A Educação no contexto do cárcere sob a ótica dos alunos-reclusos da escola...

Por LUCIDEA PORTAL MELO DE CARVALHO | 21/12/2016 | Educação

A Educação no contexto do cárcere sob a ótica dos alunos-reclusos da escola do sistema penitenciário do Amapá.

O artigo trata de uma amostra da pesquisa realizada na escola estadual são josé, localizada no interior do sistema prisional do Amapá. Analisa as relações entre sociedade, prisão, sistema carcerário e educação no cárcere, sob a ótica de quem dela é protagonista, os alunos-reclusos dos regimes fechado e semi aberto e que estudam na escola, a partir de seu ingresso na prisão.

1 Introdução 

O Sistema Penitenciário Brasileiro, atualmente é presença marcante nos estudos de pós-graduação, em nível de mestrado e doutorado nas universidades brasileiras, sendo que em particular, a maior discussão recai sobre o aumento considerável do número de pessoas presas que se encontram sem trabalho e sem educação, embora a nossa legislação aponte para a obrigatoriedade da implementação dessas políticas. Dessa forma, mudar essa realidade, depende não só do Estado, mas em atitudes individuais e coletivas de toda a sociedade. O não funcionamento em sua integralidade tem motivos diversificados, que vai desde a superlotação das prisões, passando pelas insalubres instalações físicas, falta de pessoal qualificado para lidar com esse público-alvo; considera-se ainda, que a maioria dos  agentes penitenciários e outros servidores do sistema, só conhecem a cultura prisional, atrasando dessa forma, a reeducação da população carcerária.

 A escola em prisões constitui-se em um espaço de diálogos, entretanto, precisamos desmistificar a preocupação de como as práticas educativas serão desenvolvidas neste espaço, em meio à turbulência de lidar com policiais civis e militares, coordenadores de regimes, chefes de segurança, enfim, todos aqueles que só conhecem a cultura prisional (encarceramento) que ainda impera no sistema penitenciário.

A modalidade de ensino  que impera no cárcere é a Educação de Jovens e Adultos-EJA, a qual consiste em objetivamente ensinar, formar e qualificar homens e mulheres, para depois de ganharem a tão sonhada liberdade, possam reinserir-se com dignidade ao seio da sociedade e, consequentemente, ao mundo do trabalho.

A grande maioria desses homens e mulheres em situação de privação de liberdade necessita de uma educação ampla e diferenciada, para que adquiram conhecimentos, saberes e práticas que lhes possibilitem a (re)construção de sua cidadania. No ambiente carcerário dar voz a silenciados, a excluídos socialmente, é, de certa maneira, incluí-los novamente na sociedade, é  efetivar uma “insurreição de saberes contra efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao funcionamento de um discurso científico, organizado no interior de uma sociedade como a nossa”(FOUCAULT, 1992:71), conferindo também a esses homens e mulheres autenticidade e legitimidade  a seus saberes e suas vivências.

E quando os prisioneiros se colocam, falando, já se tem uma teoria da prisão, da penalidade, da justiça. Esta espécie de discurso contra o poder, este contradiscurso mantido pelos prisioneiros ou pelos chamados delinquentes, isso é o que conta e não uma teoria sobre a delinquência (FOUCALT, 1997:11).

Os atores sociais nessa pesquisa são alunos-reclusos da Escola Estadual São José, inserida dentro do Instituto de Administração Penitenciária do Amapá-IAPEN  e subordinada a Secretaria de Educação do Amapá/Núcleo de Educação de Jovens e Adultos. As pessoas entrevistadas vieram indistintamente de classes sociais com baixo poder aquisitivo. A realidade que os rodeavam antes do encarceramento, era um cinturão de pobreza em torno de uma ilha de poucas oportunidades de educação e trabalho, aliado a falta de perspectiva de melhorar de condição pelos processos normais de ascensão social.

Através da técnica metodológica da história oral, ouvimos e demos voz a estes alunos-reclusos, objetivando conhecer mais profundamente a trajetória de suas vidas, valores e atitudes. Sobre essa técnica, Resende (2011), enfatiza:

Trabalhar com histórias de vida de presos condenados implica dar voz a silenciados, a excluídos que, de fato, são indivíduos fixados a um aparelho de produção, ligados a um mecanismo de correção, de reformação, de normalização. Os condenados que geralmente já eram excluídos do convívio social para serem incluídos no quadro institucional da prisão, em função de virem a ser reeducandos, normalizados, o que significa uma inclusão pela exclusão (RESENDE, 2011:50).

Quando optamos trabalhar a pesquisa através da técnica metodológica da história oral, adentramos no campo íntimo e movediço da memória dos entrevistados, considerando que estes tiveram a capacidade de rememorar somente aquilo que desejavam compartilhar, o que foi respeitado pelas pesquisadoras. Neste sentido, descreve Portelli:

A memória é um processo individual, que ocorre em um meio social dinâmico, valendo-se de instrumentos socialmente criados e compartilhados. Em vista disso, as recordações podem ser semelhantes, contraditórias ou sobrepostas. Porém, em hipótese alguma, as lembranças de duas pessoas são assim, como as impressões digitais, ou a bem verdade, como as vozes – exatamente iguais (PORTELLI, 1997:16).

Trabalhar com a educação em instituições penais exige vivência e conhecimento da realidade. Faz-se necessário que participemos do cotidiano da população carcerária, para ajudá-los a participar ativamente da cultura escolar. O conhecimento das autoras foi o responsável pela  aproximação direta com os entrevistados, ora como pesquisadoras, ora como  professoras, ou ainda como militantes da advocacia criminal.

Neste sentido, vale ressaltar, que os protagonistas são pessoas condenadas[1] e que antes de começar a responder as perguntas, autorizaram-nos a revelar seus verdadeiros nomes e imagens, objetivando com isso a divulgação dessa pesquisa para que um dia a cultura escolar prevaleça sobre a cultura prisional.  

As entrevistas foram realizadas nas dependências do Instituto de Administração Penitenciária do Amapá-IAPEN e  salas de aulas da Escola São José. A referida escola foi criada pelo Decreto nº 1.399 de 01 de Junho de 2004[2]; o objetivo foi de propiciar aos presos condenados e provisórios a assistência educacional, prevista no Art. 11, Inciso IV da Lei nº 7.210 de 1984-LEP, bem como, a remição da pena pelo estudo, instituída pela Portaria nº 009/2005- Vara de Execuções Penais-VEP[2]; o objetivo foi de propiciar aos presos condenados e provisórios a assistência educacional, prevista no Art. 11, Inciso IV da Lei nº 7.210 de 1984-LEP, bem como, a remição da pena pelo estudo, instituída pela Portaria nº 009/2005- Vara de Execuções Penais-VEP[3], pelo Juiz  titular da Vara no  Estado do Amapá – Reginaldo Gomes de Andrade.   

A pesquisa apresenta a realidade vivenciada através da  fala dos entrevistados, para mostrar os paradoxos no cárcere e como a educação tem papel fundamental na vida daqueles que acreditam que a realidade dos cárceres sofrerá mudanças em um futuro bem próximo. 

1  Educação Penitenciária no Estado do Amapá 

A  problemática da educação penitenciária brasileira  vem passando constantemente por intensos debates em âmbito nacional, visando a efetiva implementação da política pública penitenciária, considerando o fato de cada Unidade Federada já possuir seus Planos Estaduais de Educação em Prisões, um grande avanço para ser posto em prática. Planos esses,  que é resultado das diretrizes nacionais para o referido grupo de sujeitos que trabalham com assistência educacional à população carcerária, na modalidade educação de jovens e adultos,  e educação profissional, os quais são professores da rede pública, monitores presos e outros profissionais contratados pelos órgãos competentes em cada estado da nação brasileira. 

O Estado do Amapá finalizou com êxito o Plano Estadual de Educação em Prisões. A realidade escolar-prisional do estado é intrínseca a uma questão fundamental: a luta constante pela mantença da vida dos profissionais, que desenvolvem suas funções na área da educação, segurança, saúde e administração, executando o cumprimento das assistências regulamentadas na Lei de Execução Penal, além da saga pela sobrevivência dos condenados e internos no trâmite dos interesses particulares do poder prisional.

 Nesse contexto, os professores  são peças fundamentais no processo da cultura escolar, ou seja, exercem papel de extrema relevância  nas escolas inseridas nas prisões. Na Escola São José, esse papel é reconhecido pelos membros da comunidade escolar-prisional e constitui parte da rotina diária dos professores.

Os alunos-reclusos, ao adentrar na prisão, já carregam consigo uma história de vida, assim como, também especificamente da vida escolar, e às vezes da vida profissional e, quando estão no interior da penitenciária passam a entender que aquele ambiente é totalmente diferente daquele que pertencia antes do encarceramento, isto é, “outro mundo”, o mundo da cultura prisional[4].

Para Vasquez (2007) a população carcerária participa ativamente da cultura prisional que é constituída por outros conhecimentos, atitudes, linguagens por palavras, gestos e movimento do corpo e práticas prisionais, a exemplo da destilação do roupinol[5]  (VASQUEZ, 2007:105-134).

Na prisão funciona um arcabouço de regras a ser cumprida, assim como, também é dado o direito a educação a aqueles que possuem bom comportamento carcerário.

2  Narrativas 

As narrativas apresentam como marco inicial a prática ou a imputação do crime, resultando na prisão, como se a memória mais remota estivesse relacionada ao aprisionamento. Em seguida, narram a convivência com outros presos, as regras da instituição e as que predominam “nos pavilhões”, como se dá a  relação com a escola, com os  colegas, professores, enfim, o real significado da educação na vida de cada um.  É como se a prisão lhes tirasse o passado, lhes negasse o futuro e os vinculasse num tempo presente, paralisado, ali, no cárcere. Procuramos garantir a preservação do conteúdo dos pequenos textos orais, inclusive palavras e expressões próprias do espaço prisional, de modo que serão indicados seus significados à medida que aparecerem ao longo do texto. 

2.1 Trajetória da Vida Criminal 

Vale salientar, que os depoimentos abaixo transcritos, são partes integrantes da tese de doutoramento da autora (1)  ainda não defendida:

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