A DEVOLUÇÃO DE SUZY: desistência da adoção e os direitos da criança e do adolescente

Por Karla Giuliane Gomes Garcia | 28/11/2016 | Direito

Karla Giuliane Gomes Gracia

1 DESCRIÇÃO DO CASO

Após 7 anos tentando gerar um filho, o casal Barbie e Ken decide adotar uma menina de 6 anos chamada Suzy, abrigada a 4 anos na instituição Casa da Criança Feliz. O casal ingressa com a ação de adoção requerendo a guarda provisória da criança e realização com brevidade do estágio de convivência, tendo em vista que ambos trabalham na rede municipal de ensino como professores, nos turnos matutino e vespertino. A guarda provisória foi deferida liminarmente ao casal, mas a equipe multidisciplinar da Vara da Infância e Juventude só compareceu a residência para realizar estudo 4 meses após o deferimento da liminar. Contudo, a equipe só conseguiu encontrar a criança e os adotantes na terceira tentativa, apenas quando a visita foi no período noturno, visto que a criança frequentava a escola em tempo integral. 

Concluso o estudo, a equipe manifestou-se favoravelmente a adoção por Barbie e Ken, apesar de a criança ainda não se sentir totalmente à vontade com os adotantes, possuindo episódios de terrores noturnos, atribuídos ao período de isolamento passado no abrigo - segundo depoimento de Barbie e Ken. Assim, o juiz determinou que os autos retornassem conclusos para julgamento. No entanto, Barbie e Ken desistem da ação de adoção e devolvem Suzy a instituição de abrigo (um ano e quatro meses depois do ajuizamento da ação, mas antes da prolação da sentença), alegando incompatibilidade irreconciliável com a criança, que demonstrava teimosia, rebeldia e desobediência, acarretando na ausência do desenvolvimento e laços afetivos entre eles - inviabilizando a continuidade do processo adotivo. Com isso, o juiz encaminha os autos ao Ministério Público.

Em vista da desistência do casal Barbie e Ken pela adoção de Suzy e sua consequente volta a instituição de abrigo, questiona-se quais as medidas (processuais, extraprocessuais e/ou administrativas) devem ser tomadas pelo Ministério Público. Além disso, outros questionamentos são pertinentes, como se é permitida a desistência da ação de adoção pelas alegações apresentadas, se é cabível a reparação civil, se o devido processo legal foi respeitado e se o estudo realizado pela equipe multidisciplinar atendeu aos requisitos necessários.

2 IDENTIFICAÇÃO E ANÁLISE DO CASO

2.1 Descrição das Decisões Possíveis e Argumentos Capazes de Fundamentá-las

Para a concessão da guarda provisória, o artigo 168 do Estatuto da Criança e do Adolescente indica que após o relatório social realizado pela equipe multidisciplinar é necessário dar vista dos autos ao Ministério Público para que ele possa se pronunciar, bem como o juiz também, no prazo de cinco dias. Assim, antes do juiz decidir, é necessário ouvir o MP. Além disso, o mesmo artigo 168, abre a possibilidade de ouvir a própria criança ou adolescente, o que é reforçado pelo artigo 28 §1º do mesmo diploma, sendo que a consulta será realizada sempre que possível e de forma prévia pela equipe interprofissional “respeitado seu estágio de desenvolvimento e grau de compreensão sobre as implicações da medida, e terá sua opinião devidamente considerada” (CURY; MARCURA, 2002).

Para que a pessoa seja considerada apta a adotar, é realizado um estudo prévio que avalia entre outras coisas, as suas condições psicológicas e se o seu estilo de vida favorece uma boa relação ou criação da criança ou adolescente. Barbie e Ken, levam um estilo de vida atarefado, passando o dia fora de casa - tendo tempo livre apenas no período noturno. Seria este um estilo de vida compatível com uma criança que precisa de atenção constante, ainda mais pelo fato de ser um processo de adoção, que necessita de uma adaptação entre adotado e adotantes? Outro ponto a ser levantado, diz respeito a demora para que a equipe multidisciplinar realizasse a visita a casa de Barbie e Ken - somente 4 meses após o deferimento da liminar para a guarda provisória. Seria este um tempo razoável? Estes dois questionamentos podem ser respondidos com base na Doutrina da Proteção Integral, disposta no artigo 227 da Constituição Federal Brasileira. 

Segundo tal doutrina, a família, a sociedade e o Estado têm o dever de assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem com absoluta prioridade, entre outras coisas, o direito à dignidade, ao respeito e à convivência familiar e comunitária, além de protegê-los contra qualquer tipo de negligência. Desta forma, observa-se que a CR/AD tem o direito a convivência familiar e comunitária, o que não foi atentado pelo estudo social realizado pela equipe multidisciplinar, tendo em vista a ausência de Barbie e Ken no dia-a-dia de Suzy, e sua consequente privação da convivência comunitária, colocando-a em escola de tempo integral. Não se pode negar a preocupação do casal de adotantes em promover uma boa educação para a adotada, mas o afeto dentro da relação familiar não pode ser colocado à parte ou desconsiderado. 

Quanto à demora na visita da equipe multidisciplinar, a doutrina do art. 227 da CF estabelece que todos aqueles direitos ali expostos devem ser assegurados com absoluta prioridade. Assim, a demora vai de encontro à Proteção Integral da CR/AD, pois a demora pode levar a consequências negativas e desgates traumáticos à vida do adotado. Além disso, pode-se afirmar que a equipe foi negligente tanto na demora, como no estudo realizado, que não avaliou cuidadosamente o perfil do casal ao perfil da criança, avaliando cuidadosamente suas necessidades. Art. 46 §4º do ECA estabelece que o estágio de convivência deve ser acompanhado pela equipe interprofissional, o que não ocorreu no caso em questão. “As exceções do estágio de convivência são: crianças de menores de um ano de idade e quando a criança já convivia com os adotantes”. (MATTOS; HERNANDES; ELOY, 2011, p. 10)

O artigo 39 §1º do ECA estabelece que a adoção “é medida excepcional e irrevogável”; o artigo 47 dispões que “o vínculo da adoção constitui-se por sentença judicial” e conforme o §7º deste dispositivo “a adoção produz seus efeitos a partir do trânsito em julgado da sentença constitutiva”. Tendo como parâmetro estes artigos, chega-se a conclusão que após a sentença favorável a adoção, não é possível desistir dela - sendo o processo irreversível. Assim, o que se entende é que antes da sentença é possível desistir, mas após a sentença o processo passa a ser irreversível. (CURY; MARCURA, 2002)

No entanto, não se pode negar que após a pessoa conseguir a guarda provisória da CR/AD no estágio de convivência criam-se laços que desfeitos causariam prejuízos psicológicos e emocionais, ainda mais como no caso de Suzy que já estava na família de Barbie e Ken por mais de um ano. Alegou-se para a desistência incompatibilidade irreconciliável com a criança, que se mostrava teimosa, desobediente e rebelde, ocasionando na ausência do desenvolvimento de laços afetivos entre eles. Assim, seria melhor para a criança conviver com pessoas que não querem a sua companhia ou evitar uma ruptura de convivência que poderia ser traumática? Desta forma, deve-se avaliar que se Suzy ficar com o casal Barbie e Ken, ela poderá não receber a atenção devida e nem ser tratada como filha do casal ou caso ela fique de volta no abrigo, a experiência traga abalos emocionais e psicológicos. É preciso ponderar qual seria a melhor atitude a ser tomada visando o melhor interesse da criança. 

Quanto a reparação civil, há embates na doutrina e jurisprudência. Um lado posiciona-se no sentido de que pelo fato de a desistência ter ocorrido em momento anterior a sentença, inexiste obrigação legal dos adotantes, o que não ensejaria em responsabilidade ou até mesmo reparação civil. Desta forma, a ação de devolver a CR/AD seria “autêntico direito potestativo do requerente”, já que a lei não proíbe a desistência da adoção antes da sentença (REZENDE, 2014, p. [?]). Contudo, posicionamento contrário defende que no momento da guarda, em que a criança já está na convivência dos adotantes, tendo-os como pais e com grande expectativa em relação a adoção - ainda mais quando a CR/AD já tem mínimo discernimento para entender a situação - a reparação civil seria possível, cabendo danos morais.

Ora, é absolutamente legítimo acionar o Poder Judiciário para exercer a pretensão de se inscrever para a adoção, buscando, em sua plenitude, a formação da conhecida família eudemonista. Preciso, no entanto, que o exercício deste direito não lesione terceiro, e, ainda, seja exercido de acordo com os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa-fé e pelos bons costumes. Uma vez iniciado o estágio de convivência, já se acende na criança/ adolescente uma expectativa - diga-se de passagem legítima - de que o ato será ultimado. Expectativa esta posteriormente frustrada, com a desistência da medida, que gera o odioso abandono afetivo. […] Ainda que não se admita a ocorrência de "abandono afetivo" por ausência de laços afetivos entre adotante e adotando, é certo que a famigerada conduta causa abalos no adotando, que ultrapassam o mero dissabor ou aborrecimento, merecendo a devida reparação. (REZENDE, 2014, p. [?])

Destarte, em qualquer caso avaliado deve-se levar em contra a Doutrina da Proteção Integral da Criança, que não é mero objeto passível de ser devolvida quando não corresponde as expectativas dos adotantes e cabe ao Estado tomar as providências necessárias para proteger a CR/AD de abusos e traumas. Assim, o Ministério Público tendo conhecimento do caso e avaliando todas as informações expostas, poderá tomar duas decisões:

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