A dualidade de Rui Knopfli

Por Rafael Henrique de Matos | 31/08/2016 | Literatura

Por Rafael Henrique de Matos                                

CARTA PARA UM AMOR - Rui Knopfli

Cidade!,

nunca fui mais longe do que

à raia de Espanha.

Creio amar Paris,

conheço Paris dos filmes, a Concórdia

dos postais, a Torre Eiffel divulgada,

Hitler passando sob o Arco do Triunfo.

Amo Paris em Aragon e Eluard,

Paris dos pintores, Paris de Erenburgo.

Amo outras cidades, todas as grandes

cidades.

Madrid dos espanhóis e do coração despedaçado,

Stalinegrado das batalhas, Berlim do triunfo.

Nunca fui às grandes cidades,

amo-as porque os homens mas ensinaram

a amar.

Conheço Lisboa grande e colorida,

longe dos meus sentidos

e Johannesburg do ouro e do pó.

Nunca fui a New York ou São Paulo

do Brasil.

Chicago, Los Angeles, Londres,

Moscou, Rio, não conheço,

não conheço as grandes cidades,

que as há,

do estado de Massachusetts

ou da beira do Nilo.

Cidade!,

amo em retórica discursiva

as outras cidades.

Das viagens que tenho feito,

por rotas tão diferentes,

és sempre a meta, cidade que amo

desde sempre,

- para lá dos poetas, dos pintores,

dos filmes e da retórica discursiva.

Os nossos companheiros tiveram

a coragem de partir,

vivem nas grandes cidades, com história,

do mundo,

eu fui covarde e fiquei.

Experimentei, e não soube, viver longe de ti

noutras cidades.

Sei que este meu amor é a minha mediocridade

também,

a mediocridade de quem não teve asas

para subir mais alto

e orgulho, o orgulho que nada venceu,

nem o ser estranho na própria terra.

É uma ternura que escorre

das tuas tranquilas avenidas de acácias

e jacarandás,

dos claros prédios,

da população colorida,

da mansitude da baía,

do teu ar de provinciana janota.

Cidade, menina fútil

de pouca história,

carros pequenos nas ruas,

velas na baía, patinadores nos ringues,

terra de sete estuários,

de cinemas e cafés buliçosos,

de alegrias e pequenas traições,

leviana, ingénua, snob, bonita,

mulata, branca,

hindu, negra,

de cabelos louros e olhos amendoados,

morena sensual,

terra índica, minha terra,

minha amada inocente, prostituída.

Amo-te cidade da infância,

com girassóis e casa de madeira e zinco

a dormir na neblina da memória.

As quadrilhas de arco, flecha e pistola

de fulminantes,

os esconderijos da barreira,

o sexo e as coxas morenas de Xila,

a Sete de Março da política e dos antigos cafés,

a tristeza verde-negra do Enes,

o paço do senhor bispo

e S. Navio todos os meses.

Quebrou-se esse velho espanto

e nossos companheiros

tiveram a coragem

de partir para outras cidades,

com história, do mundo

(Para eles tua lembrança é

fugitiva mágoa).

Só,

eu fiquei abraçado a este amor anónimo.

  Este poema reflete um dos mais importantes aspectos críticos em relação a Rui Knopfli, sua dualidade. Se por um lado Knopfli se relaciona à uma tradição literária européia, por outro também é um dos percursores de um discurso literário moçambicano, o que o enquadra num certo tipo de moçambicanismo cosmopolita(Monteiro,2003 pg.11).

  O poema é dividido em 4 partes, sendo que a priemeira refere-se as outras cidades que não são a sua própria (Paris, Rio, Berlim...) e qual a relação que o sujeito mantém com elas (Creio amar Paris/ Amo outras cidades/ amo em retórica discursiva), uma relação que se é próxima em quesitos de conhecimento é fútil e distante pois tal conhecimento é artificial, indireto (Nunca fui às grandes cidades, amo-as porque os homens mas ensinaram a amar).

  A segunda parte é a relação entre as outras cidades com a cidade que o próprio sujeito habita (amo em retórica as outras cidades.../ Cidade, menina fútil de pouca história), um contraste entre as cidades de metrópoles e as cidades coloniais, um contraste entre a agitação de grandes conquistas, histórias e batalhas e uma vida tranquila de um espaço ingenuinamente jovem aos olhos do mundo (...não soube viver longe de ti noutras cidades...este meu amor é minha mediocridade...de quem não teve asas pra subir mais alto...É uma ternura que escorre das tuas tranquilas avenidas...). Se em Paris temos o Arco do Triunfo que Hittler cruzou, na cidade do sujeito temos uma tranquila avenida de acácias, se existe a "Berlim do Triunfo" há aqui, na sua cidade, alegrias, pequenas traições e levianismo.

  A terceira parte nos remete à infância, a origem da própria construção do sujeito. Mesmo conhecendo outras cidades, amando outras cidades, a sua origem provém da cidade com "girassóis e casas de zinco". A quarta parte nos fala como o encanto das memórias da infância ressoa de diferentemente no próprio sujeito em comparação a outros que compartilharam de uma mesma memória, enquanto os "companheiros tiveram a coragem de partir para outras cidades" ele ficou "abraçado a este amor anónimo", enquanto para outras a visão da infância é uma "fugitiva mágoa" para ele é vivência de sua própria constituição de ser.

  A coluna vertebral do poema se desenrola em torno de uma temática de comparação e choque entre aspectos metropolitanos e coloniais. A carta de amor que o sujeito escreve não é destinada para o amor intelectualizado (Monteiro, 2003 pg.75) representado pelas cidades que conhece através de uma impressão didática, mas sim para seu amor de infância, para a cidade que reconhece como sua por ter crescido  em meio à suas acácias e casas de zinco. A contraposição entre esses dois cenários busca um enaltecimento de uma cidade que tem seu brilho tomado pela dominação de outra, busca um renascimento do olhar em relação à própria realidade vivida que não é contemplada por um inibriamento das visões impostas por um domínio exterior.

  Um aspecto presente na poesia de Knopfli que é representado neste poema é a característica de "redimir o espaço colonizado dum estatuto de marginalidade e relocalizá-lo no mapa do mundo com um estatuto que o centraliza geográfica e historicamente" (Monteiro, 2003 pg.54). Ao comparar os dois espaços fisicos vemos uma clara elevação do espaço queo sujeito considera como sendo o principal em sua formção de identidade (o espaço da infância, materno) enquanto o outro espaço (outras cidades) são referências apenas de conhecimentos e intelectualidade.

  Outro topos knopfliano é uma construção indireta do ser poético, uma personificação que posiciona o sujeito poético de forma indireta como porta voz do coletivo humano que habita a geografia personificada (Monteiro, 2003 pg.89). Diferentemente de outros famosos poetas de Moçambique, Knopfli era branco de origem européia, isto foi fato principal para a dualidade de análises que circundam seu trabalho literário (continuação de uma literatura ocidental ou nascimento de um caráter cosmopolita moçambicano?). Por isso em seus trabalhos Knopfli não implica diretamente uma caracterização do sujeito (Assim como Craveirinha em "Grito negro" e Noemia de Souza em "Se me quiseres conhecer") mas sim se volta para uma caracterização do espaço geográfico e histórico como arma para exaltar as qualidades de sua terra e convite para que aqueles que partilhem de um mesmo olhar se deliciem com sua terra sendo colocada no centro do mundo.

  Como nos elucida Monteiro (2003 pg.12) a vertente de análise africanista tem reservas quanto Knopfli ser relevante ao discurso da moçambicanidade pois há na sua poesia uma ausência de parâmetros expressivos de Negritude. Mas nos diz o próprio Knoplfi: "Eu não posso assumir dores que não sinto..."(Monteiro, 2003 pg.27). Com isso Knopfli ressalta a importância de seu discurso em relação não diretamente a questão da opressão do negro e sim em relação da opressão de um modo geral, de um dominio metropolitano sobre a África que deve ser combatido, ressaltando em sua poesia uma união entre os sujeitos que vai além de sua cor mas de um mesmo espaço e história compartilhados que geram uma mesma experiência vivida, de uma experiência vivida por um "população colorida...mulata, branca, hindu, negra, de cabelos louros e olhos amendoados...". A "terra índica, minha terra, minha amada inocente, prostituída" é a terra de todos aqueles que se identificam com o discurso knopfliano (que se identificam com o cenário por ele descrito) e não apenas da Negritude (que assim como Knopfli alimenta relações de formação intelectual fora do continente africano).

  Por fim percebemos que a poesia de Knopfli apresenta como aspecto central a dualidade entre os âmbitos particular/afetivo que remontam a sua africanidade e o geral/intelectual que advém de sua relação e influência dos conhecimentos literários ocidentais/europeus. E exatamente por essa dualidade que a marca de sujeito é geralmente apagada (ja que Knoplfi é um africano branco e não pode assumir as dores de outros, mas pode sentir o que é compartilhado em um mesmo ambiente geográfico e histórico) em detrimento da qualificação dos espaços geográficos e históricos.

Bibliografia

** Monteiro, Fátima - O País dos Outros, A poesia de Rui Knopfli - Escritores dos países de língua portuguesa n°32, Emprensa Nacional Casa da Moeda, 2003