A DESCONSTRUÇÃO DA DOGMÁTICA JURÍDICA NA GARANTIA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA A PARTIR DO CASO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL DE MEDICAMENTOS À BASE DA SUBSTÂNCIA CANNABIS SATIVA

Por Conceicao de Maria Miranda Pereira | 18/07/2017 | Direito

Conceição de Maria Miranda Pereira[1]

Lorena de Viveiros Rios[2]

RESUMO

A desconstrução da dogmática jurídica na garantia de efetivação do direito fundamental à vida a partir do caso de autorização judicial de medicamentos à base da substância Cannabis Sativa. É abordada, inicialmente, através da desconstrução da dogmática jurídica como uma garantia de efetivação do direito fundamental à vida, com destaque à filosofia hermenêutica heideggeriana e a hermenêutica filosófica de Gadamer. Por fim, apresentou-se a importância da desconstrução da dogmática jurídica na efetivação do direito fundamental à vida a partir do caso de autorização judicial de medicamentos à base da Cannabis Sativa.

Palavras-chave: Fenomenologia Hermenêutica. Cannabis Sativa. Direito à vida.

1 INTRODUÇÃO

Hodiernamente, o Poder Judiciário brasileiro perpassa por uma crise do Direito, diante de sua fragilização no atendimento aos interesses sociais, inclusive aos próprios direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal de 1988. Partindo-se de que uma parcela considerável dos operadores do Direito subsidia-se da dogmática jurídica neste processo de aplicação da norma a sociedade, não atendendo assim a demanda de uma sociedade que se encontra em constante mutação. Deste modo, a sociedade reclama por uma nova postura dos operadores do Direito frente a atual evidência dos direitos transindividuais e a complexidade da sociedade que almejam uma concretização do Direito mediante soluções justas e adequadas aos valores sociais.

De acordo com Streck (2014), no Brasil predomina em âmbito jurídico o paradigma liberal-individualista-normativisma, a partir do qual é oferecido ao profissional do Direito uma solução já construída para ser aplicada ao caso concreto, mediante o uso da dogmática jurídica. Assim, o Direito se perde em meio a sua desfuncionalidade da subsunção da norma. Dessa forma, atualmente surge um novo paradigma no Estado Democrático de Direito a fim de solucionar os conflitos desta nova sociedade, onde casos de mesma natureza, porém com circunstâncias distintas não poderão ser vistos pelo operador do Direito a partir da mesma norma, pois isto gerará danos graves a sociedade. Portanto, a crise do Direito dar-se principalmente em função da constante presença da dogmática jurídica nas decisões aplicadas a uma sociedade repleta de questões de matérias transindividuais, fundamentadas em um Direito estruturado para atender conflitos individualistas presentes em nosso ordenamento jurídico.

Diante disso, nos propomos a reconhecer como a desconstrução da dogmática jurídica promove a garantia de efetivação do Direito Fundamental à vida a partir do caso de autorização judicial de medicamento à base da Cannabis Sativa, ao demonstrar a desconstrução da dogmática jurídica na garantia de efetivação deste direito fundamental, além de identificar a partir do caso a relevância desta desconstrução na promoção da garantia de efetivação do Direito Fundamental à vida.

 

2  A DESCONSTRUÇÃO DA DOGMÁTICA JURÍDICA COMO UMA GARANTIA DE EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA

 

2.1 A crise da modernidade

 

Diante da afirmação hegeliana de que a modernidade coincide com o surgimento da subjetividade, é que se passa a pensar essa modernidade não mais como o reconhecimento de período histórico, mas como uma substância que deve ser analisada. É a partir dessa idéia que se assume uma autoconsciência de modernidade, ou seja, a modernidade se dando conta de questões próprias da modernidade. Essa autoconsciência é o ponto em que a modernidade se torna crítica, questionando sua substância, dando-se conta de uma situação de crise. (STEIN, [?])

 De modo que, tal estado de crise foi apresentado pela percepção da tradição da metafísica, na qual há uma objetivação da realidade. Ou seja, aqui se encontra o risco ao tratarmos das coisas da modernidade como reprodutores da metafísica, já que esta impede que o indivíduo manifeste sua liberdade e autonomia. Sendo assim, a modernidade é uma consciência, da qual emergirá uma reação quanto a eterna submissão das verdades postas no mundo (STEIN, [?]).

Logo, a unidade do conhecimento humano perdeu-se em meio à crítica deste conhecimento, observando assim que o conhecimento é fragmentário. Assim, “ainda que se coloque como um princípio fundamental a idéia de razão, esta razão mesma se dá de uma maneira múltipla, distribuída numa multiciplicidade de vozes” (STEIN, [?], p. 16). A busca pela liberdade ou autonomia frente as amarras da metafísica é que se dá a crítica da modernidade.

A questão da modernidade apresenta um liame relativo a ciência, tendo em vista que se não fosse a ciência propor novos elementos no nível do conhecimento, não haveria a crítica do conhecimento e posteriormente o questionamento acerca do problema da modernidade. A racionalidade ameaçando a espontaneidade de cada indivíduo (STEIN, [?]).

No momento em que perdemos esta unidade de um sistema, ou a possibilidade de haver um sistema filosófico que explique as diversas regiões fundamentais do saber e do convívio humano, neste momento chegamos ao fim da modernidade. Porque a modernidade se caracteriza justamente através da idéia de razão em que, de certo modo, o problema da unidade foi encontrado a partir de um princípio determinado. Mas é uma unidade que nasce da idéia de razão (STEIN, [?], p. 21).

 

Destarte, a perda da unidade significa também a supressão da  prática de sempre  invocar a metafísica como a possibilidade de soluções. Além claro de não confiarmos mais a verdade do mundo unicamente na ciência, tendo em vista que a mesma passa a buscar somente a certeza a fim alcançar apenas a eficácia no nível cientifico a partir da ruptura entre ciência e filosofia. Isto consolida ainda mais a idéia de fim da modernidade, em meio ao crescente fortalecimento da ciência que distancia ainda mais a filosofia da ciência.

 Essa situação de crise não deixa de ser percebida em âmbito jurídico. Esse risco de analisar o mundo através da metafísica é também uma preocupação da seara do Direito.  Tendo em vista que na modernidade há uma finitude do conhecimento, ou seja, o acesso ao conhecimento seria comum a todos os homens, por meio da intuição e depois dos “conceitos a priori via entendimento” (STEIN, [?], p.23).

Portanto, entendemos com a crise da modernidade que a razão é finita nos aparelhos mentais por meio dos quais acessamos o conhecimento, sendo imprescindível também as condições históricas do mundo exterior ao indivíduo, dando-se assim mais um elemento que evidencia o fim da modernidade.

 

 

 

 

 

2.2 A desconstrução da dogmática jurídica 

 

2.2.1 A desconstrução da dogmática jurídica sob a perspectiva da hermenêutica filosófica de Heidegger

 

A interpretação do direito é vista como o ato de compreender o significado das normas jurídicas, entretanto a aplicação da lei pelo Poder Judiciário deve atender o indivíduo e a sociedade que lhes dão sentido, por isso devemos ver a lei de acordo com o caso especifico. Tendo em vista que “compreender é buscar o significado de alguma coisa em função das razões que o orientam [...] buscar os valores subjacentes à lei, e que fogem a mera relação causa-efeito” (CAMARGO, 2003, p. 13). Logo, a interpretação insere o Direito na realidade, na vida da sociedade.

Além que, a interpretação do direito é uma prudência (saber prático). O interprete agirá conforme uma lógica de preferência, ao escolher entre as mais distintas soluções corretas aquela mais adequada ao caso concreto em questão, através de uma justificação não uma demonstração através da norma. Assim “ser uma prudência o direito, isso também explica sua faticidade e historicidade, razão pela qual sua operalização reclama o manejo de noções, e não somente de conceitos” (EROS, 2006, p.41)

            Isto posto, entendemos que não basta interpretar os textos normativos, mas também deve haver a compreensão dos fatos. Compreender é algo existencial relacionado experiência do sujeito.A norma é construída pelo intérprete durante o processo de concretização do direito. A norma jurídica é produto da norma e do fato em si, pois a norma está sempre em estado de potência parcialmente presa ao texto, já que “os fatos também a determinam [...] a norma é produzida pelo intérprete, não apenas a partir de elementos que se desprendam do texto (mundo do dever-ser). Interpreta-se também o caso, necessariamente além dos textos e da realidade” (EROS, 2006, p.32)

A noção de compreensão para Heidegger dar sob a égide de duas características: estar-familiarizado e o ter-se a si mesmo. Estamos familiarizados com as coisas que fazem parte da nossa noção de mundo que nos circundam correspondentes em nossos comportamentos, compreendendo assim os sentidos dessa coisa em nosso projeto existencial. Tendo em vista que não conhecemos as coisas ao observar suas características, mas sim por operarmos com elas, ou seja, primeiro temos a experiência com a coisa e só depois as contemplamos teoricamente como objetos do conhecimento (SILVA, 2012).

Dessa forma, com relação ao ter-se a si mesmo, 1) é um processo e não simplesmente um olhar fixamente de um objeto, isto é, indica a mobilidade que determina o Da-sein mesmo; 2) a mobilidade do Da-sein consiste em um ganhar-se e perder-se,ou seja, um descobrir e ocultar o fenômeno vida; 3) isto que é ganhado ou perdido é uma certa familiaridade do Da-sein consigo mesmo [...] Em suma, compreender pode ser expresso na formulaà familiaridade + ter-se a si mesmo ( SILVA, 2012, p. 18)

A hermenêutica filosófica de Heidegger é alicerçada na compreensão como totalidade e na linguagem como meio de acesso ao mundo e aos objetos. Assim  como compreender só é possível se o homem é um ser-no-mundo; nosso acesso a esse mundo só é possível pela linguagem” (STRECK, 2014, p.174).Portanto, a linguagem é a abertura para o mundo.

Assim, Heidegger ao transformar a hermenêutica normativa em filosófica  lhe provendo todo o alicerce ontológico assegura que há uma relação entre a linguagem e ser, no qual para explicar esta conexão subsidia-se de uma analise do ser-aí, ou seja, o homem um ser completamente hermenêutico, afirmando que a compreensão é crucial para nossa existência como ser no mundo (Dasein), tendo em vista que a compreensão do ser é a própria definição de ser deste ente no mundo. Logo, a compreensão se dar na prática. Por isso, quando nos utilizamos da linguagem para perceber a norma jurídica (como objeto), esta subsume-se em meio a um contexto histórico e cultural, dessa forma entende-se que o saber jurídico dar-se por uma comutação entre o ser e o mundo (LEAL apud GRAU, 2006)

O conhecimento como interpretação não é o desenvolvimento e a articulação das fantasias que o Dasein, como sujeito individual, possa ter sobre o mundo, mas, sim, a elaboração da constitutiva e originária relação com o mundo que o constitui. É essa idéia do conhecimento-como articulação de uma pré-compreensão (Vorverständnis) originária- que Heidegger chama de ‘círculo hermenêutico’ (STRECK, 2014, p.192).

 

O ser- aí é determinado por um círculo de compreensão e interpretação que define o ser-no-mundo, isto é quando o homem familiariza-se com a universalidade de significados apresentando assim um contexto referencial, o que não denota que este homem tem convívio com todas as coisas do universo. Tendo em vista que, segundo Heidegger, as coisas somente são quando estão no projeto, quando tem sentindo no contexto do ser-aí, ou seja, quando adquirem uma instrumentalidade para o indivíduo. Deste modo, podemos afirmar que a familiaridade antecedente com o mundo em si, é a própria pré-compreensão (VATTIMO, 2007).

Dessa forma, o interprete já possui uma pré-compreensão a respeito daquilo que irá interpretar adquiridas a partir das suas próprias vivências, partindo disto o processo de interpretação adquire um dinamismo, o movimento circular, compondo o círculo hermenêutico. Assim a interpretação do operador do direito sempre traz consigo marcas de suas vivencias. Ele decide sempre inserido em um contexto histórico, conforme a consciência social da época em vive e até mesmo conforme o ordenamento jurídico vigente, não analisando somente a norma em si, isolada do contexto.

            Portanto, “[...] o direito é contemporâneo à realidade” (EROS, 2006, p.42), considerando-se que, para a compreensão da linguagem é imprescindível haver a contextualização. Pois, as proposições dão-se sob a perspectiva histórica, cultural e do viés subjetivo.

 

2.2.2 A desconstrução da dogmática jurídica sob a perspectiva da hermenêutica filosófica gadameriana

 

            Gadamer acredita que a razão deve relacionar-se com a historicidade do sentido, para isso se faz necessária uma auto-compreensão atingida pelo ser humano não só enquanto intérprete, mas também como participante da tradição histórica (STEIN, [?]). Nessa perspectiva é que, segundo Streck (2014), Gadamer acredita que a interpretação está sempre relacionada com conceitos prévios cuja tendência é de serem substituídos por outros mais adequados.

Nessa perspectiva Costa (2008, p. 141) nos ensina que “na medida em que tentamos harmonizar as informações que recebemos com as que já tínhamos, as nossas visões sobre o mundo são enriquecidas e nossas pré-compreensões tornadas mais complexas e refinadas”.

Assim, interpretar significa uma autocompreensão de quem interpreta, haja vista que a facticidade e a historicidade são o locus da pré-compreensão, condição de possibilidade para qualquer interpretação (STRECK, 2014).

De acordo com Streck (2014, p. 280), “para Gadamer, aquele que pretende compreender não pode entregar-se desde o princípio à sorte de suas próprias opiniões prévias e ignorar a mais obstinada e consequentemente possível opinião do texto”. Assim, tentar compreender é estar exposto aos erros de opiniões prévias que não se comprovam nas coisas mesmas, ou seja, segundo Gadamer aquele que quer compreender um texto deve realizar sempre um projetar, no sentido de acrescentar.

Outro ponto que merece destaque na hermenêutica filosófica diz respeito ao primado da linguagem. “A linguagem deixa de ser instrumento e veículo de conceitos – deixando, assim, de ‘estar à disposição do intérprete’ – para ser a condição de possibilidade de manifestação do sentido” (STRECK, 2014, p. 305). Esse sentido não aparece com a utilização de métodos determinados, nem o interprete interpreta por fases (compreensão, interpretação e aplicação). Esses três momentos são interdependentes.

Gadamer afirma que a interpretação do texto normativo é uma atividade criativa. “A autonomia interpretativa só existiria se se entendesse a aplicação jurídica como uma simples subsunção da norma ao caso concreto, afastada da sua historicidade” (LOPES, p. 09)

A hermenêutica jurídica para Gadamer não pode fundamentar-se somente em premissas acerca da ideia e intenção do legislador na criação da lei, já que há um largo espaço entre a generalidade da lei e a própria situação jurídica do caso concreto. A teoria hermenêutica gadameriana pretende mostrar que o máximo apego à letra de um texto não corresponde à garantia de correta compreensão. Essa compreensão acontece a partir do modo de ser do intérprete que, por sua vez, é um ser-no-mundo, um ser-com-os-outros. Por isso, a hermenêutica é filosófica, é existência, e facticidade (STRECK, 2014).

Portanto, a compreensão histórica da norma pretende desenvolver a sua efetividade histórica em relação a uma nova situação, e não simplesmente reproduzir a intenção original do legislador. Afastando, dessa forma, os preceitos da dogmática jurídica com a objetivação das relações. A historicidade da norma, igual a em qualquer outro texto, não é uma restrição a seu horizonte, “senão que, pelo contrário, a condição que permite sua compreensão. No Direito, essa condição se manifesta por meio do vínculo que existe entre a pessoa obrigada e a norma, vínculo que afeta a todos por igual, e não faz da lei uma propriedade pessoal do legislador” (LOPES, 2008).

 

2.3 A garantia do direito fundamental à vida e a superação da dogmática jurídica

 

É da essência do Estado Democrático de Direito, subordinar-se à Constituição Federal, como seu princípio estruturador, e fundar-se na legalidade democrática. No entanto, essa sujeição às leis constitucionais deve, primordialmente, efetivar os princípios da igualdade e da justiça, não em sua generalidade, mas na tentativa de igualar as condições dos socialmente desiguais (SILVA, 2005). Esse modelo de Estado, supera os modelos anteriores – Estado Liberal de Direito e Estado Social de Direito – na medida em que apresenta uma nova organização social, a partir da qual se implanta na sociedade “superiores níveis reais de igualdade e liberdade” (STRECK, 2014, p. 53).

O qualificativo “democrático” vai além de uma simples reduplicação das exigências e valores do Estado Social de Direito e permite uma práxis política e uma atuação dos Poderes públicos que, mantendo as exigências garantísticas e os direitos e liberdades fundamentais, sirva para uma modificação em profundidade da estrutura econômica e social e uma mudança no atual sistema de produção e distribuição dos bens (DÍAZ apud STRECK, 2014, p. 53-54)

 

                Com isso, podemos afirmar que essa noção de Estado Democrático de Direito está indissociavelmente atrelada à realização dos direitos fundamentais. Esse Estado, ao fazer uma síntese dos modelos de Estado anteriores, reúne a construção das condições de possibilidades para suprir as lacunas das dos outros modelos, “representadas pela necessidade do resgate das promessas da modernidade, tais como igualdade, justiça social e a garantia dos direitos humanos fundamentais” (STRECK, 2014, p. 54).

            Assim o Estado Democrático de Direito se agrega aos conteúdos das Constituições, na tentativa de atingir um ideal de vida, subsidiado pelos princípios que absorvem um componente revolucionário de transformação do status quo (SILVA, 2005). Nessa perspectiva, a Constituição torna-se “uma forma privilegiada de instrumentalizar a ação do Estado na busca do desiderato apontado pelo texto constitucional, entendido no seu todo dirigente-principiológico” (STRECK, 2014, p. 54).

            Frente a isso, podemos afirmar que tal Estado Democrático de Direito, no exercício de garantir os direitos fundamentais daqueles que se submetem à soberania do Estado, deve assegurar o direito fundamental à vida. Sendo este o direito mais fundamental dos direitos, haja vista que é um pré-requisito à existência e exercício dos demais direitos. Cabe a esse Estado, assegurá-lo em suas duas acepções: tanto o direito de manter-se vivo quanto o direito à vida digna (MORAES, 2014).

Com esse modelo de Estado, vigente no Brasil, almeja-se a justiça, a garantia do dos direitos fundamentais e a igualdade social efetivada pelo Direito. Entretanto, a concretização da norma advém da construção de sentido que lhe é atribuída a partir da compreensão.

 O Direito deve ser compreendido não meramente explicado, pois a norma será interpretada conforme valores que circundam o fato, de modo que cada ação jurídica apresenta uma solução única e verdadeira, na medida em que o compreender é averiguar-se entre os inúmeros significados possíveis da norma o mais adequado ao fato jurídico (CAMARGO, 2003).

Assim, Eros Grau (2006) esclarece que na problematização da norma jurídica não deve ser analisada sob a ótica da ciência, mas sim da prudência considerando-se que incitação ocorre mediante as inúmeras soluções corretas para uma questão.

Portanto, a operacionalização do Direito necessita de um saber prático do sujeito que interpretará a norma, não meramente conceitual destas. De modo que, a hermenêutica como instrumento para interpretação da norma não se encontra mais presa a ideia de uma simples técnica de subsunção do fato ao texto jurídico, mas sim a ideia de uma interpretação da norma que parte da pré-compreensão do operador do Direito dinamizando-se com conhecimentos novos acerca do fato compondo assim o chamado círculo hermenêutico (GRAU, 2006).

 

3 A IMPORTÂNCIA DA DESCONSTRUÇÃO DA DOGMÁTICA JURÍDICA NA EFETIVAÇÃO DO DIREITO FUNDAMENTAL À VIDA A PARTIR DO CASO DE AUTORIZAÇÃO JUDICIAL DE MEDICAMENTOS À BASE DA CANABIS SATIVA

 

3.1 O panorama dos casos que envolvem a autorização judicial para medicamentos à base de Canabis Sativa

 

Não é de hoje o reconhecimento da maconha com suas propriedades medicinais. Por isso, seu uso para fins medicinais é legalizado em alguns países como Canadá e parte dos Estados Unidos. No entanto, em países como o Brasil as discussões são ainda bastante tímidas. Por serem derivados da Canabis Sativa, o nome científico da maconha, alguns medicamentos estão na lista de proibição da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), órgão responsável pelo controle do uso de substâncias no Brasil.

Os que são contra o uso medicinal da maconha, como a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), defendem que o que pode servir são substâncias extraídas da maconha, sem características alucinógenas, já que piora os quadros psiquiátricos, como depressão e ansiedade. Por outro lado, os que são a favor, alegam que não há evidências científicas que comprovem o agravamento desses quadros psiquiátricos. Há os que afirmam que a proibição seria perversa, haja vista que prejudicaria o acesso aos benefícios médicos dessa planta.

O fato é que, mesmo com as poucas pesquisas que há, já se descobriu que a planta geralmente não cura, mas pode retardar o avanço de doenças, controlar sintomas e complementar os tratamentos convencionais.

Por essa escassez de estudos que Anvisa acredita ser inviável liberar o uso medicinal. No Brasil, para que se consiga utilizar as substâncias listadas como proibidas é preciso solicitar a importação à Anvisa. Por serem proibidas, os médicos não podem prescrevê-las, pois podem ter o registro profissional cassado. Essa proibição também faz com que o acesso à planta seja difícil, o que dificulta, também, o desenvolvimento de pesquisas. Assim, não tem pesquisa porque é proibido, e é proibido porque não tem pesquisa, o que acaba tornando um ciclo vicioso que obstaculiza o conhecimento científico.

As discussões acerca desse assunto ganham força no Brasil, com o caso da menina brasiliense de 5 anos, que após a utilização de óleo à base de canabidiol (CBD), viu suas convulsões, causadas por uma rara síndrome genética, cessarem. Após seus pais ouvirem falar sobre o caso de uma menina norte-americana, que sofria com a mesma síndrome, e estava controlando as convulsões com CBD, decidiram arriscar e importaram ilegalmente a substância para o Brasil.

Quando as ampolas do óleo acabaram e voltaram as convulsões, a pressão popular foi tanta que a família conseguiu uma ordem judicial e Anny Fischer foi a primeira paciente do Brasil a ter autorização para importar um medicamento à base de maconha. Desde esse caso, a Anvisa recebeu 77 pedidos de importação de derivados de maconha por pacientes. Contudo, devido a proibição da utilização dessa substância, o caminho para o alcance de uma autorização judicial é longo e burocrático.

 

3.2 A garantia do direito fundamental à vida a partir da superação da dogmática jurídica nos cases de autorização judicial de medicamentos à base de Canabis Sativa

 

            Com a afirmação dos direitos fundamentais assegurados pela Constituição, não é suficiente que um direito seja apenas reconhecido e declarado, faz-se necessário garanti-lo, haja vista que há situações nas quais eles serão discutidos e violados (SILVA, 2005). Conforme dissemos anteriormente, a Constituição Federal, com a proclamação do direito à vida, comprometeu-se a assegurar tanto o direito de continuar vivo, quanto o direito à uma vida digna.

              O legislador constitucional deixa clara a ênfase na importância do direito à vida e o dever do Estado de agir para conservá-la em si mesma e com determinado grau de qualidade. Dada essa importância, a Constituição protege, ainda, situações em que o titular desse direito se acha mais vulnerável. O art. 227 assevera que é “dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida”. Com isso, notamos que o direito à vida, é a premissa dos outros direitos fundamentais estabelecidos pelo constituinte (BRANCO; MENDES, 2012).

            Nos casos que envolvem a guerra judicial pela autorização para a utilização medicamentos com substâncias derivadas da maconha, esse direito à vida, à qualidade de vida, entra em conflito com a posição da saúde pública, haja vista que a Anvisa proíbe o uso desse tipo de medicamento por seu caráter psicotrópico.

            Sendo assim, percebemos a necessidade de se buscar novos caminhos hermenêuticos para a aplicação da norma ao caso concreto, dada a insuficiência da hermenêutica clássica. Para isso buscamos na fenomenologia hermenêutica e hermenêutica filosófica, a aplicação da norma, diante da facticidade e historicidade do ser-aí.

Assim, observa-se na hermenêutica heideggeriana um modo de dar sentido ao texto jurídico através do ser-aí. Visto que através da fenomenologia, Heidegger afasta-se da metafísica circunscrita somente no sujeito-objeto e passa a visar as situações fáticas do projeto existencial do homem.

Destarte, em dias atuais a hermenêutica filosófica de Heidegger tem se mostrado significativa, na medida em que o estudo em busca da essência do ser proposta pelo filósofo, leva-nos a concluir que as interpretações devem ser vistas à luz do tempo de sua concepção. Em virtude de haver inúmeras possíveis pré-compreensões do intérprete. Portanto, para Heidegger é inconcebível a compreensão fora de um contexto social e histórico.

            Gadamer, seguidor da hermenêutica heideggeriana, estabelece que um pensamento verdadeiramente histórico tem de pensar também a sua própria historicidade. Ou seja, para Gadamer, um texto não traz o seu próprio sentido em si, já que a relação sujeito-objeto que insistia em positivar o conhecimento é superada. Ao defender a ideia de que a atividade de interpretação da lei é criativa, rompe com a possibilidade de saberes reprodutivos. Firmado no paradigma da linguagem, a tarefa de interpretar passa, pois, a ser uma atribuição de sentido (STRECK, 2014). Assim, “posso tentar fugir da objetividade e, num exercício de pré-compreensão autêntica, me desafiar a construir norma adequada para a solução do caso posto com base no texto legal, que nada representa sem a normação que o caso posto me possibilita concretizar” (APELAÇÃO CRIMINAL Nº 0010944-45.2006.404.7100/RS).

            Assim, observa-se na fenomenologia hermenêutica um modo de dar sentido ao texto jurídico através do ser-aí, havendo um nexo entre a fundamentação e a aplicação desta norma. Havendo incompatibilidade entre um neoconstitucionalismo transformador e o positivismo preso a separação sujeito-objeto.

Destarte, em dias atuais a hermenêutica filosófica tem sido relevante para a garantia da justiça social, em meio a um ordenamento jurídico brasileiro estático. Ainda se observa em menor número decisões que vão além do sentido estrito da lei, como o caso, excepcional, da decisão do juiz Bruno Apolinário, da 3ª Vara Federal de Brasília, que concede à paciente Anny Fischer, portadora de uma forma grave e rara de epilepsia, uma liminar para usar e importar medicamento derivado da Cannabis Sativa.

Frente a isso, Branco e Mendes (2012, p. 381) nos ensinam que não se pode subordinar o direito fundamental à vida a opções do legislador infraconstitucional, haja vista que esse direito não pode ter o seu núcleo essencial apequenado por esse legislador. “E é essa consequência constitucionalmente inadequada que se produziria se se partisse para interpretar a Constituição segundo a legislação ordinária, máxime quando esta não se mostrar tão ampla como exige o integral respeito do direito à vida”.

Assim, apesar de a maconha ser criminalizada no Brasil, o poder judiciário analisa os casos concretos utilizando-se da hermenêutica filosófica para garantir o Direito Fundamental à vida inerente a qualquer indivíduo. Compreendendo a norma jurídica conforme o contexto histórico e cultural do operador do direito, interpretando assim a lei conforme os valores da sociedade atual em que tanto o operador como o indivíduo, que buscam a efetivação do direito, estão inseridos.             

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No presente trabalho abordamos a temática da crise do direito, do Estado e da dogmática jurídica e o papel da hermenêutica no horizonte do Direito como instrumento de transformação social, mais especificamente através da desconstrução da dogmática jurídica na garantia de efetivação do Direito Fundamental à vida a partir do estudo do caso de autorização judicial de medicamentos à base da substância Cannabis Sativa proibida pelo ordenamento jurídico brasileiro.

Para isso apresentamos de início a crise da modernidade, que fornece o subsidio necessário para o entendimento da desconstrução da dogmática jurídica sob a perspectiva da filosofia hermenêutica de Heidegger e da hermenêutica filosófica de Gadamer. Isto posto apresentamos a garantia do direito fundamental à vida tendo vista a superação da dogmática jurídica. Demonstrando assim, a importância da desconstrução da dogmática jurídica na efetivação do Direito Fundamental à vida a partir do caso de autorização judicial de medicamentos à base da Canabis Sativa, atingindo, assim, os objetivos aos quais nos propomos.

Diante disso, entendemos a importância da hermenêutica jurídica sob a perspectivas filosóficas de Heidegger e Gadamer, considerando que esta reflexão hermenêutica possibilitou a superação da arcaica concepção de interpretação como técnica de subsunção do fato na norma estrita para dar evidencia a interpretação que parte das pressuposições. Visto que, o compreender da norma jurídica está relacionado a experiência do operador do direito em meio ao contexto em que está inserido.

Portanto, em meio a atual fase de crise do Direito em que o Poder Judiciário brasileiro perpassa, faz-se assim necessário que os operadores do Direito subsidiem-se cada vez mais hermenêutica jurídica neste processo de aplicação da norma a sociedade.  A fim de atender a demanda de uma sociedade que se encontra em constante mutação e que reclama por uma nova postura dos operadores do Direito, tendo em vista a atual evidência dos direitos transindividuais. Logo, a atual sociedade brasileira clama pela concretização do Direito através de soluções justas e adequadas aos valores sociais vigentes.

REFERÊNCIAS

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[1] Autora

[2] Autora