A devolução de Suzy

Por Rachelly Clécya Brandão de Castro | 07/12/2016 | Direito

 

RachellyClécya Brandão de Castro

O Estatuto da Criança e do Adolescente, baseado na Doutrina da Proteção Integral, inaugurou um novo vínculo jurídico entre crianças e adolescentes e Estado, família e sociedade, uma vez que abarca uma totalidade de direitos desses sujeitos de direito. Ao contrário da Doutrina da Situação irregular, aqui crianças e adolescentes são vistas como pessoas em condição especial de desenvolvimento, mas ainda que estejam em formação a eles são conferidos todos os direitos fundamentais que fazem jus os adultos. Dentro do estudo de direito da criança e do adolescente, a adoção é uma das medidas judiciais mais importantes a ser estudada, porque permite conhecer como se dar a colocação da criança e a sua adaptação no novo meio social. Tendo como base o caso exposto várias questões são suscitadas. 

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

2.1 Quais as medidas (processuais, extraprocessuais e/ou administrativas) que o Ministério Público sobre a devolução de Suzy, e sob quais fundamentos?

2.2 Foi respeitado o devido processo legal previsto no ECA e a Lei de Adoção, para a apreciação do pedido liminar, audiência de instrução e conclusão dos autos para sentença? 

Didier (p.40, 201) exemplifica quer o princípio do devido processo legal dizer que “o processo há de estar em conformidade com o Direito como um todo, e não apenas em consonância com a lei. ‘Legal’, então, é adjetivo que remete a ‘Direito’, e não a Lei.” Por esse viés estará satisfeito tal princípio quando o sujeito de direito alcança, a luz do ordenamento jurídico pátrio um processo devido, justo e equitativo. Transposto tal princípio para o regime jurídico de proteção integral aos direitos da criança e do adolescente há que se pontuar que no caso ora em análise não houve observância ao devido processo legal, isso pelos motivos que seguem:

O art. 33 § 1º da lei 8.069/90 in verbis: “a guarda obriga a prestação de assistência material, moral e educacional à criança ou adolescente, conferindo a seu detentor o direito de opor-se a terceiros, inclusive aos pais.”. Prosseguindo no § 1º “a guarda destina-se a regularizar a posse de fato, podendo ser deferida, liminar ou incidentalmente, nos procedimentos de tutela e adoção, exceto no de adoção por estrangeiros.”. Apesar de o artigo que autoriza a concessão de liminar não trazer os requisitos necessário para que se conceda tal medida eles não são dispensáveis sendo que, em verdade, a luz da doutrina da proteção integral da criança, devem ser observados com maior rigor. Nesse sentido o TJ-PR (AI: 3921513 PR 0392151-3) já decidiu pela negativa da medida liminar em que não se encontravam presentes o fumus boni iures e o periculum in mora: 

  1. A concessão de liminar tem como pressuposto a aparência do bom direito e fundado receio de que uma das partes, antes do julgamento da lide, cause, ao direito da outra, lesão grave ou de difícil reparação. 2. Em pedido liminar, somente se examina a presença dos pressupostos autorizadores da concessão da liminar, sendo que questões outras, que exigem um aprofundamento maior no mérito, devem ser solucionadas por ocasião do exame de mérito da ação principal, após a devida instrução probatória [...] 5. Recurso conhecido e não-provido. (TJ-PR - AI: 3921513 PR 0392151-3, Relator: Fernando Wolff Bodziak, Data de Julgamento: 05/09/2007, 11ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 7469, grifo nosso). 

Ainda de acordo com a Lei 8.069/90, art. 168: “Apresentado o relatório social ou o laudo pericial, e ouvida, sempre que possível, a criança ou o adolescente, dar-se-á vista dos autos ao Ministério Público, pelo prazo de cinco dias, decidindo a autoridade judiciária em igual prazo.” Desta feita, resta-se visível mais uma violação ao devido processo legal vez que quando do parecer da equipe multidisciplinar não foi, ao Ministério Público, oportunizado a possibilidade de manifestação o que deveria ter ocorrido, principalmente em se sabendo que, embora o parecer tenha sido favorável o mesmo comportou ressalvas as quais o Ministério Público deveria ter acesso vez que a ele cabe a proteção da criança nessa situação. 

2.3 O estudo social realizado da forma descrita obedeceu às previsões e preocupações da Doutrina da Proteção Integral? 

Como já visto anteriormente, o processo de adoção se destina a realocar a criança em uma família substituta. Uma das fases desse processo é o estágio de convivência no qual a criança e adolescente passam a ter um convívio mais intenso com os adotantes e demais integrantes do núcleo familiar.Preceitua o art. 46, §4º ECA que o estágio de convivência deve ser acompanhado por uma equipe interprofissional a serviço da Justiça da Infância e Juventude, assim esse dispositivo não apenas determina a necessidade do estágio de convivência como também estabelece que essa fase deve ser precedida de um estudo social minucioso afim de avaliar a adaptação e o contexto social em que vivem os adotantes e o adotando. Nesses termos, o estágio de convivência é obrigatório e também necessário para que os adotantes possam analisar as reais possibilidades daquela família se formar, porém sempre com supervisão e auxílio dos grupos de apoio à adoção e da equipe multiprofissional da Vara da Infância e Juventude (SILVA; MESQUITA; CARVALHO, 2010).

Esta aferição se faz muito importante, pois somente o contato nas dependênciasdo juízo não garante as condições necessárias para ser um bom pai ou boa mãe, assim é indispensável à realização de acompanhamento do dia-a-dia da nova família, para que possa ser verificado o comportamento dos membros, a forma como enfrentam os problemas diários decorrentes da convivência. (MACIEL, 2010, p.242).

Diante de tais colocações, depreende-se que o estudo social não foi realizado de forma satisfatória, pois a visita da equipe técnica somente após corridos 4 meses do deferimento da liminar e por três raras vezes não possibilitou aos adotantes que incorporassem a consciência de verdadeiros pais da criança com direitos e deveres inerentes.É evidente que a criança teria uma fase de adaptação um tanto difícil, pois já havia sofrido o trauma do primeiro abandono e talvez ainda carregasse consigo medos e inseguranças decorrentes disso, sendo assim justificado o seu isolamento social. Além disso, toda criança seja ele biológica ou adotada, tem suas fases difíceis decorrente da idade e dentro do limite, é normal que apresente teimosia e desobediência.

No entanto, se a equipe multidisciplinar houvesse realizado um acompanhamento de forma adequada poderia ter detectado os vários problemas que cercavam aquela nova famíliae poderia tê-la trabalhado, planejando ações de inserção em programas de acompanhamento e orientação voltados à família para superar a crise e tornar a devolução a última medida a ser tomada. Verifica-se, portanto, que o estudo social realizado no presente caso violou a Doutrina da Proteção Integral onde a família, o Estado e a sociedade devem agir em favor da criança e adolescente de forma a lhes garantir o efetivo exercício de todos os direitos fundamentais, tão necessários a sua formação, independentemente da cor, do sexo, da situação financeira ou da situação física ou mental (MACIEL, 2010, p.267). Logo, o Poder Judiciário não se mostrou de forma compromissada a atender aos anseios de Suzy por uma nova família e obter êxito na adoção. 

2.4 Deve ser permitida a desistência da ação de adoção pelas alegações apresentadas e depois do transcurso de mais um ano de guarda provisória?

2.5 A devolução da criança em processo pode dar ensejo à reparação civil? Em que circunstâncias? A situação narrada ensejaria Responsabilidade Civil do casal adotante? 

O instituto da reparação civil encontra resguardo no artigo 927 do Código Civil, garantindo que todos aqueles que causarem danos devido à prática de atos ilícitos a outremficarão obrigados a repará-los.  

No caso em questão pode-se considerar que o ato ilícito decorreu do fato de que “os requeridos buscaram voluntariamente o processo de adoção do menor, deixando expressamente a vontade de adotá-lo, [...] resolveram devolver imotivadamente a criança, de forma imprudente, rompendo de forma brusca o vínculo familiar que expuseram o menor, o que implica no abandono de um ser humano” (TJ-MG, Relator: Hilda Teixeira da Costa, data de Julgamento: 12/08/2014, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL). Ou seja, a conduta dos pais não consiste em uma simples devolução, mas sim em um abandono de uma criança e é exatamente nisso que se configura o ato ilícito requisito para a reparação civil.

Os Tribunais vêm considerando que nos processos de adoção em que a criança é devolvida, os adotantes deverão sim ser submetidos a reparação civil. Vejamos:

AGRAVO DE INSTRUMENTO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE. ESTÁGIO DE CONVIVÊNCIA PARA ADOÇÃO TARDIA ESTABELECIDO. CRIANÇA DEVOLVIDA. DANOS PSICOLÓGICOS IRREFUTÁVEIS. PENSÃO MENSAL CAUTELARMENTE FIXADA. NECESSÁRIA A REALIZAÇÃO DE TRATAMENTOS PSÍQUICOS. [...]A devolução injustificada de criança com 9 anos de idade durante a vigência do estágio de convivência acarreta danos psíquicos que merecem ser reparados as custas do causados, por meio da fixação de pensão mensal.Recurso desprovido, grifo nosso. (Agravo de Instrumento nº 2010.067127-1, de Concórdia, Câmara Especial Regional de Chapecó, Relator: Guilherme Nunes Born. Data de Julgamento: 25.11.2011).

Sendo assim, como no caso ora discutido houve a configuração de abandono após a configuração de vínculo afetivo, bem como devolução sem fundamento relevante, nexo causal e o dano causado pela frustração de um projeto de vida há sim motivos suficientes para a Responsabilização Civil dos adotantes.

REFERENCIAS

BRASIL. Código Civil. 2002. Disponível em: www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm. Acesso em 03 de out de 2015.

DIDIER, Fredie Jr. CUNHA, Leonardo Carneiro da.Curso de direito processual civil. v. 5. 5ª ed. Bahia, JusPodivm. 2014.

TJ-PR - AI: 3921513 PR 0392151-3, Relator: Fernando Wolff Bodziak, Data de Julgamento: 05/09/2007, 11ª Câmara Cível, Data de Publicação: DJ: 7469. Disponível em < http://tj-pr.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/6238579/agravo-de-instrumento-ai-3921513-pr-0392151-3> Acesso em 04 de out de 2015.

TJ-MG - Apelação Cível 10481120001896002. Relator: Hilda Teixeira da Costa, Data de Julgamento: 12/08/2014, Câmaras Cíveis / 2ª CÂMARA CÍVEL. Disponível em: http://tj-mg.jusbrasil.com.br/jurisprudencia/135608610/apelacao-civel-ac-10481120002896002-mg/inteiro-teor-135608819 . Acesso em 04 de out de 2015.

MACIEL, Katia Regina Ferreira Lobo Andrade. Curso de direito da criança e do adolescente: aspectos teóricos e práticos. Rio de Janeiro: LumenJuris, 2010.

SILVA, L.A.;MESQUITA, D.P.;CARVALHO, B.G.E. Investigando o processo de adoção no Brasil e o perfil dos adotantes. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v.44, n., p.191-204, abr. 2010.