A EDUCAÇÃO BRASILEIRA SOB UMA PERSPECTIVA PLATÔNICA
Por Rafael Augusto Gobis | 19/04/2009 | FilosofiaO autor procura analisar a educação brasileira sob a perspectiva de Estado Ideal proposta por Platão, no decorrer de sua obra e principalmente no tratado "A República". A idéia central é estudar a atual educação brasileira e o projeto de educação proposto por Platão. Sintetizar daí quais problemas atuais, encontrados na educação poderiam ser evitados se o Brasil tivesse adotado o modelo proposto pelo filósofo. Para tanto, o autor apresenta dados e percentuais relacionados com os principais problemas da educação no país, como o analfabetismo e o índice de crianças que não freqüentam a escola. Pretende apresentar ainda, baseado nos índices divulgados nos sites do Ministério da Educação e do IBGE, que a educação brasileira pública vive um momento de profunda banalização, com professores podados em seu mister e sem incentivo, além de alunos cada vez mais desinteressados com a arte de apreender. Situação inversa do que se constata na educação particular, que melhora a cada ano e, com isso, aumenta o abismo entre o educando rico e pobre, gerando maior desigualdade social. Após, o autor nos fornece uma visão do pensamento platônico, especialmente no que toca a sua divisão estatal por classes (trabalhadores, soldados e reis-filósofos); ao modelo de república, que na concepção de Platão fornece oportunidades para todas as classes; e, o modelo proposto com a educação sendo de responsabilidade total e integral do Estado. Ao final, ao autor nos apresenta suas próprias conclusões, baseadas na pesquisa realizada e em estudos, críticas e elogios realizados por outros pensadores no decorrer do tempo. A intenção do estudo é, assim, levar o leitor à reflexão acerca da catastrófica política de educação adotada no país, que conduziu principalmente a educação pública para a beira de um abismo, já que os interesses de poucos sobrepõem os da maioria, além de ser marcado por uma história de descaso e corrupção.
INTRODUÇÃO
Platão foi um filósofo inovador. Herdeiro de Sócrates, recebeu toda a orientação do mestre, mas, como característico dos gênios, aprimorou os pensamentos socráticos até a completa dissociação de sua filosofia, criando uma identidade própria.
Platão questionou quase tudo o que se conhecia à época, do amor à política. E, como não podia deixar de ser, também deu as suas pinceladas acerca da educação, embora não tenha escrito um diálogo próprio para tratar do tema.
Na obra "A República", criou todo um sistema, sua utopia, onde imaginou um Estado igualitário, uma verdadeira república, sob o pilar, principal, da educação.
Desta forma, pertinente o estudo dos problemas da educação sob um olhar platônico. Principalmente se levarmos em consideração a frágil estrutura de ensino existente hoje no Brasil e na maioria dos países de terceiro mundo.
Seria possível adotarmos algumas idéias do filósofo para a educação atual?
No decorrer deste trabalho pretende-se mostrar que sim. Platão é mais atual do que nunca. Suas idéias poderiam contribuir para a resolução de problemas encontrados até hoje, como a analfabetização.
É claro que devemos levar em conta que a vida política da Grécia, aos olhos de Platão, se encontrava em plena decadência. Platão busca a inversão dos valores, a fim de que a sociedade volte a ser guiada pela alma racional.
Daí constatarmos que embora o momento histórico fosse outro, no fundo, o que nós continuamos buscando é o mesmo objetivo.
CAPÍTULO 1
A REALIDADE DA EDUCAÇÃO BRASILEIRA
Para conceituar o que é educação, o tradicional Dicionário Aurélio utiliza-se de três visões distintas: a) classificando como ato ou efeito de educar(-se); b) como o processo de desenvolvimento da capacidade física, intelectual e moral do ser humano e; c) relacionando o conceito com civilidade e polidez[i].
Embora todas as definições apresentadas façam parte de conceito universal de educação, vamos nos ater no corpo deste trabalho apenas ao item "b", especialmente no que toca à responsabilidade do Estado, ressaltada pelo artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil.
Se buscarmos um conceito mais filosófico, encontraremos em Abbagnano, que educação é:
"A transmissão e o aprendizado das técnicas culturais, que são as técnicas de uso, produção e comportamento mediante as quais um grupo de homens é capaz de satisfazer suas necessidades, proteger-se contra a hostilidade do ambiente físico e biológico e trabalhar em conjunto, de modo mais ou menos ordenado e pacífico[ii]".
Quando nós falamos em educação de modo geral, no entanto, nos vêm à mente imediatamente conceitos relacionados com a escola, com as crianças, com a preparação dos professores, com o alfabetizado, etc.
E quando delimitamos este conceito para "educação brasileira" a coisa muda. Geralmente pensamos em escolas abandonadas, crianças analfabetas, professores sem a menor condição de trabalho, corrupção, pobreza, etc.
Não é de hoje que a educação no Brasil é um dos maiores problemas para os governantes e o povo. Mas não deveria ser assim. A educação, ao contrário, deveria ser tratada como a solução dos demais problemas do país e não como mais um estorno.
O Brasil ainda possui um número muito grande de crianças e jovens sem acesso às escolas. Mas a questão não se restringe aí. Existe um número muito maior de pessoas que já superaram a fase escolar e que não foram alfabetizadas. Estima-se que no Brasil cerca de 7% da população seja totalmente analfabeta e que 25% receberam apenas o ensino rudimentar, ou seja, sabem pouco mais do que escrever o próprio nome.
Entre 4 e 17 anos, 11% das crianças não freqüentam as escolas e o tempo médio de estudos do brasileiro é de apenas 6 anos e meio, contra 12, 15 anos dos países desenvolvidos.
Por aí se percebe que a educação no Brasil não anda bem das pernas.
Nas últimas décadas, porém, o que se constata é que a escolarização brasileira vem crescendo rapidamente. O ensino médio teve uma ampliação e o ensino superior viu o seu acesso melhorar, graças a programas de financiamento educativo e a programas de alfabetização de jovens e adultos.
Entretanto, além de ampliar o acesso, é preciso que o governo invista na qualidade. Recente pesquisa divulgada pelo IBGE constatou que 1,3 milhão de crianças entre 7 e 14 anos não são alfabetizadas. Triste mesmo é que, dentre elas, 1,1 milhão freqüentam as escolas.
A qualidade das escolas é precária. E a situação fica mais complicada quando tratamos das escolas públicas. Em junho de 2008 o Ministério da Educação apresentou o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica) referente ao ano de 2007. Apenas 1,2% das escolas públicas tinham índice comparável às escolas de países desenvolvidos.
Outro fator de preocupação, em um país com dimensões como o Brasil, é a desigualdade regional. A região Sul, por exemplo, apresenta 71% da população com a alfabetização plena, enquanto o Nordeste apresenta apenas 46%.
Mesmo dentro de uma mesma cidade se constata esta desigualdade. Em São Paulo, enquanto alunos de colégios da região da Penha e de Itaquera apresentam índices parecidos com o de escolas de primeiro mundo, escolas da região de Guaianazes, também da zona leste, possuem índices semelhantes às escolas da região Nordeste.
Enfim, o conceito defendido pelos pedagogos de forma otimista na primeira metade do século XX, de que a educação teria uma função democratizadora e que a escola seria um fator de mobilidade social não se concretizou.
Ao contrário, como exposto pelas professoras Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins, denunciando a visão de Baudelot e Establet, o que se constata ainda hoje é que a escola repete a estrutura hierarquizada, reproduzindo as relações existentes fora dela. Além disso, ela desvaloriza o trabalho manual em face do trabalho intelectual, tornando assim a própria teoria estéril, já que distanciada da prática.
Apresentado o quadro da realidade educacional brasileira, cumpre agora entendermos o que é chamado de "utopia platônica".
CAPÍTULO 2
A UTOPIA PLATÔNICA
Platão desenvolve no decorrer de sua obra, um projeto de educação e política deveras complicado, precedendo pensamentos comunistas, e, em certos momentos, até nacional-socialistas[iii], como veremos no decorrer deste trabalho.
A utopia platônica foi proposta no livro "A República", que, de acordo com os historiadores da filosofia, de maneira geral, se trata de uma resposta à condenação de Sócrates e a desilusão de Platão com o modelo que então governava a pólis.
Platão inaugura seu tratado com uma pergunta: O que é a justiça? E em cima desta questão decorre o diálogo ocorrido entre Sócrates, dois irmãos seus – Glauco e Adimanto –, um comerciante chamado Polemarco e do sofista Trasímaco.
Para Platão a única solução para a república ideal começa com o esvaziamento da pólis, ou seja, todos os habitantes da cidade com mais de dez anos de idade deveriam ser encaminhados para o interior, para que as crianças ficassem livres dos hábitos dos pais. Para ele, isso possibilitaria uma igualdade de oportunidades educacionais, já que nunca se sabe onde surgirá a luz do talento ou do gênio.
O Estado se encarregaria pela total responsabilidade no que toca à educação do indivíduo, seja homem ou mulher, e nos primeiros dez anos de estudo a educação seria predominantemente física. Isso possibilitaria que o indivíduo crescesse forte e adquirisse uma reserva de saúde que tornaria desnecessária toda a medicina. A educação deveria, assim, começar pelo corpo.
No entanto, Platão reconhece que uma educação baseada apenas na constituição física não é suficiente, afinal, em suas palavras, não é interesse do Estado uma nação de lutadores de boxe e levantadores de peso. Assim, para a mente e a alma, entende que a criança deveria receber também a educação pela música, que proporcionaria harmonia, ritmo e até uma propensão à justiça. A música, além disso, modelaria o caráter e, desta forma, participaria da determinação em questões sociais e políticas. Por fim, a música seria valiosa também para preservar e restaurar a saúde das doenças mentais.
Platão alerta que a música em excesso, porém, torna o homem "dissolvido e abrandado além do desejável" e, assim, depois dos dezesseis anos a prática individual de música deveria ser abandonada.
Durante estes anos o ensino deveria ser proporcionado sem nenhum grau de coação, já que o conhecimento deve ser adquirido de forma livre e divertida, sob pena de não se fixar na mente.
Por fim, o Estado ideal deveria possuir uma religião, a fim de desenvolver o senso moral nos indivíduos. O Estado somente pode ser forte, diz Platão, se acreditar em Deus. A religião serviria ainda para evitar eventuais rebeliões contra o Estado.
Com 20 anos os jovens seriam apresentados ao seu primeiro desafio. Um exame prático e teórico, onde cada habilidade teria uma chance de ser mostrada, assim como toda sorte de estupidez. Os reprovados seriam designados para o trabalho econômico e para o suporte do Estado. Seriam os operários, agricultores, artesãos, etc.
Os aprovados, por sua vez, iriam receber mais dez anos de educação e treinamento físico e mental. Neste período, eles seriam treinados militarmente, além de receber estudos nas áreas de aritmética, geometria e astronomia. Ao final, com 30 anos, seriam submetidos a um novo exame, muito mais difícil e penoso do que o primeiro e os reprovados, aqui, seriam os auxiliares, os assessores executivos e a força militar do Estado.
Os poucos aprovados receberiam mais cinco anos de estudo, com especial atenção à filosofia, a fim de poder pensar com clareza e desenvolver o senso crítico, além de estudar a doutrina da Idéias, a essência da mais elevada educação.
O indivíduo, então com 35 anos de idade, terminaria o estudo teórico. Não estaria, no entanto, ainda pronto para governar a nação. O último teste duraria quinze anos. Nele os filósofos seriam apresentados ao mundo real e teriam que aprender a se virar na prática, com o próprio livro da vida. Seria a última onda de eliminação.
Aqueles que sobrevivessem, aos cinqüenta anos, "despojados da vaidade escolástica pelo implacável atrito da vida, e armados agora com toda sabedoria que a tradição e a experiência, a cultura e o conflito podem cooperar para dar[iv]", iriam tornar-se os governantes do Estado, os reis-filósofos da república ideal de Platão.
Platão entende que somente assim a democracia perfeita estaria se concretizando, com oportunidades iguais para todos os homens, independentemente se nasceram de pai e mãe operários ou filósofos. Todos teriam a mesma oportunidade de se tornar governantes da nação, inclusive as mulheres[v], já que não haveria barreira sexual nesta sociedade. As meninas teriam as mesmas oportunidades intelectuais que os meninos, a mesma chance de ser galgadas às posições mais elevadas do Estado. Para Platão, se uma mulher apresentar-se capaz de administrar o Estado, que ela governe, e se um homem se mostrar capaz apenas de lavar pratos, que exerça esta função.
Teríamos assim o que Will Durant chamou de democracia das escolas - "cem vezes mais honesta e mais eficiente do que uma democracia das eleições".[vi]
Percebe-se assim que Platão divide o seu Estado ideal em três classes sociais: a econômica, que se encarregará pela sobrevivência da polis; a militar, menos numerosa que a primeira, com a responsabilidade de proteger a cidade; e a dos magistrados e reis-filósofos, que farão as leis e governarão as outras duas classes.
Evidente que tal projeto de educação e de Estado gerou muitos problemas e diversas críticas. James Mannion, por exemplo, levanta a questão de que o cidadão, após ser classificado na sua "classe" dentro do Estado, ficaria engessado, sem a possibilidade de buscar novos objetivos.[vii]I. F. Stone, por sua vez, ironiza que somente um "solteirão como Platão, que nunca na vida trocou uma fralda, poderia levar a sério uma proposta dessas[viii]".
Opiniões à parte, analisaremos na conclusão do trabalho algumas das principais críticas, inclusive as tecidas pelo seu maior discípulo, Aristóteles.
Cabe agora analisarmos algumas questões subliminares, que foram respondidas pelo próprio Platão no decorrer de sua vasta obra.
A primeira delas é como manter em paz um Estado onde a grande maioria da população seria governada por alguns poucos homens.
Bem, a resposta não é muito diferente do que acontece hoje. Platão apresenta a seu favor, neste ponto, a religião e a fé.
E como evitar que os reis-filósofos governem de forma insensata ou egoísta?
Platão expõe que se preveniu contra isso ao dar os filósofos o treinamento da vida, a prática das coisas do mundo, além da erudição das escolas. Os guardiões, assim, seriam homens de ação e não homens de idéias. Seriam acostumados a propósitos elevados e têmpera nobre por longa experiência e privações.
Além disso, Platão cria para esta classe uma espécie de comunismo, onde nenhum guardião terá qualquer bem pessoal, salvo os de absoluta necessidade. Receberão do povo apenas o suficiente para cobrir as despesas e nada mais.
Estas medidas tornariam perigosas as tentativas dos filósofos de governarem pensando no bem de sua classe e não da comunidade como um todo, já que poderiam deixar de receber os bens necessários do povo, além de ficarem impossibilitados de sentirem cobiça e terem ambições sórdidas.
Mesmo as mulheres e os filhos estariam abrangidos neste sistema comunista. Os filhos seriam criados em comum, sendo retirados das mães imediatamente ao nascer.
Todas as reproduções seriam supervisionadas eugenicamente. Nenhum homem ou mulher reproduziria se não estivessem com a saúde perfeita. Os filhos de uniões não autorizadas ou os nascidos deformados seriam abandonados para morrer.
Com relação à defesa externa do Estado, embora esta seja uma nação pacífica, deveria manter um exército preparado para evitar uma invasão e a pilhagem, razão pela qual a classe intermediária (os reprovados no segundo exame) deveria possuir um número suficiente de soldados bem treinados. Além disso, deveria se evitar, na medida do possível, instalar o Estado próximo a mares ou rotas comerciais, para que fique isolado de qualquer desenvolvimento proporcionado pelo comércio exterior.
Por fim, com o intuito de evitar que os trabalhadores da classe mais baixa da população - que poderiam trabalhar com dinheiro e acumular riqueza - se tornassem poderosos o bastante para ameaçar o equilíbrio do Estado, Platão estabelece que todo aquele que acumular mais de quatro vezes a posse média dos cidadãos teria que ceder o excesso ao Estado.
Somente com a adoção destas medidas, na visão de Platão, a sociedade poderia ser considerada perfeita e eficiente, resultando, conseqüentemente, no Estado justo.
CAPÍTULO 3
CONCLUSÃO
Exposto o pensamento platônico, a primeira pergunta que podemos e devemos nos fazer é: É um projeto factível de ser implantado ou se trata apenas de uma utopia?
Para a resposta desta questão precisaremos voltar alguns anos na história, para concluir que não só é factível como foi decididamente implantado em alguns momentos, com os devidos limites e modificações.
Basta olharmos para a Europa da Idade Média, dominada pela Igreja, onde a população era classificada em laboratores (trabalhadores), bellatores (soldados) e oratores (clero). Embora o último grupo seja de longe o menor dos três, era ele que dominava a população, utilizando-se de força moral, representada pela fé e por conceitos religiosos.
Durante mil anos o povo aceitou ser representado pela Igreja, sem grandes rebeliões ou requisições, incluindo aí o direito de votar em seus governantes.
O Partido Comunista, que dominou a ex-URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas), muitos anos depois, também apresentou uma relação com o pensamento platônico na busca do Estado Ideal.
Exemplos como estes indicam que não só o projeto de Platão para o Estado é exeqüível, como foi implantado em grandes regiões por grandes períodos, obviamente com algumas restrições.
O que nos falta, talvez, seja um exemplo da implantação do projeto especificamente no que toca à educação e ao desprezo platônico pela instituição "família".
Este desprezo pela família, aliás, foi um dos grandes pontos de onde sobraram críticas a Platão. Will Durant posiciona que, segundo alguns, Platão minimiza o instinto maternal ao supor que as mães concordariam com a retirada de seus filhos para que a educação fosse proporcionada exclusivamente pelo Estado. Além disso, abolindo a família, Platão destrói a zeladora da moral e a principal fonte de hábitos cooperativos que teriam de ser a base psicológica do Estado[ix]. Voltaremos ao assunto adiante.
Já Aristóteles acredita que seu mentor cria seu plano baseado numa suposta presunção de que as pessoas comuns têm uma virtude acima do que realmente possuem. Esclarece para tanto que
"não devemos presumir um padrão de virtude que esteja acima das pessoas comuns, nem uma educação que seja excepcionalmente favorecida pela natureza e pelas circunstâncias; mas temos de levar em consideração a vida que a maioria tem condições de partilhar e provavelmente as formas de governo que os estados em geral também possam alcançar.[x]"
Embora todas essas críticas sejam respeitáveis, se buscarmos no fundo das concepções de Platão, veremos que o filósofo está certo ao tentar propor um Estado onde todos teriam oportunidades iguais, sem favorecimento a ricos ou a classe dominante da cidade.
Além disso, o Estado seria governado pelos mais sábios, o que, embora termine o conceito de democracia, nos atirando na aristocracia, não seria de todo ruim, se observadas as responsabilidades e vedações criadas por Platão.
Seriam governantes aqueles que estudassem para tanto. Afinal, não é assim com todas as outras profissões? Um médico não precisa se especializar na medicina; e, a um advogado, não é necessário seu estudo em direito? Com o político funcionaria da mesma forma.
Além disso, em defesa de Platão, é correto afirmarmos que o pensador compreendia que seu plano era um ideal difícil de ser atingido, um sonho. No entanto, lembrava, muitos sonhos criam pernas e seguem em frente.
Platão, é conveniente mencionarmos, foi chamado a Siracusa com o intuito de implantar seu projeto. A experiência foi um fracasso, mas não acabou com o sonho do filósofo.
Mas sobre este assunto já tratamos demais, nos afastando um pouco do tema proposto ao trabalho. Cumpre agora analisarmos a questão da educação brasileira, à luz do projeto platônico.
Para isso, devemos começar questionando se existem elementos no projeto platônico de educação que possam ser efetivamente aplicados nos dias de hoje. E a resposta parece ser sim, na medida em que a educação poderia ser melhorada com pequenas mudanças, como veremos adiante.
Evidentemente que a aplicação do modelo integral, assim como exposto na "República", não seria viável, pois existiram alguns problemas; alguns deles já discutidos anteriormente.
O maior deles refere-se questão da família.
Para a maioria dos brasileiros a família é o bem mais importante que possuem. Seria realmente uma utopia acreditar que o brasileiro estaria disposto a se desligar da família, mesmo que isto acarrete em uma diminuição da desigualdade social.
Assim, o ideal platônico somente poderia ser aplicado com alguns ajustes. A manutenção do conceito de família seria um deles.
E, desta forma, como trabalhar para que a criança não adquira os maus hábitos dos pais?
A escola precisaria trabalhar com isso nos primeiros anos, educando a criança de modo que a mesma crie um senso crítico, de modo a perceber o que é correto e o que é errado na educação recebida dentro de casa.
Afora a exclusão da família, entendemos que os demais conceitos e ideais platônicos para a educação são plenamente factíveis. A começar pela educação exclusivamente estatal.
A criação de um sistema único de ensino possibilitaria a todas as crianças a mesma oportunidade e não criaria maiores gastos para o Estado, uma vez que uma boa educação, como já mencionado, excluiria (ou, na pior das hipóteses, reduziria) outros gastos relacionados com problemas existentes nos dias de hoje, como a criminalidade e, como já alertava Platão, com a medicina.
Aliás, sobre a medicina, é importante abrirmos um parêntese. Hoje, diferentemente da época onde viveu Platão, já se sabe que algumas doenças são hereditárias, passando de pai para filho. Evidentemente tais doenças, assim como os acidentes, não reduziriam os gastos com a saúde. No entanto, a maioria dos recursos é destinada para vítimas da criminalidade ou com doenças geradas a partir do sedentarismo, além das doenças mentais, o que poderia ser evitado com uma boa educação na parte física e mental do indivíduo, nas primeiras décadas de vida.
A educação totalmente gerada pelo Estado possibilitaria um real controle no problema da evasão escolar, uma vez que, ao Estado, ficaria acessível os nomes das crianças não matriculadas (basta, para isso, que o Estado busque tal informação, em contraposição aos registros de nascimentos), bem como o problema da alfabetização (todas as crianças receberiam a mesma carga de ensino, assim como o mesmo plano de aula).
Mesmo a "divisão de classes" platônica poderia ser utilizada no conceito de educação, e aqui segue um pensamento utópico, aplicado aos dias atuais, que, gostamos de acreditar, satisfaria o filósofo.
A metodologia da educação funcionaria mais ou menos assim:
Todos os alunos receberiam a mesma educação básica, fundamental e média, ao final da qual prestariam o primeiro exame (o vestibular), aos moldes propostos por Platão. Os reprovados seriam encaminhados para cursos técnicos, onde aprenderiam, a critério da necessidade estatal, técnicas de comércio, mecânica, construção civil etc.
Os aprovados seriam encaminhados para as faculdades públicas, onde receberiam educações superiores, baseadas em exames vocacionais, em cursos de Medicina, Engenharia, Direito, Pedagogia, entre outros.
Após a conclusão dos estudos, seriam selecionados pelo Estado aqueles que melhor aproveitamento obtiveram, assim como aqueles com aptidão política. Esses, e apenas esses, seriam educados para o governo.
Tal sistema resolveria outro problema encontrado na educação brasileira de hoje, o abandono da escola, já que todos teriam, mais ou menos, o mesmo período de educação, seja para qual profissão escolhessem ou fossem direcionados. O prazo médio de estudo do brasileiro (6,5 anos), que tratamos quando apresentamos o quadro da educação hoje no Brasil, certamente seria ampliado.
O direcionamento para profissões de acordo com a necessidade estatal, ainda, promoveria o ensino com a prática, tão ausente nos cursos existentes no mercado. Isso ajudaria a reduzir o desemprego. Vemos todos os dias no noticiário que existem milhares de vagas no mercado de trabalho, o que faltam são profissionais qualificados, enquanto em outras carreiras o que se percebe são mercados saturados, com muitos profissionais.
O Estado teria a possibilidade de educar o indivíduo conforme sua necessidade, não com o intuito de transformá-lo em um robô, mas sim em uma pessoa útil para a sociedade e para o próprio Estado.
A divisão de classes continuaria existindo, por ser necessária, mas esta forma de educação forneceria a todos a possibilidade de alcançar os postos desejados, baseados unicamente em seu esforço pessoal.
Independentemente da condição financeira dos pais, este projeto proporcionaria uma igualdade de oportunidades a todos os homens e mulheres, no caminho da instrução universitária e do progresso político.
Enfim, possivelmente seriam medidas que acabariam (ou reduziriam) com a maioria dos problemas apresentados no começo deste trabalho, especialmente com a desigualdade social, com a questão do analfabetismo, com a evasão escolar e com a capacitação de professores.
Não há dúvidas, porém, que criariam insatisfações, principalmente da classe mais abastada da população. Isso poderia ser resolvido com políticas adequadas, que não trataremos aqui, de modo a não alongar por demais o trabalho e fugir do tema proposto.
Sobre isso somente é importante lembrar que toda mudança gera desconfiança e desconforto. Cabe a nós retornarmos a pergunta inicial do livro "A República" – O que é justiça? – para questionarmos se tal justiça é o que realmente buscamos.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
Livros
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- FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI – o minidicionário da língua portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000.
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- STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
E-Referências
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Artigos de Revista
- REZENDE, Rodrigo. Sócrates no banco dos réus. Aventuras na história, São Paulo, Ano 4, n. 58, p. 56-59, mai. 2008.
[i] FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio Século XXI – o minidicionário da língua portuguesa. 4ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, pg. 251.
[ii] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 357-358.
[iii] Platão desenvolve um projeto de eugenia, onde pretende que os melhores de cada sexo reproduzam com os melhores do sexo oposto, a fim de melhorar a qualidade do indivíduo. Alguns séculos adiante, Hitler e os nazistas apresentaram plano semelhante, que felizmente não foi para a frente.
[iv] DURANT, Will. A história da filosofia. São Paulo: Nova Cultural, 2000, p. 55.
[v] Na época de Platão (427 a.C. – 347 a.C.), é bom lembrar, as mulheres exerciam apenas o papel secundário de donas do lar e não eram consideradas cidadãs da pólis, papel exclusivo dos homens livres.
[vi] DURANT, Will. Op. cit., p. 56.
[vii] MANNION, James. O livro completo da filosofia. 5ª ed. São Paulo: Madras, 2008, p. 37-39.
[viii] STONE, I. F. O julgamento de Sócrates. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
[ix] DURANT, Will. Op. cit., p. 64.
[x] ARISTÓTELES, apud DURANT. Op. cit., p.64.