A EMANCIPAÇÃO CRÍTICA DA FORÇA PÚBLICA BANDEIRANTE
Por homero cerqueira | 18/05/2009 | EducaçãoIntrodução
O sentido etimológico de polícia (do grego polis) é governo de uma cidade, administração, forma de governo, referindo-se a gestão, administração e governabilidade.
A polícia constitui um organismo criado pelo grupo para garantir a coesão e o bem comum da própria sociedade. Ela é uma instituição universal, não havendo grupamento humano que a prescinda, dentro de uma forma ou de outra.
Em nosso Estado, para exercer a polícia administrativa, a Polícia Militar, exerce a manutenção da ordem pública e a defesa social, mas a origem da Polícia, como organização disciplinar e hierarquizada, tem início na Europa para gerenciar as regras da sociedade.
Numa sociedade tribal, o chefe do clã tem condições para administrar as regras e fazê-las cumprir. Na medida que a sociedade cresce, porém, passa a ser imperiosa a ação de agentes de coerção mais eficazes, pois, a partir de certo momento, as ações dos indivíduos não podem ser controladas apenas por um chefe. É nesse momento que surge a organização que se chama Polícia.
1.A sociedade e a Polícia
Os estudos sociológicos apontam que o homem é um animal social, não vive isolado e os acontecimentos fundamentais de sua vida, do nascimento à morte, as milhares de outras atividades em que se empenha, seguem padrões reconhecidas, mas precisa ser educada pelas gerações pretéritas, a fim de criá-la, reproduzi-la (mantê-la, cuidar dela), desenvolvê-la.
Em Sobre a pedagogia, Immanuel Kant descreve os estágios e divisões da educação. O primeiro estágio é o cuidado que lida com a criança puramente como uma parte da natureza e é relativo ao primeiro estágio da vida humana. Assim, sai dos parâmetros da educação quando esse termo é entendido do modo atual, mas Kant, com este estágio, trata "o cuidado que têm os pais para que as crianças não façam quaisquer uso prejudicial das suas forças" (2006, [441], p.11). O cuidado é uma parte da "Educação Física" oposta à "Educação Prática", forma aquela parte da educação "que o ser humano tem em comum com os animais" (2006, [455], p.34).
Uma vez que Kant abre Sobre a pedagogia anunciando que o ser humano "é a única que precisa ser educada" (2006, [441], p. 11), existe realmente um sentido no qual o cuidado também se coloca fora dos parâmetros da educação tal como o próprio Kant, de início, a constrói.
O segundo estágio da educação é a disciplina ou o treinamento. Como o cuidado, a disciplina também é entendida como um estágio preliminar da própria educação. Segundo Kant, "a disciplina transforma a animalidade em humanidade" (2006, [441], p.12), mas sabemos que "transformar" não significa "erradicar". Na realidade, disciplina "significa procurar evitar que a animalidade cause danos à humanidade (...) A disciplina é, portanto, meramente domar a selvageria" (2006, [449], p.25). Em um sentido mais amplo, essa tarefa é compartilhada com o que Kant em outro lugar chama de "cultura negativa" ou "libertar a vontade do despotismo dos desejos" (2006, [433], p. 29).
Dessa forma, a cultura constitui importante papel para o conhecimento e as técnicas que permitem ao homem sobreviver física e socialmente para dominar o mundo que o rodeia. O animal sobrevive em função de comportamento herdados, logo que começam a sentir alguma força, usam-na com regularidade, isto é, de tal maneira que no se prejudicam a si mesmo. O homem sobrevive do que aprende.
A vida em sociedade impulsiona o homem ao processo de socialização primária, efetivada nos primeiros grupos a que pertence desde o seu nascimento, sendo em seguida absorvido pela socialização secundária, em grupos mais amplos (dos quais o do trabalho é o mais significativo, pela importância que lhe é conferida pelo sistema de valores da sociedade), acumulando cultura num processo educacional perene, que só termina com a morte.
O conceito de sociedade remete ao conceito de cultura, que remete ao conceito de educação. Kant (2006, [1786]) mostra que a educação...
é uma arte, cuja prática necessita ser aperfeiçoada por várias gerações. Cada geração, de posse dos conhecimentos das gerações precedentes, está sempre melhor aparelhada para exercer uma educação que desenvolva todas as disposições naturais na justa proporção e de conformidade com a finalidade daquelas, e, assim, guie toda humana espécie a seu destino (...) entre as descobertas humanas há duas dificílimas e são: a arte de governar os homens e a arte de educar (2006, p. 19).
Sendo assim, a educação militar supõe o processo de desenvolvimento integral do homem, quer seja da sua capacidade física, intelectual e moral, visando não só a formação de habilidades, mas também do caráter e personalidade social.
As teorias mais conhecidas a respeito da educação militar convergem para dois pontos: a educação expressa uma doutrina pedagógica, que se baseia em uma filosofia de vida, concepção de homem e sociedade; processo educacional se dá por meio de instituições específicas (família, igreja, escola, comunidade, trabalho) que aceitam e difundem determinadas doutrina pedagógica.
DURKHEIM (1972) vê o homem egoísta, que precisa ser moldado para a vida societária, para assimilar e reproduzir os valores, normas e experiências das gerações mais velhas, DEWEY (1971) acrescenta que o individuo analisa criticamente as experiências das gerações anteriores, reorganizando seu comportamento e a sociedade. BORDIEU E PASSERON (1975) a educação reproduz a cultura e a estrutura de classes, possibilitando a reflexão crítica da cultura, conseqüentemente, sua transformação.
Já o ensino se refere à transformação de conhecimentos a acumulação e que são indispensáveis à educação. Trata-se de uma distinção formal, pois, no processo de educar, não há como separar tão nitidamente esses pólos que se completam (...) toda informação, mesmo que fornecida sem a aparente intenção de formação, ao ser assimilada pelo educando interfere na sua concepção de mundo (ARANHA, 1989, p. 49 - 50).
A pedagogia pode ser compreendida como a teoria geral da educação, uma vez que possibilita a sua eficácia. A partir da consciência dos problemas de seu tempo, o pedagogo pode formular objetivos realizáveis, os meios para atingi-los, verificar sua eficácia e rever os processos utilizados, efetivando a educação como instrumento de transformação. As ciências da educação envolvem várias outras como a sociologia, a psicologia, a filosofia, a biologia, a história, dentre outras, que auxiliam a formação da pedagogia na tutela da cidadania.
A cultura de uma organização é definida pelo conjunto de fatores que, agregados, caracterizam a postura da empresa e seu direcionamento organizacional: sua história, sua filosofia de trabalho, sua visão de mundo, seus valores, normas, ritos, símbolos e mitos, que formam o seu "caldo cultural' e a distinguem das demais".
2.A Polícia moderna
Para Michel Foucault (1997, p. XX) na obra "Segurança, território e população", o governo organiza a prática de gestão interna, ou seja, o que na altura chamada polícia, a regulamentação indefinidamente o país ao longo das linhas de uma organização urbana apertada no limita significa o Estado de Polícia, mas se iniciou no século XVII. Assim, surge a Polícia Moderna.
Max Weber disse que a característica fundamental do Estado moderno é seu "monopólio do uso legítimo da força física dentro de um dado território", enfim todo Estado é fundado na força.
Dessa forma, a manutenção da ordem pública é a função essencial do Estado. Não apenas a própria legitimidade do governo é sem grande parte determinada por sua capacidade em manter a ordem, mas também a ordem funciona como critério para se determinar se existe de fato algum governo. Sendo assim, historicamente o Estado, a ordem pública e a Polícia formaram-se simultaneamente juntos. Contudo, a instituição Policial tem sido pouco estudada pela academia, historiadores ou pesquisadores.
De um modo geral, a Polícia ainda não havia sido submetida a uma análise comparativa. Até muito recentemente nem historiadores nem cientistas sociais haviam reconhecido a existência da Polícia, quanto mais o importante papel que ela desempenha na vida social. Praticamente tudo que havia sido escrito sobre Polícia foi feito pelos próprios policiais, que apenas contavam histórias ou davam pequenas notícias.
A formação do Estado Moderno realizou-se pela produção de uma forma de poder que combinada tecnologia de poder totalizante, as quais sujeitavam todas as práticas dos indivíduos e grupos, e tecnologias de poder globalizantes, pois abrangiam práticas gerais de todos e de cada um dos indivíduos e grupos (FOUCAULT, 1994, p.153). Por esta via, Foucault sugere a noção de governabilidade, para expressar uma forma de dominação das relações estratégias entre os indivíduos e os grupos: "atividade que conduz os indivíduos ao longo de sua vida, colocando-os sob a autoridade de um guia responsável daquilo que eles fazem e daquilo que lhes acontece" (FOUCAULT, 1989, p.785).
Em fins do século XVII, o início desta forma de Estado nas sociedades modernas, Foucault afirma que ela supõe a construção de dois dispositivos de poder-saber, a Razão de Estado e a Polícia, e, ao mesmo tempo, a formulação de uma problemática, a população, que viria a ser o eixo das ciências humanas no século seguinte. Foucault (1976, p.36) compõe-se por fenômenos específicos, população-riqueza, população-capacidade de trabalho, natalidade, morbidade, fecundidade, duração da vida, estado de saúde, freqüência das doenças e formas de alimentação e de habitação.
O problema população passa a ser analisado como um conjunto de elementos que dizem respeito ao regime geral dos seres vivos e que podem ser objeto de intervenções pelo Poder de Estado, as leis, as campanhas públicas para mudanças de atitudes, as diferentes políticas públicas, na época denominadas de polícias (FOUCAULT, 1989, p. 104-105). Dessa forma, "...o que faz entrar a vida e seus mecanismos no domínio dos cálculos explícitos e faz do poder-saber um agente de transformação da vida humana" (FOUCAULT, 1976, p. 188).
As formas de poder sobre a vida dos homens e mulheres que se estabeleceram ao longo dos séculos XVII e XVIII se configuram por duas modalidades de tecnologias de poder: as disciplinas, enquanto uma anatomia política do corpo humano, agindo sobre a ordem social, espaço da reclusão e das instituições sociais; e as biopolíticas da população enquanto tecnologias de poder que se exercem sobre o conjunto e sobre cada um dos habitantes do Estado-Nação, sobre o corpo-espécie, regulando a vida, em espaços abertos, por meio de dispositivos (FOUCAULT, 1976, p.183-184).
O Estado resulta da articulação dessas tecnologias de poder no processo de construção histórica de dois dispositivos de poder-saber, a Razão de Estado e a Polícia. Em outras palavras, o Estado constituiu-se pelo realizar pleno de um processo de concentração de uma série de diferentes tipos de capitais, até então dispersos pelo espaço social: o capital da força física ou dos instrumentos de coerção (o exército e a polícia); o capital econômico, o capital cultural; e o capital simbólico (BOURDIEU, 1994, p. 109).
Além disso, a razão de Estado, a Polícia e a população: a Polícia tem sua positividade no favorecer tanto o vigor do Estado, quanto a vida dos cidadãos: "... desenvolver os elementos constitutivos da vida dos indivíduos de maneira que seu desenvolvimento reforce o domínio do Estado" (FOUCAULT, 1994, p.155-159, 822,824).
Assim nessa perspectiva, a Polícia emergiu ligada à expansão do poder do Estado, desde o século XVIII, nos princípios Estados europeu marcado pelo absolutismo. Na França, por Luís XIV, inspirado por Colbert, em 1667, assina o ato de nascimento da Polícia com objetivo de: assegurar a segurança da cidade, lutar contra a delinqüência e a criminalidade, proteger a população contra os acidentes e as epidemias e cuidar da subsistência da cidade: "a vida e a saúde dos habitantes dela dependia" assim como "evitar toda ocasião de desordem": o edito representava a salvaguarda do Estado pela proteção do cidadão (BOBBIO, 1986, p. 03).
Na Revolução Francesa, o código do Brumário Ano IV estabelecia: "A polícia é instituída para manter a ordem pública, a liberdade, a propriedade, a segurança individual" (CASTRO, 2004, p. 16). A partir dessas disposições, cristalizou-se o denominado "modelo francês de policia": ligada à formação do Estado, fazendo com que o poder imprima sua marca à Polícia, centralizada e estatal.
Na Itália, se fez tardia a constituição de corpos de polícia em nível nacional, datando da segunda metade do século XIX a organização dos "guardas da segurança pública" (BOBBIO, 1986, p.945).
Reafirma-se a preocupação de regrar a repartição de uma larga população de indivíduos no espaço social, constituindo um espaço celular composto por pontos de localização e identificação disciplinar que garantem a fixação e permitem a circulação, mas também indicam valores, assegurando a obediência dos indivíduos e uma melhor economia do tempo e dos gestos; uma tecnologia de quadriculamento que constitui o espaço policial disciplinar.
As policias militares brasileiras, principalmente, a paulista, têm uma história de combates, de lutas e de heróis, de participação intensa na história do país, facilmente explicável por suas condições legais, determinadas nas constituições federais, hoje expressa no parágrafo 6, inciso IV do artigo 144, que estabelece que "as policias militares são forças auxiliares e reserva do exército", conferindo-lhes legitimação na participação da defesa nacional e das autoridades e poderes constituídos, mas o currículo como pratica social na formação do oficial da Polícia Militar será o alicerce da sociedade democrático, voltado aos direitos humanos e à dignidade da pessoa humana.
3.Currículo como pratica social
O sentido etimológico da palavra currículo (do latim curriculum), o termo vem da palavra latina scurrere, correr, e refere-se a curso, à carreira, a um percurso que deve ser realizado, o curso, a rota, o caminho da vida ou das atividades de uma pessoa ou grupo de pessoas. Para Alípio Casali (2003, p.04) "curriculum, em latim, significa exatamente 'percurso'". O dicionário de educação define currículo como o conjunto de disciplinas sobre um determinado curso ou programa de ensino ou a trajetória de um individuo para o seu aperfeiçoamento.
O conhecimento é elemento específico fundamental na construção do destino da humanidade. Daí sua relevância e a importância da educação, processo mediante o qual o conhecimento se produz, se reproduz, se conserva, se sistematiza, se organiza, se transmite e se universaliza. E esse tipo de situação se caracteriza de modo radicalizado na educação universitária.
A distinção entre as funções de ensino, de pesquisa e de extensão, no trabalho universitário, é apenas uma estratégia operacional, não sendo aceitável conceber os processos de transmissão da ciência e da socialização de seus produtos, desvinculados de seu processo de geração.
Incorporando diretamente as idéias de John Dewey, vê a educação como processo intrinsecamente ligado à vida, não devendo ser vista e praticada como preparação para a vida, ela já é vida. E como o objetivo da vida é sempre mais vida, o objetivo da educação só pode ser a intensificação da vida.
Segundo Antônio Joaquim Severino (2003), a educação é entendida como prática simbólica e mediadora na formação humana, buscando ver quais os sentidos que essa formação recebeu ao longo de nossa tradição filosófica e na contemporaneidade, uma vez que ocorreram mudanças nas concepções que os homens fizeram do ideal de sua humanização. Sob tal perspectiva, recoloca em discussão as relações entre as diversas dimensões da educabilidade humana, destacando a dimensão ética e política que, até o atual momento, prevaleceram como fundamentos da compreensão da própria natureza da educação e concluindo que hoje a formação humana, visada pela educação, compreende-se como formação cultural.
Essa idéia dá à educação uma finalidade intrínseca de cunho mais antropológico do que ético ou político. Essa reflexão sobre a natureza da educação implica igualmente explicitar o lugar e o papel da filosofia da educação, como esforço hermenêutica de desvelamento da prática educacional, tal como ela precisa se desenrolar nas mudadas condições histórico-culturais da atualidade.
A discussão permite, assim, não apenas interpelar momentos significativos da expressão histórica da filosofia da educação na cultura ocidental, mas também debater conteúdos teóricos fundamentais do debate filosófico sobre o sentido da educação, debate que se impõe com renovada força para os educadores no enfrentamento dos desafios que estão sendo colocados pelas novas condições da pós-modernidade, responsável por um profundo questionamento das referências filosóficas da tradição cultural do ocidente. è pertinente a afirmação:
... teoria entendida e exercida como simples jogo combinatório de idéias, dimensão privilegiada e prestigiada como uma esfera autônoma, desenvolvendo-se no mundo inteligível, como se fosse uma atividade situada numa dimensão qualitativamente superior às atividades práticas desenvolvidas no mundo sensível, marcadas pela contingência. (p.07)
O Severino critica a racionalidade desenvolvida no mundo das idéias descolado do mundo real, porque o pensar humano se coloca frente à vida prática, sobretudo antecedesse a ação. Assim sendo, a teoria ilumina a prática, sobre tudo esta alimenta aquela.
a teoria, separada da prática, seria puramente contemplativa e, como tal, ineficaz sobre o real; a prática, desprovida da significação teoria, seria pura operação mecânica, atividade cega. (p. 46)
A educação como ciência fundante na transformação humana e no movimento social se socorre da sociologia, da psicologia e da filosofia para construir sua teoria, mas que tipo de teoria? O que entendemos de teoria?
A teoria, como conjunto da racionalidade construtora dos eventos futuros, na temática educacional deve estar conexa à prática para iluminá-la e dar o movimento na vida humana e social. A prática estará ligada à produção, a política e ao símbolo. Porque a educação constitui uma prática simbólica e o estado a preparar a população para o exercício da cidadania.
Diante dessa compreensão maior da cultura dominante, precisamos redimensionar as culturas populares ou culturas dominadas. Bosi (1987) entende como cultura das classes dominadas a cultura que o povo faz no seu cotidiano e nas condições que ele pode fazer. Porém, como faz Chauí (1993a, p. 43), entendemos que é produtivo distinguirmos a cultura do povo, a cultura produzida pelo povo, e a cultura popular, que inclui representações, normas e práticas que são encontradas nas classes dominadas, mas não são necessariamente produzidas por elas. Mais precisamente ainda devemo-nos referir às culturas do povo, marcando fortemente seu caráter múltiplo. A multiplicidade cultural existe não somente porque é diverso o modo de inserção de diversos segmentos de classe no sistema produtivo, mas, sobretudo, porque, entendendo-se
a cultura como ordem simbólica por cujo intermédio os homens determinados exprimem de maneira determinada suas relações com a natureza, entre si e com o poder, bem como a maneira pela qual interpretam essas relações, a própria noção de cultura é avessa à unificação. O plural permitiria, ainda, que não caíssemos no embuste dos dominantes para os quais interessa justamente que a multiplicidade cultural seja encarada como multiplicidade empírica de experiências que, de direito, seriam unificáveis e homogêneas [...] (Chauí: 1993a: 45).
Um conceito-chave para a interpretação crítica dos processos de seleção cultural é o de tradição seletiva, na acepção conferida por Raymond Williams. Williams (1961) elaborou esse conceito a partir de suas pesquisas em história da cultura. Segundo ele, a cultura de tradição seletiva é um fator de conexão da cultura vivida - a cultura de uma época e um lugar determinados, somente acessível para aqueles que vivem esta época e lugar - e a cultura de um período - a cultura registrada, de todo tipo, desde a arte aos mais variados fatos do cotidiano. Teoricamente, a cultura de um dado período é sempre registrada, mas na prática todo esse registro é absorvido por uma tradição seletiva, que nos faz conhecer determinados aspectos de uma época e outros não. E, tanto um quanto outro, são diferentes da cultura vivida. Como afirma Williams, esta seleção, em geral, reflete a organização de um dado período como um todo, embora isto não signifique que os valores e ênfases serão mais tarde confirmados. A tradição seletiva cria, então, uma cultura geral humana, o registro histórico de uma dada sociedade e uma rejeição de áreas consideráveis da cultura vivida. O processo de seleção implica continuamente em reinterpretações, mesmo porque as seleções são constantemente feitas e refeitas. Trata-se de um processo que não é realizado unicamente pela educação, mas a esta cabe um papel preponderante.
Posteriormente, Williams (apud Apple, 1979:15-6) voltou a discutir o processo de tradição seletiva, associando-o à discussão sobre hegemonia, e ampliou sua conceituação. O senso comum compõe o conhecimento hegemônico, todo um corpo de concepções, significados e valores que constituem as práticas cotidianas e nossa compreensão do homem e do mundo. Essa cultura dominante efetiva, selecionada para exercer sua hegemonia, é transmitida como sendo fruto de uma tradição, o conhecimento universal sistematizado, o passado significativo. Não se revela o processo de escolha de alguns significados em detrimento de outros e, menos ainda, o processo de reinterpretação e diluição que sofrem os significados selecionados, de forma que não se oponham, e até ratifiquem, a cultura dominante efetiva.
O conhecimento escolar se constitui no embate com os diversos saberes sociais. A escola seleciona saberes, dentre os que são passíveis de serem selecionados da cultura social mais ampla, e promove sua reorganização, sua reestruturação e sua recontextualização. É através desses processos que emergem configurações cognitivas tipicamente escolares, compondo uma cultura escolar sui generis, com marcas capazes de transcenderem os limites da escola (Forquin, 1993: 17).
Defendemos que o termo transposição didática não representa bem o processo ao qual nos referimos: (re)construção de saberes na instituição escolar. O termo transposição tende a se associar à idéia de reprodução, movimento de transportar de um lugar a outro, sem alterações. Mais coerentemente devemos nos referir a um processo de mediação didática. Todavia, não no sentido genérico conferido à mediação: ação de relacionar duas ou mais coisas, de servir de intermediário ou "ponte", de permitir a passagem de uma coisa a outra. Mas no sentido dialético: um processo de constituição de uma realidade através de mediações contraditórias, de relações complexas, não imediatas. Um profundo sentido de dialogia.
In-conclusões finais
O Currículo como pratica social representa a síntese dos conhecimentos, poderes e valores que caracterizam um processo social expresso pelo trabalho pedagógico desenvolvido nas escolas. Assim, currículo se entende, geralmente, tudo que é suposto de ser ensinado ou aprendido, segundo uma ordem determinada de programação e sob a responsabilidade de uma instituição de educação formal, nos limites de um ciclo de estudos. Por extensão, o termo parece fazer referencia ao conjunto dos conteúdos cognitivos e simbólicos (saberes, competências, representações, tendências, valores) transmitidos (de modo explicito ou implícito) nas práticas pedagógicas e nas situações de escolarização, enfim tudo aquilo a que poderíamos chamar de espaço cognitiva e cultural da educação escolar. Tais espaços propagam e disseminam seletivamente discursos, ou seja, controlam a distribuição social do saber.
O currículo compreende conhecimentos, idéias, hábitos, valores, convicções, teorias, técnicas, recursos, artefatos, procedimentos, símbolos, competências, habilidades e atitudes, portanto desvela-se a formação do oficial da PM para promover a proteção da cidadania ancorado na pedagogia da tutela da cidadania em um reformulação curricular na pratica social.
Há que ser uma reforma que derrube o prédio todo, para reerguê-lo desde as fundações. Há que ser uma reforma que deixe de lado os modelos dos estabelecimentos de ensino civis que, para além de voltados a propósitos diversos dos que são visados na formação do oficial, não podem ser havidos por bons paradigmas, como vimos acima.
É preciso que cada matéria seja construída em torno do propósito primeiro e fundamental de proteger as pessoas e os seus direitos fundamentais, porque, antes e mais que garantir a ordem, a polícia deve ser vista como instrumento de garantia da cidadania.
Para tanto, a sociedade não pode ser havida como o objeto em face do qual a polícia faz atuar o seu poder, mas, sim, a razão primeira e única de sua existência. Sem lugar para indivíduos – essa categoria em que o homem concreto se dissolve e perde a sua essência, converte-se em coisa, reifica-se enfim – mas para os homens e mulheres autênticos, com suas deficiências, suas necessidades, suas carências – todos faltos da justiça igualmente autêntica.
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