A ética de Kant e as implicações na constituição federal brasileira
Por Graça Mourão | 04/07/2012 | FilosofiaA ética de Kant e as implicações na constituição federal brasileira
Maria da Graça Silva Mourão
RESUMO
A reflexão acerca da moral e da ética como elementos norteadores das leis voltadas pretensamente à universalização de valores e condutas requer um propalar àqueles que indubitavelmente contribuíram para a formação do pensamento humano. Kant, filósofo Prussiano, nascido em 1714, desenvolveu ao longo de sua vida uma teoria ética especulativa que se tornou guia a partir da modernidade para os avanços reflexivos sobre o pensar que tem no outro um ponto de partida. Nesse viés, a busca de ideais como autonomia, liberdade e felicidade como bens supremos a serem alcançados individual e coletivamente têm nos estudos de Kant uma grande fonte de referência. A dignidade da pessoa humana vem sendo buscada nas sociedades ocidentais da atualidade, tendo valores intrinsecamente humanos expressos e impostos como garantias fundamentais nos textos Constitucionais. Diante do postulado do pensador, a Constituição Brasileira de 1988 encontra nesse conteúdo fundamentação teórica, haja vista ser o documento constitucional, objeto de construção social, cultural, histórica e antropocêntrica. Assim o presente trabalho pretende demonstrar a importância do fundamento ético de Kant na nossa atual Constituição brasileira.
Palavras-chave: Kant. Liberdade. Autonomia. Constituição Federal.
ABSTRACT
The reflection on the morality and ethics as guiding elements of the laws supposedly aimed for universal values and behaviors requires a noise those who undoubtedly contributed to the formation of human thought. Kant, the Prussian philosopher, born in 1714, developed throughout his life an ethical theory that became speculative guide from the advances of modernity to reflexive thinking about that the other has a starting point. This bias, the pursuit of ideals such as autonomy, freedom and happiness as the supreme goods to be achieved individually and collectively in studies of Kant have a great reference source. The dignity of the human person is being sought in Western societies today, having intrinsically human values and taxes expressed as a fundamental guarantees in the Constitutional text. Given the assumption of the thinker, the Brazilian Constitution of 1988 is that theoretical content, due to be the constitutional document, the object of social, cultural, historical and anthropocentric.
Keywords: Kant. Freedom. Autonomy. Federal Constitution.
INTRODUÇÃO
Pensar os valores éticos e morais da sociedade moderna remete-se indubitavelmente à reflexão sobre o ideal kantiano ao se conceber leis que alcancem nos dias de hoje a dimensão que outrora buscou o filósofo, cujo fim era a liberdade como par da dignidade da pessoa humana. Liberdade essa, cerceada continuamente pelo próprio indivíduo em sua ação paulatinamente internalizada voltada ao respeito individual e social.
Immanuel Kant, filósofo conhecido pela sua grande preocupação ética, buscou, através dos conceitos críticos desenvolvidos por ele, uma razão especulativa que fosse universal. Essa universalidade seria de tal forma que definiria o critério de correção de toda ação, determinando assim o valor moral da mesma. Melhor explicando, a teoria kantiana, no que tange à ética e à moralidade tem no respeito ao dever, condição subjetiva e definidora do valor moral da ação. Nesse sentido, conceitos como a ideia da vontade e o Imperativo Categórico constituem o prisma sob os quais se visualiza a teoria ética do filósofo. Para ele, o ser humano não possui uma vontade perfeitamente boa, sendo imperioso condicionar seu querer à lei moral. Nesse raciocínio, a discussão indubitavelmente segue o viés das virtudes necessárias à aplicação de uma lei que pretende a universalidade.
Assim falando, torna-se relevante discorrer acerca da diferenciação entre doutrina da virtude e doutrina do direito. Deste modo,
A doutrina da virtude difere da doutrina do direito, principalmente, no que diz respeito ao constrangimento da livre escolha. Na primeira, trata-se de um autoconstrangimento, na segunda, de um constrangimento externo. A ideia de constrangimento para Kant já está no próprio conceito de dever e não se aplica a seres racionais em geral, mas somente a seres humanos, pois apenas estes podem transgredir a lei moral e mesmo quando a obedecem, fazem isto relutantemente, ou seja, contra as próprias inclinações.(PETRY, 2007, P.5).
Sendo contrária à doutrina da virtude que produz a matéria de escolha, a doutrina do direito estabelece a condição formal da liberdade exterior. Nesse sentido, como afiança Petry (2007, p. 5), “a doutrina da virtude trata da liberdade interna e se relaciona à autonomia, pois somente quem é capaz de obedecer à razão legisladora é dotado de força, logo, de virtude”.
Assim, definindo a virtude, cabe voltar o discurso às críticas de Kant, onde o mesmo traça um princípio moral, afirmando ser o único bem irrestrito uma vontade boa, inclinando-se ao enunciado das implicações que formula: a autonomia da vontade, que também é matéria fundante de sua lei. Essa é definida por Leite a partir da teoria de Kant como “a faculdade de desejar, considerada não em relação à ação – como o arbítrio – mas em relação ao fundamento de determinação do arbítrio à ação” (2010:77); sendo ela própria a razão prática. Nesse sentido, não há como discorrer sobre a teoria em questão sem perquirir sobre o conceito de liberdade em Kant, essa diretamente ligada ao princípio da autonomia. De acordo com Hupffer (2011:11), “Kant interioriza o conceito de liberdade desenvolvido por Rousseau, mas se propõe a ir mais além, transformando-o em autonomia da vontade”. Nesse aspecto, o pensador, ainda em Hupffer (2011:12), “convida os homens a pensar com liberdade e a agir com autonomia”. É dentro desses parâmetros que o sistema legal que funda a organização das sociedades ocidentais se processa. Na busca de um princípio que propicie ao sujeito uma postura crítica diante das questões socialmente relevantes a partir da autonomia advinda da responsabilidade moral e ética.
A Constituição Brasileira de 1988, após um longo período de ditadura, vem reatar a condição de sujeito e de cidadania e expressá-la em seu texto, onde procura deixar clara sua preocupação com a dignidade da pessoa humana e com princípios pretensamente bem definidos de busca de igualdade e justiça social.
Diante dessa exposição, a presente reflexão será uma tentativa de identificar dentro dos objetivos constitucionais, a contribuição da profícua e complexa teoria kantiana fundante de parâmetros profundamente relevantes para a vivência e construção de valores da sociedade moderna e contemporânea.
2 A LIBERDADE EM KANT E A AUTONOMIA DO SUJEITO
A liberdade dentro do discurso filosófico vem sendo construída desde a época da consciência mítica da aceitação dos destinos. Na Grécia antiga, quando ainda não se falava em comportamento ético e as ações humanas eram determinadas por deuses, a reflexão sobre o Ser livre parecia inexistente no ideário daquele povo. No entanto, a figura dos heróis caracterizava o esforço da razão em libertar-se do determinismo. As tragédias dessa civilização configuram-se numa tentativa de superação do pensamento mítico e embate pelo desenvolvimento da consciência crítica. Nesses cenários, vê-se a contradição entre determinismo e liberdade na luta do herói contra o destino e o indubitável fim trágico. Mas, tem-se como em Édipo-Rei de Sófocles, um protagonista que acaba por se punir ao se ver responsável pelos atos praticados, demonstrando a autonomia do sujeito, tanto nas decisões, quanto no próprio julgamento;
Foi o deus Apolo que me quis submeter a esta amargura! Porém a mão que golpeou meus olhos não foi a de ninguém, senão a minha: que mais pudera eu desejar ver, se a vista só me dava desprazer?[1] (ARANHA e MARTINS,2009:235)
Nessa passagem, as mãos pesadas da mitologia e do determinismo sugerem uma teia onde não há saída para o sujeito, mas, como afiançam ARANHA e MARTINS, 2009:235, “a tentativa de reflexão e de autoconhecimento retrata o logos nascente. Daí em diante a filosofia representará o esforço da razão em compreender o mundo e orientar a ação”. Percebe-se dessa forma, continuamente a busca do sujeito pelo autoconhecimento e pela liberdade reflexiva.
Ao buscar definir a liberdade e centrá-la no indivíduo, muitos teóricos tentam investigar em que medida o indivíduo é livre ou determinado. A causalidade é um fator considerado determinante para que se chegue à essência da liberdade. No entanto, essa é justamente a teia que aprisiona o sujeito, sendo sua consciência o motivo de libertação. Nesse aspecto, o livre arbítrio surge como o contraponto, na medida em que deixa clara a possibilidade de decisão do homem e sua responsabilização pelos atos praticados. A autonomia surge nesse cenário como um amadurecimento na medida em que esta se vê ligada à consciência moral. A ética, como princípio norteador do ser social, vem servir no arcabouço onde tendências e teorias ditam o ideário de sujeito apto a viver em sociedade. Nesse sentido, Kant, através de seus conceitos serve como iluminador com princípios morais que segundo ele, podem ser aplicados a todas as questões morais. Nesse segmento, o filósofo tem no conceito de liberdade a chave para sua doutrina densa e profícua:
O conceito de liberdade, ao mesmo tempo que sua realidade fica demonstrada por meio de uma lei apodítica da razão prática, constitui a pedra angular de todo o edifício de um sistema da razão pura, inclusiva da razão especulativa, e todos os demais conceitos (...) A liberdade, porém, é por sua vez a única entre todas as ideias da razão especulativa cuja possibilidade conhecemos a priori, sem contudo penetrá-la, porque ela é a condição[2] da lei moral, lei que conhecemos. .(KANT,2011:15)
O pensador esclarece em seus apontamentos, a ligação intrínseca entre a liberdade e a moral; pois, a liberdade é razão para que encontre em nós a moralidade. De outro modo, não haveria como exercê–la se não houvesse uma lei moral que a guiasse.
Ao derivar a autonomia da vontade enquanto julgamento positivo da liberdade, Kant pressupõe o conceito de causalidade que vem a alicerçar a definição de liberdade como produto de uma vontade universalmente aceita. Daí, a base que vem formular o imperativo categórico: “Age de tal maneira que o motivo que te levou a agir possa ser convertido em lei universal” (KANT, 1980: 20). Postulado esse incondicional por admitir a autonomia da vontade como uma única razão pura universalmente aceita em todas as ocasiões, a saber:
Segue-se do imperativo categórico que, assim como ele contém apenas a forma da razão (universalidade sem contradição), a razão pura nele implicada é por si mesma prática, dando ao homem uma lei universal de conduta que se chama lei moral. (..) o imperativo categórico afirma a autonomia da vontade como único princípio de todas as leis morais e essa autonomia consiste na independência em relação a toda a matéria da lei e na determinação do livre arbítrio mediante a simples forma legislativa universal de que uma máxima deve ser capaz. (KANT, 1980: 20).
Essa fundamentação acerca da razão e da liberdade dá a ideia de que o princípio moral se funda tendo como base a autonomia adquirida de acordo com princípios morais rigidamente éticos. Assim, a definição positiva de liberdade se fundamenta a partir da noção de vontades legisladoras universais, o qual serve de critério para os juízos morais.
Ao afirmar o papel da razão na ética, Kant afirma a necessidade do dever para que nos tornemos seres morais, impondo à vontade uma vinculação às leis universais ditadas pela ética. Assim, buscando a colaboração de Chauí (1999: 346):
Essa fórmula permite a Kant deduzir as três máximas morais [grifo do autor] que exprimem a incondicionalidade dos atos realizados por dever. São eles:
1. Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida por tua vontade em lei universal da natureza;
2. Age de tal maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca como um meio;
3. Age como se a máxima de tua ação devesse servir de lei universal para todos os seres racionais.
De acordo com a orientação da autora, a primeira máxima se pauta na universalidade da conduta ética, sendo a ação por dever uma lei moral que deve servir para todos em tempos e espaços diversos. A segunda máxima se refere ao respeito ao indivíduo, sendo os mesmos considerados como um fim e não como o meio para a obtenção de interesses de outrem; princípio esse norteador de leis constitucionais que tem na dignidade da pessoa humana um vetor interpretativo e um eixo entre a individualidade e sociabilidade. Já a terceira máxima, distingue os seres humanos pela sua racionalidade, então dotado de moralidade.
É dentro desses parâmetros que o ordenamento se perpetra, tendo nas máximas de Kant parâmetros de conduta.
2.1 A Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão Pura Prática – o pensamento fundante sobre a razão.
Fundador da filosofia crítica, Kant exorta o homem o pensar com racionalidade e assim, encontrar sua autonomia. As obras do estudioso tem como princípio a busca da moralidade suprema. Assim, ao definir autonomia, preocupação constante do pensador, o mesmo a identifica como único princípio da moralidade. Ao perseguir a moral na vontade humana autônoma invoca o “caráter intemporal e universal, a vontade individual sujeita à razão” (BARRETO, 1966:27). Nesse viés, Kant chama a atenção para uma questão revolucionária: o caráter a priori da moral. Segundo o pensador, as leis morais não podem ser extraídas da experiência, mas tem sua origem a priori. Esse princípio é abordado na Crítica da razão pura, onde Kant pretendia uma restauração metafísica em face dos avanços do empirismo.
Em 1781 publica “Crítica da Razão Pura”, onde busca dar uma resposta ao empirismo sobre a filosofia do conhecimento. Considerada a “primeira crítica”, uma vez que precede a “Crítica da Razão Prática” e a “Crítica do Julgamento”, a obra “Crítica da Razão Pura” vem argumentar se não haveria outro fundamento que pudesse dar conta da existência da metafísica, formulando o problema moral. Nesses termos, o autor afirma ser o conhecimento puro aquele que não depende dos sentidos, obtido por meio de uma afirmação universal, que para ser verdadeiro, não depende da experiência ou de uma condição específica. É na parte final da “Crítica da Razão Pura”, que o pensador afirma ser a razão não constituída apenas por uma dimensão teórica, mas também por algo que ultrapassa esses limites, depositando no objeto a sua dimensão prática, mediante a ação. Nesse sentido, “a razão cria o mundo moral e é nesse domínio que podem ser encontrados os fundamentos da metafísica.” (KANT, 1980: 18).
Ao desenvolver sua filosofia, partindo do método crítico apriorístico Kant aponta as razões para fundamentar as verdades, encontrando aquelas necessárias e universais, chegando à questão primordial de sua obra: o Imperativo categórico, constituinte da condição de vida em sociedade e pressuposto para a liberdade. O imperativo kantiano constitui, pois, uma lei moral subjetiva, universal, necessária e geral de tal forma que se assemelha a uma lei da própria natureza; na medida em que a vida social e a própria racionalidade são imanentes ao ser humano.
No pensamento exposto na “Crítica da Razão Pura, o pensador disserta sobre a restauração da metafísica, designando “razão pura” o que se pode saber antes da experiência”. A filosofia kantiana expressa na primeira obra a existência de elementos subjetivos, como espaço e tempo designados de categorias, concebidos por meio do entendimento; esses capazes de operar independente da experiência, complementando a teoria empirista.
Em seu estudo sobre o uso transcendental da razão formulado na primeira obra (“Crítica da Razão Pura”), Kant demonstra ser a felicidade o objetivo maior de sua investigação, a saber:
A felicidade consiste na satisfação de todas as nossas inclinações (tanto extensivo, no que se refere à multiplicidade, quanto intensivo, no que tange ao seu grau, e também protensivo, com respeito à sua duração). (KANT, 1980:394).
Nesse aspecto, deixando à possibilidade da experiência a operacionalização dos princípios morais,
(...) a razão pura contém, não em seu uso especulativo, mas sim um certo uso prático, a saber, o uso moral, princípios da possibilidade da experiência, ou seja, e tais ações que de acordo com os preceitos morais, poderiam ser encontrados na história do ser humano. (Kant, 1980:394).
Esses preceitos delegam à razão pura seu lado prático; “em razão disso, os princípios da razão pura possuem uma realidade objetiva em seu uso prático, nomeadamente em seu uso moral”. (KANT, 1980:395). Desse modo, ao denominar o mundo moral como algo ligado à objetividade, não se opõe ao fenômeno da sensibilidade para a formação do conhecimento, mas o define como a priori e constituinte do mesmo:
Denomino mundo moral o mundo na medida em que conforme a todas as leis morais (como pode ser segundo a liberdade dos entes racionais e deve ser segundo as leis necessárias da moralidade). Nesta media, este mundo é pensado unicamente como inteligível, pois nesse se abstrai de todas as condições (fins) e mesmo de todos os obstáculos da moralidade (fraqueza ou impureza da natureza humana). Nesta medida, pois, é uma simples ideia, se bem que prática, que realmente pode e deve exercer o seu influxo sobre o mundo sensível a fim de torná-lo, tanto quanto possível, conforme a esta ideia. Consequentemente, a ideia de um modo moral possui uma realidade objetiva, não como se referindo a um objeto de uma intuição inteligível (não podemos absolutamente pensar um tal objeto), mas sim como se referindo ao mundo sensível enquanto um objeto da razão pura e seu uso prático e um corpus mysticum dos entes racionais que nele se encontram, na medida em que o livre arbítrio de cada ente, submetido a leis morais, está em si numa completa unidade sistemática tanto consigo mesmo quanto com a liberdade de cada outro ente. (KANT, 1980:394).
Ao afirmar ser necessário aos princípios morais o uso prático, o pensador deixa uma porta aberta à sua Crítica da Razão Prática como um desenvolvimento de seu postulado teórico. Nessa segunda parte, Kant discorre sobre as bases metafísicas para a moralidade, demonstrando que a razão pura é prática por si mesma:
Essa analítica estabelece que a razão pura pode ser prática, isto é, pode determinar por si mesma a vontade, independentemente de tudo o que é empírico – e ela o estabelece, na verdade, por um fato no qual a razão para princípio da moralidade, pela qual determina a vontade ao ato. (KANT, 2011:60)
As duas obras citadas, junto com as Críticas do Juízo, formam a sua trilogia crítica. Uma filosofia teórica e prática preocupada com uma razão especulativa voltada puramente a auxiliar o homem a encontrar a felicidade, tendo como único caminho a virtude guiada pela estrita moral ética.
Nesse sentido, ao estabelecer a universalidade da razão como princípio, o pensador acreditava oportunizar uma paz duradoura na filosofia e na busca do homem pelo entendimento do conhecimento e da própria razão. Contudo, conceitos novos, contrariamente ao que se pretende, são agentes detonadores de reflexões e contrapontos em decorrência da natureza humana.
3 A LIBERDADE E A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL BRASILEIRA
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
I – homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição;
II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei;
III – ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante;
IV é livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato;
(...) [3] (ALOÍSIO, 2010: 10).
A Constituição Federal de 1988 surge num contexto de retorno do país aos ideais democráticos voltados a garantir ao ser humano padrões que o levassem ao exercício da dignidade e da cidadania. Nesse cenário, a definição de “retorno” se refere a algo que remonta a uma sociedade que extrapola as fronteiras de nosso país, O iluminismo. Esse, enquanto processo, tem por base o renascimento do homem como centro de todas as situações, necessidades e ações conferindo ao ser humano um lugar de direito. Nesse cenário, de acordo com o vetor legal da atualidade a “dignidade apresenta-se, pois como uma conquista da razão ético-jurídica” (MARTA e KUMAGAI, 2012) cabendo ao Estado zelar para a efetivação da condição constitucional de direito.
A qualidade de igualdade alvitrada no texto legal tem na obra kantiana respaldo e fundamentação, tendo o Imperativo categórico lançado as bases na qual se sustenta a ideia de uma lei, que com pretensa universalidade torne cada um, embora indivíduo, partícipe de um universo maior. Nessa seara, ao ressaltar a igualdade entre homens e mulheres, cidadãos e não cidadãos como detentores de direitos e obrigações fica clara a crença de que o ser humano é dotado de razão, condição necessária ao pleno exercício da liberdade expressa na Carta Magna. Condição essa também verificada por Kant ao definir a liberdade e submetê-la ao crivo moral. A leitura do art. 5º da referida Lei também tem no exercício da liberdade, a dignidade da pessoa ao afiançar-lhe como garantia o tratamento condizente com sua condição humana. A liberdade de pensamento e a consequente responsabilização pela manifestação do mesmo vêm reforçar a consagração da ideia do Ser como senhor de si, racional e digno da liberdade dentro dos preceitos éticos.
Ao sagrar a instituição do Estado Democrático, a Constituição Brasileira de 1988, elege a igualdade e a justiça como valores supremos de sua sociedade, como se pode perceber a partir do preâmbulo:
Nós, representantes do povo Brasileiro, reunidos em assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil. (ALOÍSIO, 2010: 10).
Contudo, vale ressaltar que esses valores não surgiram em um dado momento histórico, mas constituíram fruto de reflexões e teorias que foram emoldurando o conceito de homem, de universo e de sociedade. Apreciações como liberdade, igualdade e justiça foram objetos de pensamentos e debates, ajustes e contrapontos, tendo em Kant, assim como em proeminentes pensadores que muito contribuíram para formar a imagem de homem que hoje concebemos a lente na qual se debruçam os cabedais da razão. Nesse aspecto, Kant muito contribui por enfocar a dimensão individual da personalidade humana dentro do universo social de virtudes, vontades, autonomias e direitos. Por meio do estudo de sua obra, sobretudo no que tange às três críticas percebe-se a influência das teorias do filósofo trazidas de modo quase sem distorções para os aparatos legais nos quais se pretende um “eixo próximo da perfeição na relação entre individualidade e sociabilidade” (MARTA e KUMAGAI, 2012, p.14).
4 O SUJEITO COMO OBJETO DE DIREITOS
A análise da Constituição Federal sob a luz da teoria kantiana deixa claro o caminho trilhado pela ética no decorrer da história humana. Nesse sentido, o conceito de justiça afiançado no texto constitucional está relacionado ao tratamento igualitário entre os semelhantes e desiguais na medida em que se sugere no documento legal a igualdade como garantia fundamental para a vida democrática. Essa igualdade jurídica é verificada quando se refere a aspectos como educação e trabalho. Isso se pode verificar no capítulo relacionado aos Direitos Sociais. Nesse contexto, pessoas “desiguais” têm a elas direcionadas condições especiais de acesso e permanência no que concerne à profissionalização e aos meios de ensino. Vale lembrar o art. 208 que prevê o dever do Estado com a educação pública: “atendimento educacional especializado aos portadores de deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino” (art. 208, III, in: ALOÍSIO, 2010 p. 141). Dessa forma, afiançando a toda a sociedade que aos “iguais”, aparatos iguais, aos “diferentes”, condições especiais; demonstrando assim, a verdadeira isonomia e afinando-se perfeitamente aos ideais éticos de igualdade e dignidade humanas expressos em Kant.
No que concerne ao trabalho e à verdadeira busca da autonomia cidadã, a Constituição Federal propõe os mesmos direitos e garantias direcionados aos trabalhadores urbanos e rurais, “(...) além de outros que visem à melhoria de sua condição social” (art. 7º, in: ALOÍSIO, 2010, p. 16) Impondo assim, às instâncias governamentais e capitalistas uma relação de proteção de direitos que visam à melhoria da qualidade de vida e convivência social da população. Nesse aspecto, os diversos trechos Constitucionais deixam bem clara a preocupação com o homem, proveniente de qualquer região do mundo à satisfação de sua natureza humana plena. Nesse sentido, o mesmo é dotado de liberdade e de autonomia sobre si próprio e sobre suas escolhas de ir, vir e permanecer, ao ter seus direitos vinculados à simples existência pacífica. Vale ressaltar que o texto esclarece: “é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa[grifo meu], nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens.”(art. 5º, XV, in: ALOÍSIO, 2010, p. 11). Ainda nesses parâmetros,
Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (...) (art. 5ª, in: ALOÍSIO, 2010, p. 10).
Diante dessa afirmação, a Carta Magna proclama tais direitos a todos enquanto a mesma natureza humana, tendo o princípio da liberdade como algo fundamental para a vida democrática, como propõe Kant ao verificar que o homem em certo sentido é livre; tendo em si condições de arbítrio no convívio com o outro:
(...) dado que toda limitação da liberdade por parte do arbítrio de outro se chama coação, resulta que a constituição civil é uma relação de homens livres que (sem menoscabo de sua liberdade no conjunto de sua união com outros) se acham sem embargo sob leis coativas; e isso porque assim o quer a razão mesma e certamente a razão pura que legisla a priori sem levar em conta nenhum fim empírico (...)” (Gemeinspruch, 236, apud, LEITE, 2010, P. 65).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo está muito longe de pretender sequer esboçar a compreensão plena da profunda e transformadora filosofia de Kant. Teoria essa que foi capaz de reformular o entendimento sobre o mundo, sobre a razão e sobre a forma de lidar com a humanidade no sentido de situá-lo como verdadeiro sujeito de direitos e obrigações. A liberdade enquanto condição subjetiva e necessariamente social, retratada nos estudos do pensador, vem ligada a fatores como a autonomia e dignidade humana, tendo-os como fundamentos da determinação da vontade e da valorização da felicidade a partir de princípios éticos. Essa profunda e reveladora reflexão sobre a moralidade e sobre o agir humana sob o ponto de vista do outro, surge no cenário moderno como uma mola propulsora do sujeito num caminhar contínuo para a autonomia a orientar os meandros da história e da existência coletiva. Ideais esses que se iniciam na modernidade e jamais deixam de ser transformados. Dentro desses preceitos, as Leis máximas que regem toda uma sociedade, sobretudo as ocidentais têm nos ideais do pensador sempre uma referência na formulação de leis e projetos voltados a garantir à coletividade a obtenção da ordem, da justiça e do direito à corrida pela felicidade advinda da dignidade plena. Assim, o presente estudo procurou demonstrar a similaridade entre o pensamento do proeminente filósofo Kant e os preceitos humanitários constantes no texto constitucional brasileiro.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CATÂNEO. Marciel Evangelista. ÉTICA MODERNA: Livro Didático. Palhoça: Univirtual, 2009.
CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. 12ª edição. São Paulo: Ática, 1999.
HUPFFER, Haide Maria. O Princípio da Autonomia na Ética Kantiana e sua Recepção na Obra Direito e Democracia de Jurgen Habermas. In: http://www.anima.opet.com.br acesso em 03.05.2012.
KANT, Immanuel. Crítica da Razão Prática. São Paulo: Escala, 2011.
___________. Crítica da Razão Pura. Coleção: Os Pensadores. Tradução de Valério Rohden e Udo Baldur Moosburguer. São Paulo: Abril Cultural,1980.
LEITE, Flamarion Tavares. 10 Lições sobre Kant. 4ª edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2010.
MARTA, Taís Nader. KUMAGAI, Cibele. Princípio da Dignidade da Pessoa Humana. In: http://www.ambito-juridico.com.br acesso em 08.05.2012.
PETRY, Franciele Bete. O Papel da Virtude na ética Kantiana. Florianópolis, 2007. In: http://www.cfh.ufsc.br acesso em 09.05.2012.
[1] SÓFOCLES. Édipo-Rei .São Paulo: Abril Cultural, 1976. P.66 (Coleção Teatro Vivo). In: ARANHA e MARTINS, 2009:235.
[2] [nota do pensador] Para que alguém não julgue encontrar aqui inconsequências, por dizer agora que a liberdade é a condição da lei moral e em seguida afirmar neste tratado que alei moral é a condição sob a qual só podemos aceder à consciência da liberdade, quero simplesmente lembrar aqui que a liberdade aqui que a liberdade é sem dúvida o ratio essendi (razão de ser) da lei moral, mas que alei moral é a ratio cognoscendi (razão de conhecer) da liberdade. De fato, se a lei moral não fosse em primeiro lugar distintamente pensada em nossa razão, não poderíamos nunca julgar-nos como autorizados a admitir uma coisa tal como a liberdade (mesmo que essa não implique contradição). Mas se não houvesse liberdade, então a lei moral não poderia de forma alguma ser encontrada em nós.
[3] Capítulo I – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos. Título II – Dos Direitos e Garantias Fundamentais. In Aloísio, Sandro (Diretor Editorial). São Paulo: Escala, 2010.