A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA E SUA APLICAÇÃO NO PROCESSO FALIMENTA

Por Fabiene de Jesus Ferreira Pavão | 08/03/2017 | Direito

A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA E SUA APLICAÇÃO NO PROCESSO FALIMENTAR: ANÁLISE DO REQUISITO DE DESVIO DE FINALIDADE CONFORME O ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002¹

 

Ana Priscila Nascimento²

Fabiene de Jesus Ferreira Pavão²

Humberto Oliveira³

 

SUMÁRIO: 1 Introdução; 2 Desconsideração da personalidade jurídica; 2.1 Aspectos gerais acerca da desconsideração da personalidade jurídica; 2.2 Teorias da desconsideração da personalidade jurídica - Teoria maior e teoria menor; 3 A desconsideração da personalidade jurídica inversa e o requisito do desvio de finalidade; 3. 1 Análise da possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica; 3.2 Aplicabilidade da desconsideração inversa no processo falimentar respaldada no requisito de desvio de finalidade presente no art.50 do código civil de 2002; 4 Conclusão; Referências.

 

 

 

RESUMO

 

Encarar a pessoa jurídica com ente autônomo e de patrimônio separado dos seus sócios/administradores foi uma das soluções encontradas para incentivar a livre iniciativa. Desta forma, o patrimônio da pessoa jurídica responde pela obrigações contraídas pela mesma sem que o bens dos seus membros sejam atingidos. Porém, antevendo a possibilidade de ser a sociedade utilizada com fins fraudulentos de modo que prejudicassem direitos de terceiros o legislador criou mecanismos a fim de se evitar a má utilização da pessoa jurídica sem que os culpados fossem responsabilizados uma vez escondidos atrás do Princípio da Autonomia Patrimonial da pessoa jurídica. A desconsideração da pessoa jurídica é instituto conhecido e legislado, porém, sua modalidade inversa é pouco conhecida.

 

Palavras-Chave: Autonomia Privada. Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. Abuso da Pessoa Jurídica. Confusão Patrimonial. Lesão a direito de terceiros.

 

1 INTRODUÇÃO

 

A teoria da desconsideração da personalidade jurídica inversa é conhecida e já trabalhada em vários textos legais como o Código de Defesa do Consumidor, Consolidação das Leis Trabalhistas, Direito de Família e Ambiental.

Analisar-se-á o artigo 50 do Código Civil de 2002, que sustenta a aplicação da “desconsideração da personalidade jurídica”, em contraponto com o enunciado da Justiça Federal nº 283, do Centro de Estudos Judiciários determina que "É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros".

A ideia de responsabilização havendo o desvio da função social em decorrência de dívidas constituídas em nome dos sócios possui caráter constitucional, uma vez que a autonomia patrimonial é um instrumento para o alcance da função social.

De maneira que, se não observada, viola os princípios da ordem econômica previsto no art.170 da Constituição Federal/88. Ressalta-se que essa medida não se torna incompatível com o art. 50 do Código Civil/02, pois o que se deve levar em consideração é o escopo finalístico do dispositivo, ou seja, proteger os credores de manobras fraudulentas do devedor.

O artigo mencionado do Código Civil traz duas situações específicas onde será possível a desconsideração da personalidade jurídica. A primeira hipótese é quando houver desvio de finalidade da pessoa jurídica e a segunda, quando houver confusão patrimonial. Para fins de um estudo mais aprofundado, será analisado especialmente o requisito do desvio de finalidade.

Por fim, o presente trabalho objetiva, especificamente, discutir a aplicação da teoria da desconsideração inversa da personalidade. Situação na qual um dos sócios controladores, ou administrador, injeta patrimônio na empresa com o objetivo de esvaziar qualquer bem que esteja em seu nome, para assim prejudicar eventual partilha de bens na dissolução de um casamento, pensão alimentícia ou qualquer outra obrigação pessoal.

 

2 DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA

 

2.1 Aspectos Gerais Acerca da Desconsideração da Personalidade Jurídica

Não há como se abordar a temática da desconsideração da personalidade jurídica nos moldes do art. 50 do Código Civil, ou mesmo a sua modalidade inversa admitida pelo Conselho da Justiça Federal em seu Enunciado n. 283, sem antes tecermos um breve comentário ao Princípio da Autonomia Patrimonial.

Por esse princípio, temos que o patrimônio da Pessoa Jurídica é autônomo e independente do patrimônio dos seus sócios. De sorte que os bens pessoais dos sócios não podem ser atingidos por dívidas pessoais da sociedade empresária. Nas palavras de Matheus Carneiro Assunção:

A personalização das sociedades empresárias traz em seu bojo relevantes conseqüências. Da separação entre a pessoa jurídica e os membros que a integram nasce o princípio da autonomia patrimonial, segundo o qual o patrimônio da sociedade não se confunde com o dos seus sócios ou com o de outras empresas das quais estes participem: a entidade coletiva passa a constituir um centro autonômico de relações jurídicas (p.[?], 2007).

 

O princípio da autonomia da pessoa jurídica não é, no entanto, absoluto. De maneira que é possível o afastamento, ou seja, a desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária em circunstâncias excepcionais.

Sabe-se que a pessoa jurídica deve cumprir sua função social de maneira que se esta vier a se tornar instrumento para fraudes e abusos de um, ou mais, sócio, essa autonomia deverá ser afastada para que o direito de terceiros, geralmente representados por credores, não reste prejudicado.

“Se há abuso de direito, com o manejo da personalidade jurídica moral para a prática de atos ilícitos (contra a lei), lesando terceiros, vencem-se as finalidades legais, devendo o Direito reagir ao abuso” (MAMEDE, p.279, 2012). A teoria da desconsideração da personalidade jurídica surge, não para acabar com o princípio da autonomia patrimonial, mas para coibir seu desvirtuamento.

Uma confirmação disto, é que este instituto só poderá ser utilizado excepcionalmente. Pois a regra, é que haja a separação entre os bens da sociedade empresária e do seus sócios. Assim nos elucida Gladston Mamede:

Nem a responsabilização, nem a desconsideração da personalidade jurídica podem ser encaradas como panaceias para atender a toda e qualquer situação de inadimplemento obrigacional pela pessoa jurídica. Preserva-se no Direito brasileiro a regra geral da distinção da personalidade jurídica e de patrimônios entre o membro e a sociedade (...) A responsabilização e a desconsideração são medidas de exceção a serem utilizadas apenas em hipóteses específicas, entre as quais se destacam o uso ilícito (doloso) ou o uso fraudulento da pessoa jurídica.

 

Como é possível perceber, o mero inadimplemento da sociedade empresária não constitui motivo capaz de afastar a personalidade jurídica da pessoa jurídica. Devendo haver a comprovação de que o sócio(s) e/ou administrador procederam a utilização ilícita ou fraudulenta da pessoa jurídica.

Deve-se ter em mente que a desconsideração da personalidade jurídica não implica na anulação do ato constitutivo da sociedade empresária. Haverá apenas um afastamento, uma desconsideração da personalidade jurídica para aquele caso específico. Conforme ensina Maria Helena Diniz (p.577, 2012), “A aplicação deste dispositivo legal conduz à desconsideração temporária da personalidade da sociedade, sem contudo desfazer ou anular seu ato constitutivo, não havendo, portanto, dissolução nem liquidação da sociedade”.

Do mesmo modo entende o Superior Tribunal de Justiça que já decidiu em sede de Recurso Especial:

Recurso especial. Direito civil. Artigos 472, 593, II e 659, § 4.°, do Código de Processo Civil. Fundamentação deficiente. Incidência da Súmula 284/STF. Desconsideração da personalidade jurídica da sociedade empresária. Medida excepcional. Observância das hipóteses legais. Abuso de personalidade. Desvio de finalidade. Confusão patrimonial. Dissolução irregular da sociedade. Ato efeito provisório que admite impugnação. Bens dos sócios. Limitação às quotas sociais. Impossibilidade. Responsabilidade dos sócios com todos os bens presentes e futuros nos termos do art. 591 do CPC. Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, improvido. (...) IV – A desconsideração não importa em dissolução da pessoa jurídica, mas se constitui apenas em um ato de efeito provisório, decretado para determinado caso concreto e objetivo, dispondo, ainda, os sócios incluídos no polo passivo da demanda, de meios processuais para impugná-la. (...) (REsp 1.169.175/DF, Rel. Min. Massami Uyeda, 3.ª Turma, j. 17.02.2011, DJe 04.04.2011).

 

Segundo André Luiz Santa Cruz Ramos (p.393, 2014), “Da mesma forma, a aplicação da teoria da desconsideração não significa a possibilidade de execução de todos os sócios e/ou administradores da sociedade, indistintamente. Somente serão atingidos aqueles sócios que se beneficiaram do uso abusivo da pessoa jurídica”. O fato da sociedade ter sua personalidade afastada não implica na responsabilização de todos os sócios e/ou administradores. Recaindo a punição de responder com seu patrimônio individual dívidas da sociedade, somente àqueles que a utilizaram indevidamente.

 

2.2 Teorias da Desconsideração da Personalidade Jurídica - Teoria Maior e Teoria Menor

Existem duas teorias acerca da desconsideração da personalidade jurídica. É possível observar, no Direito brasileiro, a utilização das duas teorias.

A teoria maior, como regra, afasta a autonomia da personalidade jurídica quando comprovado que seus sócios agiram com fraude ou abuso de direito. Como já foi visto no capítulo anterior, esse abuso caracteriza-se pelo desvio de finalidade da sociedade ou em caso de confusão patrimônio. O Código Civil de 2002, art. 50, adotou essa teoria. Por ter ampla aplicabilidade, é geralmente, a mais trabalhada pela doutrina e jurisprudência (ASSIS, p.[?], 2008).

Ulhôa Coelho utiliza-se da teoria da licitude sob a qual só haveria ilicitude dos atos do administrador, ou sócio controlador, e não da pessoa jurídica. Uma vez que esta é uma ficção jurídica controlada por seus membros, não praticando atos per si.

A responsabilização, por exemplo, do administrador de instituição financeira sob intervenção por atos de má administração faz-se independentemente da suspensão da eficácia do ato constitutivo da sociedade. Ela independe, por assim dizer, da autonomia patrimonial da pessoa jurídica da instituição financeira. Tanto faz se a companhia bancária é considerada ou desconsiderada, a má administração é ato imputável ao administrador. É ele o direto responsável, porque administrou mal a sociedade; a obrigação é imputada a ele diretamente, sem o menor entrave, derivado da personalidade jurídica desta.

 

Isso justifica o fato da desconsideração não implicar em liquidação ou dissolução da pessoa jurídica. De sorte que sua personalidade é afastada para aquele caso específico.

A teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica possui duas facetas, a objetiva e a subjetiva. A primeira diz respeito à existência de confusão patrimonial. Essa forma de abuso é muito mais fácil de ser comprovada. Tomemos o exemplo do sócio que utiliza-se de veículos da empresa para seu uso pessoal. Fotos, testemunhas e outras meios de prova conseguem facilmente demonstrar o ilícito.

De mesma facilidade de comprovação não goza a faceta subjetiva. Pois, a fraude e o abuso de direito não são tão facilmente comprovadas, pois “a intenção que o sócio possui em frustrar os interesses do credor deve ser demonstrada” (ASSIS, p.[?], 2008).

Teoria muito discutida é a menor. Para esta, basta que haja inadimplemento para com os credores que a personalidade da pessoa jurídica já será desconsiderada. É perigosa, pois não se fazem relevante os reais motivos para essa insolvência. Sabe-se que o princípio da autonomia patrimonial não é absoluto, mas se mostra adequado que este só seja afastado em circunstâncias excepcionais. Vez que crises financeiras podem abalar a sociedade empresária sem que isso represente fraude, abusos ou até mesmo má-administração.

Exemplos na legislação da utilização da teoria menor encontram-se no art. 28, § 5.°, do CDC, e art. 4.° da Lei 9.605/1998.

Vejamos o que decidiu o Superior Tribunal de Justiça:

A teoria menor da desconsideração, por sua vez, parte de premissas distintas da teoria maior: para a incidência da desconsideração com base na teoria menor, basta a prova de insolvência da pessoa jurídica para o pagamento de suas obrigações, independentemente da existência de desvio de finalidade ou de confusão patrimonial. Para esta teoria, o risco empresarial normal às atividades econômicas não pode ser suportado pelo terceiro que contratou com a pessoa jurídica, mas pelos sócios e/ou administradores desta, ainda que estes demonstrem conduta administrativa proba, isto é, mesmo que não exista qualquer prova capaz de identificar conduta culposa ou dolosa por parte dos sócios e/ou administradores da pessoa jurídica.

Vê-se que a utilização da teoria menor pode ser um pouco prejudicial à existência da sociedade. E que o simples fundamento de não prejudicar direito de terceiros não se faz sempre suficiente para justificar uma atitude tão drástica nos casos em que os sócios ou administrador não deu azo a insolvência, e sim, um fator externo.

3 A DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA INVERSA E O REQUISITO DO DESVIO DE FINALIDADE

 

  1. 1 Análise da possibilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica

 

Como exposto anteriormente, agora cabe analisar o instituto da desconsideração da personalidade jurídica inversa, sendo esta utilizada através de doutrinas e jurisprudências até o presente momento. Vale ressaltar que não há previsão legal para este instituto. Sendo assim, tal instituto é utilizado para uma inversão do patrimônio do devedor para o patrimônio da pessoa jurídica da qual é sócio, tendo como exemplo “cônjuges ardilosos que, antecipando-se ao divórcio, retiram do patrimônio do casal bens que deveriam ser objeto de partilha, alocando-os na pessoa jurídica da qual é sócio, pulverizando assim os bens deslocados”. (FERRIANI, 2015).

A fraude que a desconsideração inversa visa reprimir é o desvio de bens pessoais para a pessoa jurídica com a finalidade de fraudar interesses de credores e terceiros. Dessa forma, o sócio “protege” seus bens particulares da execução de obrigações pessoais, tornadose insolvente. Todavia, a doutrina não é uníssona quanto à aplicabilidade da teoria inversa da desconsideração, em razão da não previsão em lei. Alguns posicionamentos merecem ser trazidos à baila. (SOARES; DINIZ, 2012, p. 18)

 

Lacerda e Sarmento (2013), categorizam o instituto da personalidade jurídica como instrumento que visa ser o mais adequado para garantir aos credores que sofreram prejuízos com o desvio de finalidade de uma determinada pessoa jurídica, que de forma mais objetiva, a teoria coibi fraudes diretas e indiretas  e o “abuso de direito [do sócio, no uso da] pessoa jurídica” (LACERDA; SARAMENTO, 2013). Além da previsão adotada no art. 50 do Código Civil de 2002, que versa sobre a desconsideração da personalidade jurídica, “a legislação pátria prevê hipóteses de responsabilidade dos sócios e administradores pelas obrigações assumidas em nome da sociedade empresária.” (CAMPOS, 2012)

Por sua vez, Fábio Ulhoa (2010), tem um posicionamento no qual considera a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica  seja favorável, uma vez analisando que o sócio ao transferir a titularidade dos bens para a pessoa jurídica, ele deixa de cumprir suas obrigações reais, entretanto, continua no controle dos bens, pois o mesmo tem controle dos bens da pessoa jurídica.

É certo que, em se tratando a pessoa jurídica de uma sociedade, ao sócio é atribuída a participação societária, isto é, quotas ou ações representativas de parcelas do capital social. Essas são, em regra, penhoráveis para garantia do cumprimento das obrigações do seu titular. Quando, porém, a pessoa jurídica reveste forma associativa ou fundacional, ao seu integrante ou instituidor não é atribuído nenhum bem correspondente à respectiva participação na constituição do novo sujeito de direito. (COELHO, 2010, p. 47).

 

É mister anotar que o instituto da personalidade jurídica tem que ser observada com cautela pelo juízo, conforme supracitado no capítulo anterior, e aqui, na aplicação inversa, deverá o juízo verificada da mesma forma, pois se trata de medidas excepcionais. (COELHO, 2013).

Na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, no que tange ao seu Enunciado nº 7, diz que “ só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido”. Já na IV Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que aprova os enunciados ns. 272 a 396, em especial ao enunciado nº 283, pontuando que “É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros”. (JORNADA DE DIREITO CIVIL, 2007 e 2012).

Há diversas críticas sobre o instituto, dentre elas pode-se destacar a de Alfredo de Assis Gonçalves Neto (2010), pontuando que “Não devem ser tomadas como desconsideração, igualmente, as hipóteses em que o mau uso da pessoa jurídica decorre de vício do negócio jurídico, que conduz à aplicação das normas gerais de anulação – ou, mais precisamente, de sua ineficácia (...)” (GONÇALVES NETO, 2010. p. 141). Seguindo a mesma linha de raciocínio, Marlon Tamazette (2009), revela que  “não é razoável admitir a desconsideração inversa com ônus para a sociedade, se é possível satisfazer os credores dos sócios sem esses ônus”, uma vez analisando uma sociedade em que o sócio tem ações em seu nome, e estas podendo ser passíveis de penhora para pagamento das obrigações particulares. (TOMAZETTE, 2009, p. 273).

Por fim, serão apresentados no tópico seguinte os requisitos, conforme art. 50 do Código Civil de 2002, caso em que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica inversa será aplicada quanto aos remédios jurídicos, caso não seja possível reprimir a fraude.

 

 

 

3.2 Aplicabilidade da desconsideração inversa no processo falimentar respaldada no requisito de desvio de finalidade presente no art.50 do código civil de 2002

 

Primeiramente, cabe relembrar o que já foi explanado no capítulo anterior que o Código Civil de 2002, adota a Teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, que é “a teoria mais elaborada, de maior consistência e abstração, que condiciona o afastamento episódico da autonomia patrimonial das pessoas jurídicas à caracterização da manipulação fraudulenta ou abusiva do instituto” (COELHO, 2005, p. 40), no qual exige alguns requisitos especificados em seu art. 50, que:

Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica.

 

A desconsideração da personalidade jurídica será casuística e temporária quando declarada pelo juiz, a requerimento da parte ou do Ministério, tendo em vista que não importa a extinção da pessoa jurídica, como antevisto no Projeto de CC. Quando decretada, seus efeitos serão apenas no caso concreto, pois tais efeitos serão atingidos nos bens patrimoniais dos administradores e sócios. Além disso, a extinção compulsória e definitiva da pessoa jurídica é oferecida por meio da despersonalização, por via judicial. (TOMAZETTE, 2009)

Ademais, conforme Soares e Diniz (2012), esse dispositivo legal, vê-se que a desconsideração da pessoa jurídica só é permitida em caso de abuso de personalidade jurídica, o que demonstra o seu alinhamento aos ideais originários da disregard doctrine. Além disso, o Código Civil previu que o abuso de personalidade pode ser caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, o que atesta a adoção da concepção objetivista da teoria da desconsideração.

Costa Machado dá pertinente interpretação ao artigo, pontuando os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica como:

A desconsideração pode ser aplicada, ainda, no direito de família e das sucessões, em hipóteses como desvio de finalidade, fraude, nas quais o patrimônio do casal foi indevidamente incorporado ao da pessoa jurídica. Decretada a desconsideração, no caso concreto, nos bens impugnados retornam ao patrimônio do casal com a finalidade de partilha inter vivos ou mortis causa.

A desconsideração da personalidade jurídica tem sido amplamente aplicada nos tribunais, cite-se a proferida no RO em MS n. 16.274/SP, rel. Min. Nancy Andrighi, que dispensa o ajuizamento de ação autônoma para que seja aplicada a desconsideração.

O TJSP, no AI n. 7.088.628-1/SP, voto n. 1.903, rel. Des. Galdino Toledo Jr., j. 12.09.2006, v.u., desconsiderou a personalidade jurídica diante da extinção da empresa devedora, de forma regular, havendo confusão entre o patrimônio dela e o dos sócios gestores. Em remissão ao art. 50 do CC, invocou os arts. 47 e 1.011, caput e § 2º, do mesmo Código, que aludem à necessidade de administração do patrimônio da empresa de forma diligente e cuidadosa. (MACHADO, 2013)

 

Diante do exposto, existem dois requisitos fundamentais para a desconsideração da personalidade jurídica inversa no art. 50 do CC/02, o desvio de  finalidade e a confusão patrimonial. Cabe analisar o que foi delimitado e o mais prudente para o momento, no caso, o desvio de finalidade, pois os atos da pessoa jurídica devem estar respaldados nos seus atos constitutivos, de maneira que, o que for além do estabelecido será ato da pessoa natural, e não da pessoa jurídica, logo, o que vai além do mandato contratual, do estabelecido no contrato ou estatuto social, acaba por legitimar a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica. (MESSA, 2014)

Sendo assim, os atos que são realizados na sociedade, deve se adequar ao ambiente e a sua razão de ser, visto que, utilizando a pessoa jurídica para angariar ou projetar atos  não relacionados à verdadeira função social do estabelecimento, ocorre desvio de finalidade, criando uma sanção de responsabilidade individual ou coletiva para aquele ou aqueles que desrespeitaram as normas previstas na sociedade de um modo geral. Ou seja, “o desvio de finalidade tem ampla conotação e sugere uma fuga dos objetivos sociais da pessoa jurídica, deixando um rastro de prejuízo, direto ou indireto, para terceiros ou mesmo para outros sócios da empresa”. (FARIAS, 2009, p. 386)

Maria Helena Diniz, segue o raciocínio pontuando que:

Há uma repressão ao uso indevido da personalidade jurídica, mediante desvio de seus objetivos ou confusão do patrimônio social para a prática de atos abusivos ou ilícitos, retirando-se, por isso a distinção entre bens do sócio e da pessoa jurídica, ordenando que os efeitos patrimoniais relativos a certas obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou dos sócios, recorrendo, assim, à superação da personalidade jurídica, porque os seus bens não bastam para a satisfação daquelas obrigações, visto que a pessoa jurídica não será dissolvida, nem entrará em liquidação. (DINIZ, 2002, p. 260)

Por fim, outras hipóteses podem ser mencionadas quanto ao desvio de finalidade. Uma delas é quanto ao gestor da pessoa jurídica que gera obrigações para angariar meios financeiros, sendo estas desnecessárias. Outra forma seria a bem como menciona Eneias Coelho 2013,  Seria o caso de uma “sociedade cujo objeto social seja a comercialização de gêneros alimentícios, no entanto, seu gestor passar a adquirir terrenos para edificação, sem possuir suporte financeiro para arcar com as obrigações assumidas.” Assim, se faz nitidamente o desvio de finalidade, uma vez que a pessoa jurídica na pessoa do sócio explora atividades econômicas na qual não tem uma grandiosa necessidade para própria pessoa jurídica, e sim para o sócio ou administrador, particularmente.

 

CONCLUSÃO

 

 

Estudados os conceitos e finalidades a respeito da personalidade jurídica e sua desconsideração, sustentando seus requisitos previstos no artigo 50 do Código Civil de 2002, e seus Enunciado do Direito Civil da Justiça Federal nº 283, do Centro de Estudos Judiciários determina que "É cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada “inversa” para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros".

O Enunciado n. 283 do Conselho da Justiça Federal reconhece sua possibilidade em decorrência teleológica do art. 50 do Código Civil. O presente trabalho visa analisar especificamente o requisito da Confusão Patrimonial e sua aplicação na Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica. A pesquisa ora suscitada é classificada, em exploratória e tem por opção metodológica a pesquisa bibliográfica e jurisprudencial.

Sendo assim, apesar de não está prevista a desconsideração da personalidade jurídica, esta não se torna uma insegurança jurídica e nem ilegal, uma vez que a razão da teoria da desconsideração, poderá o juiz imputar aos sócio/administradores do ato ilícito, a responsabilidade pelas circunstâncias que envolveram abuso e fraude, tendo como finalidade a proteção da personalidade da pessoa jurídica.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

REFERÊNCIAS

 

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