A DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE HART E DWORKIN
Por Charles Nunes Bahia | 07/09/2013 | DireitoA DISCRICIONARIEDADE JUDICIAL À LUZ DAS TEORIAS DE HART E DWORKIN
Charles Nunes Bahia
Advogado; graduado em Direito pela PUC Minas
RESUMO:
Os problemas inerentes ao uso da linguagem, ao adentrarem no campo normativo, acarretam uma textura aberta ao direito, abrindo possibilidades para que o judiciário exerça a função de legislador, de modo a conceder uma resposta adequada ao caso concreto. Por esse motivo, o exercício de um poder discricionário se apresenta como inevitável mecanismo utilizado pelos magistrados ao se depararem com a ausência de regulamentação normativa em situações específicas. Nesse sentido, busca o presente artigo tecer uma análise do fenômeno da discricionariedade judicial com foco no caloroso embate calcado nas ideias de Hart e Dworkin, objetivando demonstrar as posições antagônicas desses jusfilósofos sobre o tema abordado, assim como desfazer alguns equívocos comuns no tocante à visão atribuída ao positivismo jurídico no âmbito de aplicação do direito.
PALAVRAS-CHAVE: Hart; Dworkin; discricionariedade judicial; regras; princípios
ABSTRACT:
The problems inherent in the use of language, by incorporating the normative universe, entail a Law’s open texture, opening possibilities for the judiciary to exercise a function legislative, providing an appropriate answer to the case. Therefore, the exercise of a judicial discretion is presented as inevitable mechanism used by judges in the absence of normative regulation in specific situations. In this sense, the present article search to present an analysis of the phenomenon of judicial discretion, focusing on clash of ideas sustained by Hart and Dworkin, aiming to demonstrate the antagonistic positions of these philosophers about the subject, as well as dispel some common misconceptions about the vision attributed to juridical positivism in the ambit of application of the Law.
KEYWORDS: Hart, Dworkin; judicial discretion; rules; principles
SUMÁRIO: 1 Considerações iniciais, 2 A união de regras primárias e secundárias proposta por Hart; 3 A regra de reconhecimento de Hart; 4 A textura aberta do direito e a discricionariedade judicial; 4 A regra de reconhecimento e o poder discricionário segundo Dworkin ; 5 A solução de Dworkin ao problema, 6 Conclusão;
1 Considerações iniciais:
O embate jurídico-científico construído nos moldes do pensamento do inglês Herbert Lionel Adolphus Hart, desperta imenso interesse no campo normativo. Sua obra mais famosa “O conceito de Direito”, publicada pela primeira vez em 1961, evidencia uma busca incessante pela resposta mais aceitável do que seja, de fato, o conceito de direito. Imerso em um universo envolto por normas, Hart cria um sistema complexo, que vai muito além da união de regras primárias. A verificação da existência de um campo normativo, no qual existam regras secundárias aptas a oferecer critérios de validade à existência de um ordenamento jurídico, faz evidenciar uma forma organizada aceita pelas sociedades desenvolvidas. A supremacia de uma regra secundária de reconhecimento torna-se o remédio necessário para estabelecer os limites do direito. Todavia, é na chamada zona de penumbra, espaço aberto inalcançável pela regra de reconhecimento, que há, segundo o filósofo, a inevitável existência de um poder discricionário por parte do julgador, tendo em vista a existência de algo que ele denomina “textura aberta do direito”.
Contrariando proposições importantes, através das quais Hart baseou sua teoria, emerge no contexto jurídico-filosófico, o nascimento de ideias antagônicas às defendidas pelo filósofo inglês. A doutrina Construtivista[1], do estadunidense Ronald Dworkin, mostrou-se de imensa importância, ao passo que, traçando minuciosa análise à obra de Hart, teceu em “Levando os direitos a sério”, críticas deveras importantes no seio da transição positivismo/não positivismo, que merecem ser meticulosamente analisadas. Crítico ferrenho do positivismo jurídico, o filósofo tenta desmantelar a ideia da inevitabilidade da existência de uma discricionariedade judicial, afirmando que a textura aberta do direito, nada mais seria que uma decorrência do modo como o positivista enxergaria o ordenamento jurídico.
O fato é que o problema que circunda em torno do poder discricionário de um juiz continua sendo alvo dos mais interessantes debates, sendo, dessa forma, de enorme interesse adentrar a esse contexto discursivo, analisando cuidadosamente a proposta de cada jusfilósofo.
2 A união de regras primárias e secundárias proposta por Hart:
Contrariando as ideias desenvolvidas pelo positivismo clássico, Hart cria um sistema jurídico arraigado em práticas sociais, cuja força coercitiva advém da aceitação das próprias regras pela sociedade, o que origina, consequentemente, um conceito de obrigação ligado a uma conduta crítica e reflexiva de determinado padrão que, depois de internalizado como hábito dentro do ordenamento jurídico, se transforma em regra social juridicamente válida. Sob esse prisma, o filósofo inglês se propõe a apresentar uma nova visão do direito, baseada na união de regras primárias e secundárias.
Para Hart, a existência de um sistema normativo constituído apenas por regras primárias seria a expressão das sociedades primitivas, marcadas pela simplicidade das relações sociais, nas quais as únicas regras que existiriam seriam aquelas relativas às condutas, limitando-se a impor deveres. As regras desse tipo exigiriam, portanto, que os seres humanos praticassem ou se abstivessem de praticar certos atos, quer queiram, quer não[2].
As regras secundárias, responsáveis por atribuir poderes, seriam um traço peculiar das sociedades desenvolvidas, que evoluíram através do advento de relações sociais mais complexas. Nesse campo de transformações, que sofreram as sociedades primitivas, três grandes problemas surgiram, que segundo Hart, estariam relacionados à impossibilidade de manutenção de um sistema fundado em regras primárias. Ao primeiro, o filósofo denomina “problema da incerteza”, ligado à questão da mutação de regras sociais ao longo do tempo e a dificuldade de reconhecimento das mudanças por parte dos membros da sociedade. Ao segundo, ele denomina “problema do caráter estático das regras”, relacionado à escassez de meios encontrados pela sociedade para institucionalizar novas regras ou fazer com que as antigas deixem de existir. Quando ao terceiro, ele denomina “problema da ineficácia”, sustentando-se no fato de que o descumprimento das regras dentro de determinado contexto social, gera sua ineficácia no mundo jurídico, transmitindo-se a ideia de desobrigação.
Ensejando solucionar esses problemas, Hart propôs basicamente três espécies de regras secundárias, cada uma delas destinadas especificamente para a solução de um dos problemas supramencionados.
“(...) A solução para cada um desses três defeitos principais dessa forma mais simples de estrutura social consiste em suplementar as normas primárias de obrigação com normas secundárias, que pertencem a uma espécie diferente. A introdução de correção para cada um dos efeitos mencionados poderia ser considerada, em si mesma, uma etapa da transição do mundo pré-jurídico ao jurídico, pois cada recurso corretivo traz consigo muitos dos elementos que permeiam o direito: certamente, combinados, os três recursos bastam para converter o regime de normas primárias em algo que é indiscutivelmente um sistema jurídico”. (HART, 2012, p. 121-122)
Assim, para colocar término ao problema da incerteza, haveria uma “regra de reconhecimento”, que através de um critério formal, indicaria se determinada norma seria válida ou não, independentemente de qualquer avaliação subjetiva. Quanto ao problema do caráter estático, este seria resolvido através de “regras de modificação”, definidoras da competência de criação, instituição e destituição das regras de um ordenamento jurídico, permitindo, dessa forma, uma movimentação dinâmica do sistema legislativo. Por fim, em relação ao problema da ineficácia das regras, a solução seria as “regras de aplicação”, responsáveis pela escolha de representantes sociais aptos a julgar as controvérsias decorrentes das decisões tomadas por particulares.
Para tratar o tema abordado no presente artigo, versar-se-á tão somente sobre uma das três regras secundárias citadas, talvez a mais importante dentro do estudo da teoria de Hart: a regra de reconhecimento.
3 A regra de reconhecimento de Hart:
O critério de identificação do direito escolhido por Hart consiste em uma única “Regra de Reconhecimento”, cuja estrutura se encontra segmentada na prática social de determinada comunidade e, faz com que todas as demais normas sejam identificadas com base nela, o que lhe atribui um enorme senso de autocrítica, evidenciando seu caráter preponderantemente interno.
A regra de reconhecimento, por ser o último critério de validade normativa, seria o instrumento responsável por dizer quais normas seriam, de fato, pertencentes ao ordenamento jurídico. Funcionaria, portanto, como um teste de validade para o sistema, alicerçado por uma conduta social que reconheceria em determinado momento histórico, o que seria direito válido. Segundo Hart:
“(...) a maioria da sociedade obedece habitualmente ao direito pela ideia de que esta maioria deve necessariamente partilhar, aceitar ou encarar como vinculante a norma última de reconhecimento que especifica os critérios segundo os quais, em última instância, a validade das leis é determinada.” (HART, 2012, p. 147)
Como critério de identificação do ordenamento jurídico, a Regra de Reconhecimento, ao exercer o controle do sistema jurídico, utilizaria de critérios específicos que, sob diversas formas, diriam quais normas primárias de obrigação seriam aceitas. Conforme assevera Hart:
“(...) Os critérios assim disponibilizados, podem, como vimos, assumir qualquer uma, ou mais de uma, dentre as diversas formas; incluem-se entre estas a referência a um texto autorizado; a um ato legislativo: à prática consuetudinária; as declarações gerais de pessoas específicas; ou, em casos particulares, as decisões judiciais anteriores sobre casos específicos.” (HART, 2012, p. 130)
Por esse motivo, o ingresso dessas normas no campo jurisdicional, estaria condicionado à satisfação dos critérios exigidos pela regra de reconhecimento que, por não se manifestar de forma explícita, se revelaria através de um comportamento externo, condicionando o modo como as regras são identificadas pelos tribunais e pelos particulares.
A grande dificuldade evidenciada pela Regra de Reconhecimento, segundo Hart, estaria em se reconhecer uma regra primária como válida dentro de determinado sistema jurídico, tendo em vista que muitos enunciados normativos apresentam determinada confusão linguística, o que acarreta ao direito o problema da incerteza, ao se deparar com a inevitabilidade de uma textura aberta propiciada pela linguagem. Sobre essa questão que assola o judiciário, assim, aduz o filósofo:
“(...) Nada pode eliminar essa dualidade entre um núcleo de certeza e uma penumbra de dúvida quando procuramos acomodar situações particulares ao âmbito de normas gerais. Isso confere a todas as normas uma margem de vagueza ou ‘textura aberta’, o que pode afetar tanto a norma de reconhecimento que especifica os critérios últimos usados para a identificação do direito quanto uma lei específica.” (HART, 2012, p.158)
Assim, Hart reconhece que até mesmo a Regra de Reconhecimento, por ser uma decorrência inevitável da construção normativa através da linguagem, seria afetada pelo problema da existência dessa textura aberta, fato que inevitavelmente conduziria o direito a uma complexa zona de penumbra, na qual o julgador se veria obrigado a exercer seu poder discricionário, ao se deparar com questão não regulamentada normativamente.
4 A textura aberta do direito e a discricionariedade judicial:
A ideia de um limite intrínseco à linguagem, na construção de um sistema jurídico, faz com que, segundo Hart, a interpretação do texto normativo se torne vulnerável às incertezas, o que deixa transparecer um enorme ceticismo com relação ao grau de precisão das normas, frente à regulamentação de situações concretas.
O problema da incerteza normativa, ainda encontra-se atrelado à impossibilidade de se descrever todas as possíveis situações passíveis de regulamentação diante de condutas futuras e incertas, uma vez ser impossível uma total previsão de acontecimentos improváveis pelo legislador. Sob esse prisma, não haveria, no entendimento de Hart, qualquer possibilidade de idealização de um ordenamento jurídico constituído por um número infinito de regras capazes de envolver todas as situações que se mostrassem inéditas em nosso quotidiano. Por esse motivo, ele afirma que o direito teria, na verdade, uma textura aberta, que seria uma decorrência da falta de potencialidade das regras em abranger casos concretos inéditos.
A insuficiência da linguagem jurídica, como consequência de seu caráter simbólico, gera, em decorrência da abstração das regras, uma textura aberta do direito, que se manifesta tanto em relação à lei como em relação ao precedente judicial. Conforme nos ensina Hart:
“(...) Qualquer que seja a estratégia escolhida para a transmissão de padrões de comportamento, seja o precedente ou a legislação, esses padrões, por muito facilmente que funcionem na grande massa de casos comuns, se mostrarão imprecisos em algum ponto, quando sua aplicação for posta em dúvida; terão o que se tem chamado de textura aberta. Até aqui temos apresentado isso, no caso da legislação, como uma característica geral da linguagem humana” (HART. 2012. P. 166)
Assim, para Hart, os sistemas jurídicos seriam compostos de uma textura aberta, que acarretaria a existência de situações concretas não reguladas pelo direito, o que acabaria por abrir possibilidades para que casos sem respostas legais passassem a ser regulamentados pelos aplicadores do direito.
Fato é que determinadas situações que integram o ordenamento jurídico são solucionadas através de regras pré-estabelecidas, que são aplicadas aos casos concretos previsíveis. Entretanto, “nos pontos em que a textura efetivamente é aberta, os indivíduos podem apenas fazer previsões sobre a conduta dos tribunais e ajustar seu comportamento de acordo com isso”[3]. Haverá dessa forma, uma margem de incerteza do direito, já que uma regra poderá cobrir grande parte dos eventos futuros, mas não todos.
Observa-se, então, que a noção de textura aberta do direito introduzida por Hart , envolve questões atinentes a indeterminabilidade do processo de comunicação das regras jurídicas e a necessária complementação no processo de aplicação de tais regras, haja vista a área de conduta deixada em aberto pelo legislador.
Essa ideia de incompletude existente no ordenamento jurídico se mostrará como um problema todas as vezes que casos inéditos não encontrarem solução no direito vigente. Diante da vagueza das regras existentes e a necessidade de se encontrar uma solução para o direito, a saída, segundo Hart, seria que o julgador aplicasse seu poder discricionário, de forma a suprir as lacunas normativas. Vejamos:
“(...) A textura aberta do direito significa que existem, de fato, áreas de comportamento nas quais muita coisa deve ser decidida por autoridades administrativas ou judiciais que busquem obter, em função das circunstâncias, um equilíbrio entre interesses conflitantes, cujo peso varia de caso para caso.” (HART. 2012. p. 175)
Na visão de Hart, a textura aberta do direito acarretaria dentro do ordenamento jurídico inevitável poder discricionário, que deveria ser exercido de forma equilibrada, pautado nos melhores valores a serem aplicados ao caso concreto, tendo como escopo primordial encontrar respostas legais aptas a regulamentar determinadas situações atípicas. De acordo com o filósofo:
“(...) Todo sistema jurídico deixa em aberto um campo vasto e de grande importância para que os tribunais e outras autoridades possam usar sua discricionariedade no sentido de tornar mais precisos os padrões inicialmente vagos, dirimir as incertezas contidas nas leis ou, ainda, ampliar ou restringir a aplicação de normas transmitidas de modo vago pelos precedentes autorizados.” (HART. 2012. P 176)
Sob esse aspecto, a discricionariedade constituir-se-ia como um procedimento de integração normativa, uma vez que a própria norma deixa questões em aberto. Haveria, portanto, o exercício de uma racionalidade subjetiva do juiz que, conforme nos ensina Umberto Paulini, seria um meio para se alcançar as expectativas do jurisdicionado.
“(...) Surge, então, o problema de saber como deve o juiz se portar quando o imediato enquadramento de uma regra a um caso concreto resulta duvidoso. A resposta oferecida por Hart a esta questão não destoa de uma proposição relativamente comum entre os autores do chamado positivismo jurídico. Em verdade, nos casos em que o juiz não tem condições para decidir com base no direito preexistente, conceder-se- ia ao magistrado um poder discricionário, autorizando a criação de um direito que lhe permita a atuação, para que não se vejam frustradas as expectativas do jurisdicionado”. (PAULINI, 2006, p. 170)
Conforme asseverado na passagem textual acima citada, ao se defrontar com a inexistência de solução jurídica para um caso concreto, Hart não prevê alternativa, senão a utilização de um poder discricionário por parte do julgador:
“Nesses casos, a autoridade encarregada de estabelecer as normas deve evidentemente exercer sua discricionariedade, e não há possibilidade de tratar a questão levantada pelos vários casos como se pudesse ser resolvida por uma única solução correta a priori, e não por uma solução que represente um equilíbrio razoável entre diversos interesses conflitantes” (HART. 2012. P 171)
Para Hart, a decisão desses casos inéditos exige uma interpretação cautelosa, na qual juiz deve usar seu discernimento na escolha da solução mais adequada. Diante da imprecisão normativa, caberá ao juiz escolher a forma mais acertada dentre as possíveis, criando o direito para aquele caso concreto.
A criação do direito através da interpretação realizada pelos tribunais é uma evidente demonstração da impotência normativa em se alcançar inéditas situações concretas que brotam no universo jurídico. A permissão para que um intérprete crie um direito novo, ainda que limitado por um direito anterior, dá origem à discricionariedade judicial, que se mostra como uma verdadeira escolha, pautada em crenças e valores, que são elementos externos ao próprio universo jurídico. Nas lições de Carlos Colontonio:
“A doutrina do poder discricionário, portanto, vem como uma doutrina ad hoc para solucionar a questão de decisões de direito baseadas em questões ajurídicas. Ela afirma que, quando não há uma resposta jurídica, o magistrado poderá optar por qualquer das respostas exteriores ao corpo do direito e utilizá-la para motivar a sua decisão, incorporando, nesse movimento, aquela alternativa ao direito, pois dota a norma criada por sua decisão judicial das qualidades necessárias para que ela passe pelo crivo do teste de reconhecimento (se torna válida pela autoridade). Essa solução, invés de modificar o critério de demarcação dual de Hart, modifica a qualidade das normas não jurídicas, para adaptá-las ao sistema de direito”. (COLONTONIO, 2011, p. 49)
Essa função criadora exercida pelos aplicadores do direito manifesta-se de modo mais claro sempre que se está diante de conceitos jurídicos indeterminados, ou seja, quando se verifica a constatação do problema da textura aberta do direito.
A textura aberta do direito, ainda que se apresente como precursora da discricionariedade judicial, não pode se apresentar como motivo determinante para que se possa vislumbrar o ordenamento jurídico como um emaranhado de decisões desprovidas de qualquer juízo de valor e fundamentadas nas escolhas pessoais dos magistrados. As decisões proferidas pelo julgador são o próprio freio ao livre discernimento pessoal do aplicador do direito, que as vê como um padrão a ser seguido nas novas decisões a serem tomadas. Sobre essas previsões, a respeito das decisões judiciais, afirma Hart:
“(...) o fundamento de tal previsão é o conhecimento de que os tribunais consideram as normas jurídicas não como previsões, mas como padrões que devem ser seguidos nas decisões – e como padrões suficientemente precisos, apesar de sua textura aberta, para limitar, embora não para excluir, a discricionariedade do tribunal” (HART, 2012, p. 190)
Hart, dessa forma, não prevê a existência de um poder discricionário desvinculado de qualquer forma interpretativa ligada ao direito. Afinal, a própria legislação existente no ordenamento jurídico, seria um limite importantíssimo a uma ilimitada forma de se criar o direito.
A consequência do problema da textura aberta do direito, segundo Hart, estaria na existência de uma inevitável discricionariedade judicial. Todavia, ao contrário do que muitos críticos afirmam, não é o poder discricionário, um mecanismo que permite dar ampla liberdade de legislar ao julgador. Existe um limite à discricionariedade do juiz que, para o filósofo, estaria na verificação das normas jurídicas como padrões a serem seguidos pelos tribunais.
À contra senso, Dworkin, ao reacender a questão da discricionariedade judicial, taxa a teoria de Hart como irracional, por ser falha e baseada em decisões pessoais do julgador e não nas decisões do direito.
5 O poder discricionário segundo Dworkin:
Importante crítico do positivismo jurídico e das teorias utilitaristas do direito, Ronald Dworkin tem ocupado lugar singular na filosofia do direito contemporânea. Sua teoria denominada Construtivista, definida por ele como a “imposição de um propósito a um objeto ou prática, a fim de torná-los os melhores exemplos possíveis da forma ou do gênero aos quais se imaginam que pertençam”[4], utiliza de uma ordem principiológica hierarquizada e de testes últimos de validade para verificação do direito, ensejando dar cabo ao problema da discricionariedade judicial com a abolição do que ele denomina sistema bifásico do direito - constituído por uma fase convencional e outra discricionária - e ainda, pela participação do magistrado na construção da decisão judicial conforme princípios e políticas aceitos como válidos pela comunidade. Assim, focado em ideais puramente liberais, esse filósofo buscou demonstrar de forma crítica, a existência de uma discordância em relação às teses defendidas por alguns teóricos do direito, taxados comumente como positivistas. Dentro desse grupo, destaca-se a figura de Hart, cuja obra “O conceito de Direito”, tenha sido talvez, o principal alvo das censuras dworkinianas.
Dworkin parte do pressuposto de que a regra secundária de reconhecimento, estabelecida por Hart como critério último de validade de um ordenamento jurídico, seria um verdadeiro teste de pedigree, através do qual somente algumas regras, que se submetessem a um processo específico, seriam aceitas. Assim, para que uma regra pudesse passar a ter o status de jurídica, deveria satisfazer algumas condições impostas pela própria regra de reconhecimento.
Segundo Dworkin, Hart entendia que somente poderiam ser consideradas direito aquelas questões que passassem pelo crivo da regra de reconhecimento, o que, inevitavelmente, teria permitido com que importantes elementos jurídicos, considerados como padrões destinados a embasar decisões judiciais, ficassem fora do conceito de direito.
O teste de pedigree propiciado pela regra de reconhecimento, evidenciada sua mecanicidade, seria o responsável por estabelecer um sistema fechado de regras, que propiciaria a discricionariedade judicial como consequência lógica do exaurimento da regra de reconhecimento, ao se deparar com casos inéditos no ordenamento jurídico.
Essa ideia de um poder discricionário, existente para suprir um problema decorrente da textura aberta do direito, é taxada por Dworkin como irracional, juridicamente falando, dada a arbitrariedade a que se expõe o sistema jurídico. Sob esse aspecto, faz o filósofo a seguinte analogia: “tal como um espaço vazio no centro de uma rosca, o poder discricionário não existe a não ser como um espaço vazio, circundado por uma faixa de restrições”[5].
Ao reascender em sua obra a questão da discricionariedade judicial apontada por Hart, Dworkin chama a atenção para a existência de dois tipos de poder discricionário, sendo um em sentido fraco e outro em sentido forte. Em relação ao primeiro, o filósofo o desmembra em dois subtipos, empregando-se o primeiro subtipo (sentido fraco) “apenas para dizer que, por alguma razão, os padrões que uma autoridade pública deve aplicar não podem ser aplicados mecanicamente, mas exigem o uso da capacidade de julgar”[6]. Quanto ao segundo subtipo (sentido fraco), este seria usado “apenas para dizer que algum funcionário público tem a autoridade para tomar uma decisão em última instância e que esta não pode ser revista e cancelada por nenhum outro funcionário”[7]. Entretanto, no que tange ao segundo tipo (sentido forte), seria este empregado para dizer que, em certos assuntos, por não haver uma ordem dirigindo a decisão a ser tomada, não haveria limitações advindas de qualquer padrão proveniente de uma autoridade, o que daria à autoridade grande margem de escolha.
Na visão de Dworkin, ao apontar a existência de um poder discricionário no ordenamento jurídico, Hart o teria utilizado em seu sentido forte, uma vez que a emissão de juízos de valores para resolver o caso concreto, se mostraria como uma verdadeira prerrogativa dos juízes. Sob esse aspecto, os padrões de escolha de um magistrado, jamais estariam limitados por um direito preexiste.
Sobre o propósito de Dworkin, em apontar na teoria de Hart, a constatação de um poder discricionário forte, esclarece Carlos Colontonio:
“É esta a questão que Dworkin acredita que seja o ‘calcanhar de Aquiles’ da doutrina do poder discricionário. Acreditar que os casos jurídicos controversos são resolvidos com um poder discricionário em sentido forte, ilimitado em face dos parâmetros de direito, é afirmar que uma decisão tomada por uma autoridade, em uma situação de dúvida, é uma decisão que pode ser criticada pelos opositores, mas que nunca pode ser considerada errada, juridicamente falando”. (COLONTONIO, 2011, p. 67)
Assim, Dworkin, ao afirmar que a ideia de uma discricionariedade judicial tenha se infiltrado na comunidade jurídica[8], se propõe a condenar a existência de um poder discricionário em sentido forte, dentro do ordenamento jurídico.
Para Dworkin, os padrões que fundamentam uma decisão não poderiam partir de um campo extrajurídico, devendo encontrar justificativas dentro do próprio campo do direito. Há, portanto, uma ideia de obrigação, determinada por regras e princípios jurídicos, que devem ser levadas em consideração pelos magistrados no ato decisório.
A ideia de inclusão de princípios no ordenamento jurídico se mostra como a solução encontrada por Dworkin para dar fim ao problema da discricionariedade judicial. Para o filósofo, a existência de um poder discricionário inerente às autoridades públicas, seria uma decorrência do caráter falho da regra de reconhecimento, que ao utilizar-se de um teste de pedigree, não conseguiria identificar princípios.
6 A solução de Dworkin ao problema:
Ao taxar o positivismo como um conjunto fechado de regras jurídicas, Dworkin afirma faltar a esse sistema “padrões que não funcionam como regras, mas operam diferentemente, como princípios, políticas e outros tipos de padrões”[9].
A ideia existente na teoria de Hart, de fornecer um único teste fundamental para o direito, verificado através da regra de reconhecimento, faria com que importantes padrões - diferentes de regras - fossem ignorados.
Em relação a esses padrões apontados por Dworkin, destaca-se o papel desempenhado pelos princípios e políticas, cuja diferenciação é demonstrada pelo filósofo da seguinte maneira:
“(...) Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade (ainda que certos objetivos sejam negativos pelo fato de estipularem que algum estado atual deve ser protegido contra mudanças adversas). Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou assegurar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou equidade ou alguma outra dimensão da moralidade.” (DWORKIN, 2002, p.36)
Sob esse prisma, princípios seriam padrões pertencentes ao direito, com o escopo de embasar as decisões do magistrado, enquanto políticas seriam padrões não pertencentes ao direito, cujo conteúdo decorresse de um determinado contexto legislativo, e por isso, avocados nas decisões judiciais.
Para a análise do presente artigo, trataremos do termo “princípios” genericamente, uma vez que Dworkin utiliza-se do mesmo “para indicar o conjunto de padrões que não são regras”[10].
Ao efetuar a distinção entre regras e princípios, Dworkin assevera:
“A diferença entre princípios jurídicos e regras jurídicas é de natureza lógica. Os dois conjuntos de padrões apontam para decisões particulares acerca da obrigação jurídica em circunstâncias específicas, mas distinguem-se quanto à natureza da orientação que oferecem. As regras são aplicáveis à maneira do tudo-ou-nada. Dados os fatos que uma regra estipula, então ou a regra é valida, e neste caso a resposta que ela fornece deve ser aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.” (DWORKIN, 2002, p. 39)
Dispõe ainda, ao tratar sobre os princípios:
“(...) Os princípios possuem uma dimensão que as regras não têm – a dimensão do peso ou importância. Quando os princípios se intercruzam, aquele que vai resolver o conflito tem que levar em conta a força relativa de cada um. Esta não pode ser, por certo, uma mensuração exata e o julgamento que determina que um princípio ou uma política particular é mais importante que outra frequentemente será objeto de controvérsia.” (DWORKIN, 2002, p. 42)
Vê-se, pois, que as regras são aplicadas pelos critérios do tudo ou nada e, havendo conflito entre elas, uma delas não pode ser válida. Por outro lado os princípios, ao entrarem em conflito, “interagem uns com os outros, de modo que cada princípio relevante para um princípio jurídico particular fornece uma razão em favor de uma determinada solução, mas não a estipula.”[11]
A dificuldade em identificar esses mencionados princípios como pertencentes ao ordenamento jurídico seria, portanto, o grande problema da teoria de Hart. Para Dworkin, o funcionamento do sistema estaria condicionado pelo papel dos princípios na justificação das decisões judiciais, se mostrando como forma de assegurar a justiça de decisões futuras.
Dworkin afirma que a dificuldade para se encontrar a resposta correta ao caso concreto, não seria justificativa idônea para que se permitisse a abertura do direito à arbitrariedade judicial. O dever do aplicador do direito é de encontrar a melhor decisão, frente a aquelas que lhe são apresentadas por um ordenamento jurídico dotado não apenas de regras jurídicas, mas também de princípios, identificados como um elemento implícito ao próprio direito.
Esse sistema apresentado por Dworkin, ao apontar a indispensabilidade dos princípios na resolução de casos difíceis, visa à obtenção de uma melhor resposta ao caso concreto. Conforme dispõe Carlos Colontonio:
“Esse modelo, da melhor resposta, é oferecido porque o autor do ‘Levando os Direitos a sério’ acredita que o modelo positivista, da discricionariedade diante da incerteza, não retrata a realidade constante da prática forense. Os juízes frequentemente se veem diante de questões controversas, em que não há uma regra certa que permita separar as alegações baseadas em direitos verdadeiros e as alegações com fundamentos espúrios, e, quase sempre, julgam a favor de uma posição em detrimento de outra posição segundo motivos de direito e não de escolha. Em outras palavras, os magistrados, mesmo diante da incerteza, não alegam que estão impedidos de encontrar a resposta verdadeira e, assim, escolhem discricionariamente um caminho. A alegação comum que se encontra nas sentenças dos casos difíceis é a de que, após muito avaliar todas as peculiaridades do caso e das normas, o juiz chegou a uma conclusão sobre qual é a verdadeira resposta do caso.” (COLONTONIO, 2011, p. 63)
Todavia, esse modelo da melhor resposta, não está condicionado unicamente à existência de princípios, visto que complexidade do sistema jurídico, segundo o filósofo, exigiria mais. No entendimento do mesmo autor:
“A tarefa de Dworkin, portanto, será mais complicada do que criar um critério de princípios que se assomará às regras de reconhecimento das regras. Deverá montar um modelo de direito que: (i) identifique como um juiz comprometido com suas funções descobre quais são as regras e princípios existentes em sua jurisdição; (ii) desvende como esse juiz decidirá caso os direitos e obrigações em jogo sejam controversas; e, (iii) determine como será tratada a decisão do magistrado no caso particular, já que Dworkin defende que há uma resposta correta dada pelo direito, mesmo em face da situação de que dois juízes, ambos bem preparados, podem chegar a decisões diversas sobre a mesma lide. O modelo criado com esses propósitos será chamado, no livro ‘Levando os direitos a sério’, de ‘Tese dos Direitos’ (The Rights Thesis).” (COLONTONIO, 2011, p.92)
Verifica-se, portanto, que nos moldes desse sistema descritivo-justificativo proposto por Dworkin, os juízes somente poderiam fundamentar suas decisões segundo padrões próprios do direito. Para tanto, as decisões deveriam ser fundamentadas com base na racionalidade e não na discricionariedade, de modo a se alcançar a equidade, característica essencial do direito.
A inexistência da discricionariedade judicial se mostra como algo totalmente possível na visão de Dworkin, por não existir no ordenamento jurídico falhas que possibilitem o exercício de um poder discricionário pelo juiz. Seria, portanto, o próprio ordenamento jurídico o responsável por dar cabo aos conflitos, tendo em vista a existência dentro do mesmo de regras e princípios. Assim, a resposta correta diante de um caso difícil surgiria dentro de um contexto interpretativo no qual princípios seriam avocados de forma a adequar a decisão conforme o melhor interesse das partes.
Na hipótese de se verificar uma colisão de princípios, na escolha da melhor justificativa ao caso concreto, o problema será resolvido na dimensão do peso. Destarte, havendo um choque entre princípios relevantes à tomada de decisão, o juiz estará obrigado a decidir não por discricionariedade própria e sim sopesando princípios da comunidade onde o caso difícil esteja em debate, optando-se por aquele de maior peso.
Para demonstrar a dinâmica da decisão judicial a partir dos meandros de sua teoria, Dworkin ilustra um modelo de juiz, denominado por ele de Hércules, que por sua onisciência, seria capaz de dar cabo aos casos difíceis e encontrar respostas corretas para todos os problemas. Assim, havendo conflito entre princípios, a ser resolvido na dimensão do peso, o juiz Hércules realizaria uma apreciação moral da questão conforme o direito, de forma que seja tomada a melhor decisão possível para aplicação da lei ao caso concreto.
Em determinados momentos, porém, esse juiz Hércules, poderia se deparar com justificativas distintas para a resolução dos casos concretos. Nessas situações, Dworkin recomenda que se acolha a resposta que melhor reflita o direito histórico. Sobre esse aspecto da teoria, assim esclarece Cíntia Lages:
“Ao decidir um caso difícil Hércules sabe que os outros juízes decidiram casos que, apesar de não guardarem as mesmas características, tratam de situações afins. Deve, então, considerar as decisões históricas como parte de uma longa história que ele deve interpretar e continuar, de acordo com suas opiniões sobre o melhor andamento a ser dado à história em questão. Hércules adota o direito como integridade, uma vez que está convencido de que ele oferece tanto uma melhor adequação quanto uma melhor justificativa da prática jurídica como um todo.” (LAGES, 2001, p. 47).
Sob esse aspecto, o juiz Hércules, visando alcançar a integridade jurídica por meio da interpretação, resolveria os casos difíceis por meio da ponderação, levando-se em consideração a moral e a história, respeitando sempre os limites do poder legislativo. Nesse sistema jurídico em que ele atua, não existem lacunas, visto haver um emaranhado de princípios capazes de proporcionar uma justificação equânime para todos os casos apreciados, não havendo, portanto, qualquer espaço destinado ao exercício da discricionariedade judicial.
7 Conclusão:
O embate teórico travado entre Hart e Dworkin, se apresenta, sem sombra de dúvidas, como um marco hermenêutico da filosofia do direito do século XX. Nesse campo discursivo, ganha importância à análise do ordenamento jurídico sob o viés dos magistrados, dando contornos ao importante debate sobre a discricionariedade judicial, ao trazer o problema da textura aberta do direito.
Ao propor a existência de um ordenamento jurídico arquitetado pela união de regras primárias e secundárias, capazes de sobreviverem no espaço e no tempo, mesmo diante de alterações de governo, Hart evidencia uma nova visão do direito, inerente às sociedades complexas.
O papel importante desenvolvido pelas regras secundárias, de atribuição de poderes às regras primárias, ganha importância máxima com a aceitação de um sistema jurídico dirigido por uma regra secundária de reconhecimento, capaz de realizar um teste de validade no direito, ao funcionar como um filtro jurídico-normativo. Todavia, Hart deixa claro que essa regra de reconhecimento não consegue exercer um controle sobre todas as situações concretas apresentadas, uma vez que o direito possui uma textura aberta decorrente do problema da linguagem. Assim, nesse espaço desprovido de regulamentação, no qual existe uma verdadeira zona de penumbra normativa, o aplicador do direito se vê obrigado a fazer uso de um poder discricionário para que a situação inédita não fique sem regulamentação.
Conforme verificamos, Dworkin recusa-se a aceitar as proposituras de Hart e, com base numa teoria construtivista, propõe um novo modo de se vislumbrar o ordenamento jurídico. Para o filósofo estadunidense, a regra de reconhecimento, por ser um verdadeiro teste de pedigree, não seria capaz de reconhecer princípios, mas tão somente regras, já que o ordenamento jurídico na visão de um positivista seria constituído apenas por um emaranhado de regras jurídicas, aplicadas segundo o critério da subsunção.
As críticas em relação ao poder discricionário, opondo-se às afirmações de Hart de que a discricionariedade judicial se mostraria como fator inerente à textura aberta do direito, levaram Dworkin a buscar meios de se demonstrar que os princípios seriam a solução adequada à resolução desse problema. Todavia, ao apontar a existência de princípios como forma de combate ao poder discricionário dos magistrados, Dworkin não deixou evidenciado quais seriam os mecanismos utilizados na escolha desses princípios em caso de conflito. Se a ideia era sopesá-los, o filósofo não deixou claro quais seriam os critérios atotados na resolução dos casos difíceis, o que acabou por redundar em uma forma de discricionariedade no momento da escolha. Logo, Dworkin estaria assumindo uma forma de discricionariedade judicial, ao deixar em aberto possibilidades para que os magistrados julgassem qual seria o princípio mais adequado ao caso concreto.
A discricionariedade que surge para o juiz, segundo Hart, ocorre tão somente diante de situações não regulamentadas pela norma de reconhecimento, estando vedado ao juiz agir de forma arbitrária, devendo respeitar os limites impostos por padrões sociais aceitos como válidos. Por esse motivo, fica claro não haver na teoria desse positivista qualquer tendência à valorização de uma discricionariedade em sentido forte, pois, do contrário, não haveria que se falar em segurança jurídica. O fato de o magistrado legislar ex post facto não atribui a ele poderes desmedidos na criação do direito.
Para Dworkin, o maior erro de Hart foi possibilitar que decisões pudessem ser fundamentadas por elementos extrínsecos ao direito. Segundo o viés dworkiniano, uma decisão deve sempre estar conforme o direito, sob pena de se verificar o exercício de um poder discricionário. Assim, diante de casos difíceis, os juízes deveriam procurar respostas nos princípios contidos dentro do próprio ordenamento jurídico, buscando-se a melhor justificativa moral de acordo com o direito preexistente.
O papel dos juízes na resolução dos casos difíceis deveria ser exercido, conforme aduz Dworkin, nos moldes de Hércules, magistrado idealizado pelo filósofo, dotado de capacidades excepcionais pra reconstruir o direito vigente no caso concreto, buscando a melhor resposta possível amparada pelos princípios. Esse juiz deveria julgar nos moldes de um escritor, que ao escrever um romance em cadeia, elaboraria cada novo capítulo em consonância com os capítulos anteriores.
A abordagem do ordenamento jurídico realizada por Dworkin, ao metaforizar a solução dos casos difíceis na figura do Juiz Hércules, demonstra a visão idealizadora que o filósofo tem do direito. De outro lado, manifesta-se em Hart uma visão do direito puramente descritiva, apta a descrevê-lo sem que haja qualquer valoração.
A teoria construtivista de Dworkin propôs uma nova forma de se pensar o direito, condicionadora do papel desempenhado pelos magistrados dentro do ordenamento jurídico. Entretanto, a realidade desse sistema jurídico mostra-se expressivamente falha, pelo menos ao tentar solucionar o problema do poder discricionário, pois ainda que se tenha apresentado um modelo principiológico de resolução dos casos difíceis, apontando a necessidade de que princípios sejam sopesados, tal não se mostra capaz dar cabo à discricionariedade judicial, uma vez que na escolha entre princípios, seria inevitável que não houvesse por parte dos aplicadores do direito, emissão de juízos de valores. Essa capacidade de se proferir um julgamento completamente imparcial seria um atributo apenas do Juiz Hércules, que conforme mesmo assegura Dworkin, é uma idealização da figura perfeita de um magistrado.
REFERÊNCIAS
COLONTONIO, Carlos Ogawa. A questão da racionalidade jurídica em Hart e Dworkin. 2011. 135p. Dissertação (Mestrado em Filosofia) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
DWORKIN, Ronald. O Império do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
HART, H. L. A. O conceito de Direito. Pós-escrito editado por Penélope A. Bulloch e Joseph Raz. Trad. de A. Ribeiro Mendes. 2.ed. São Paulo: Martins Fontes, 2012.
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LAGES, Cíntia Garabini. A proposta de Ronald Dworkin em “O Império do Direito”. Revista da Faculdade Mineira de Direito. Belo Horizonte: PUC Minas. v. 4. n. 7 e 8, jan./jun. 2001.
PAULINI, Umberto. Breves notas sobre a polêmica que medeia as construções teóricas de H.L.A. Hart e Ronald Dworkin. Revista Eletrônica do CEJUR, v. 1, n. 1, ago./dez. 2006. Disponível em: <ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/cejur/article/view/14840/9961>. Acesso em: 24 de setembro 2012.
[1]A teoria construtivista defende a construção do direito através da interpretação, permitindo que o julgador se torne parte da história institucional, de modo a dar ao caso concreto, a melhor justificativa conforme princípios morais e políticas vigentes na comunidade.
[2] HART, Herbert. O conceito de direito (2012:105)
[3] HART, Herbert. O Conceito de Direito (2012: 179)
[4] DWORKIN, Ronald. O império do direito (2003: 63-64)
[5] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:50-51)
[6] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:51)
[7] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:51)
[8] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:49)
[9] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:36)
[10] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:36)
[11] DWORKIN, Ronald. O Conceito de Direito (2002:114)