas, impedindo que elas se utilizem de um processo legislativo mais rápido e sujeito a prazos fatais, para conseguirem a aprovação, sem maior exame ou discussão, de medidas estranhas à matéria financeira. (p. 150). Já o princípio da não vinculação de receitas, de acordo com Sanches (2004, p. 224): Princípio orçamentário clássico, também conhecido como Princípio da Não-Afetação de Receitas, segundo o qual todas as receitas orçamentárias devem ser recolhidas ao Caixa Único do Tesouro, sem qualquer vinculação em termos de destinação. O princípio constitucional, no entanto, tem pouca aplicação, tendo em vista que as normas jurídicas e do direito econômico já vinculam boa parte das receitas. A Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1994, enfraqueceu ainda mais o princípio da não-afetação, ao criar, nos exercícios de 1994 e 1995, o Fundo Social de Emergência, com o objetivo de saneamento financeiro da Fazenda Pública Federal e de estabilização econômica, cujos recursos seriam aplicados no custeio das ações dos sistemas de saúde e educação, benefícios previdenciários e auxílios assistenciais de duração continuada, inclusive liquidação de passivo previdenciário, e outros programas de relevante interesse econômico e social. Princípio da Prévia Autorização (ou legalidade), segundo Sanches (2004, p. 274-275), "princípio orçamentário clássico, segundo o qual a arrecadação de receitas e a execução de despesas pelo setor público deve ser precedida de expressa autorização do Poder Legislativo". Conforme observa Silva (1973, p.153), "o princípio da legalidade em matéria orçamentária tem o mesmo fundamento do princípio da legalidade geral, segundo o qual a administração se subordina aos ditames da lei". O mesmo autor, ao comentar sobre o princípio da legalidade da receita, esclarece que o mesmo "se revela quase todo no princípio da legalidade tributária", explícito no art. 150 da Constituição. O princípio da Publicidade, de acordo com Sanches (2004, p.288): Princípio orçamentário clássico, segundo o qual as leis de natureza orçamentária (LOAs e Créditos Adicionais),como qualquer outra lei, só adquirem validade depois de publicadas em veículo com abrangência suficiente para propiciar o conhecimento do seu conteúdo pelos funcionários públicos e pela população em geral. No entendimento de Silva (1973, p.155), "a publicidade é um princípio básico da atividade do poder público no regime democrático, aplicando-se também ao orçamento, que é a peça fundamental da atividade governamental" Percebe-se assim, uma preocupação em assegurar transparência e plena publicidade à gestão fiscal, inclusive pela internet, e não só as informações relativas à Lei Orçamentária, mas aquelas relacionadas à execução orçamentária e ao Plano Plurianual. No princípio da unidade, este se acha consagrado no art. 2º da Lei nº 4.320/64, que estabelece: A Lei de Orçamento conterá a discriminação da receita e despesa de forma a evidenciar a política econômico-financeira e o programa de trabalho do Governo, obedecidos os princípios da unidade, (grifo nosso) universalidade e anualidade." Acha-se expresso, também, no art. 165 da Constituição, cujo § 5º estabelece: A lei orçamentária anual compreenderá: I- o orçamento fiscal referente aos poderes da União, seus fundos, órgãos e entidades da administração direta e indireta, inclusive fundações instituídas e mantidas pelo poder público; II- o orçamento de investimento das empresas ...; III- o orçamento da seguridade social, abrangendo todas as entidades e órgãos a ela vinculados. De acordo com Silva (1973, p.140), "o princípio da unidade orçamentária foi dos mais caros à concepção clássica e certamente o mais violado". E tem ainda o princípio da universalidade que conforme Silva (1973, p.146): "o princípio da universalidade foi sempre considerado essencial a uma boa administração orçamentária. Sua formulação, como quase todos os princípios orçamentários, efetivou-se em nome do controle político das atividades financeiras". O princípio da universalidade é habitualmente complementado pela regra do orçamento bruto (que veda quaisquer deduções), estabelecida pelo art. 6º da Lei nº 4.320/64. E por fim tem-se o princípio da programação, como o define Sanches (2004, p.283): Princípio orçamentário, de natureza complementar, segundo o qual o orçamento público deve ser estruturado sob a forma de programação, isto é, deve expressar o programa de trabalho de cada entidade do setor público, detalhando por meio de categorias apropriadas, como, onde e com que amplitude o setor público irá atuar no exercício a que se refere à Lei Orçamentária. No Brasil, esse princípio se acha acolhido nas normas do Decreto-Lei nº 200/67, sobretudo nos arts. 16 a 18 ("art. 16. em cada ano, será elaborado um orçamento-programa, que pormenorizará a etapa do programa plurianual a ser realizada no exercício seguinte e que servirá de roteiro à execução coordenada do programa anual") e nas disposições dos arts. 165 a 167 da Constituição, que exigem compatibilidade do projeto de lei orçamentária com as metas e prioridades fixadas pela LDO e pelo PPA. Conclusão Os princípios orçamentários se justificam em função de assegurar às normas orçamentárias eficácia, estando grande parte deles incorporados à atual Constituição e às leis, como a 4.320/64. Eles têm a função de balizar e parametrizar à elaboração e a execução da Lei Orçamentária, e sua observância contribui para corrigir distorções e tornar a gestão orçamentário-financeira mais eficaz. Dos vários princípios enumerados por Sanches, quase 80%, estão incluídos no texto constitucional, o que dá uma idéia da importância dessas normas para o legislador constituinte. Essa maciça inclusão de princípios orçamentários na Carta Magna representou também um grande avanço em relação às duas primeiras Constituições brasileiras, em cujos textos inexistem registros que correspondam a princípios orçamentários, que na realidade só apareceram no âmbito jurídico nacional a partir da Emenda Constitucional de 3 de setembro de 1926. Referências BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. A Nova Interpretação Constitucional: Ponderação, Argumentação e papel dos Princípios. In LEITE, George Salomão (org.). Dos Princípios Constitucionais ? Considerações em torno das normas principiológicas da Constituição. São Paulo: Malheiros, 2003. FARIA, Rodrigo Oliveira de. Reflexão sobre o conflito entre princípios orçamentários. Jus Navigandi, Teresina, ano 15, n. 2548, 23 jun. 2010. Disponível em: . Acesso em: 26 maio.2011. GIACOMONI, James. Orçamento público. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2005. SANCHES, Osvaldo Maldonado. Dicionário de orçamento, planejamento e áreas afins. 2. ed. Brasília: OMS, 2004 SILVA, José Afonso. Orçamento-programa no Brasil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1973.