A DENTADURA

Por Henrique Araújo | 11/09/2010 | Literatura

A DENTADURA

Andando daqui, andando pra lá, Manuel não pára nem lá nem cá. Grita, xinga, berra, fala mal dos outros, não liga pra nada. Está sempre a resmungar. Mexe com um, mexe com outro, jamais gostou de trabalhar. Tudo pra ele anda ruim, está sempre duro. Segundo ele, todo mundo tem que lhe dar alguma coisa, sendo parente ou não.

Pra complicar as coisas, Manuel gosta de tomar umas caninhas. Toma só das boas. Cerveja faz crescer a barriga. Vinho dá dor de cabeça. Uísque é caro demais. Vai uma biriba mesmo.

Domingo todo mundo assiste televisão. Manuel não. Uma cambada de vidiotas o dia inteiro com a bunda no sofá vendo besta falar. É uma pouca vergonha. O marido não fala com a mulher, a filha não fala com o pai, um assiste novela, outro olha o esporte, aquele só quer notícias, outro se mete em política da política que nada entende, outro só quer polícia, se danou: com amigos da onça, não. De maneira alguma. Isto não serve pro Manuel.

O domingo não passa. E o jornal? Que tal o jornal? Manuel pega um exemplar. Folheia de lá pra cá, daqui pra lá. Notícias? Que calamidade! Na China morte de estudantes, na Rússia - greve, mas até lá? Na Polônia o Solidariedade venceu e o presidente americano vai lá - milagre. Na Inglaterra um Boeing cai matando até os urubus que passavam por perto. No Brasil? Deus do céu! Quem é que entende isto aqui? Virou uma verdadeira baderna. É greve pra todo lado, roubos e assassinatos, putas e pederastas, pra não falar nos corruptos e o diabo a quatro. E o esporte?

O Brasil passeia na Europa. Que futebolzinho! Foi de goleada. Saiu invicto. Perdeu todas: pra Suécia, pra Dinamarca e até pra Suíça. Que calamidade! Chega de esporte. O Manuel não quer nada com o esporte. Só restam os classificados. Mas que jornalecos são estes: 90% de classificados. Não. Manuel não quer comprar nem vender nada. Uma porque não tem, outra porque não pode. Chega de jornal.

Manuel senta no sofá e começa a cochilar. A bunda esquenta demais. Que merda! Por que fizeram este sofá tão quente assim? Fica impaciente. Se agita. E a cidade? Que tal dar uma voltinha na cidade? De ônibus, é claro. Dizem que, em não se fazendo nada, o melhor é andar por aí. E assim o Manuel sai.

O jegue deste ônibus demora duas horas. Vagabundos. Enquanto não queimar um ou dois destes, não se apressam. Afinal estão ou não trabalhando? Manuel gasta uma nota com a passagem do ônibus. A única que tinha. Uma só moeda. E a cidade é um colosso. Ruas tortuosas, casas caindo, carros que se chocam. E os buracos? Tem buraco quase do tamanho do ônibus. E não é um só. Há milhões deles. Manuel se assusta. É uma cratera só. Há buracos de todos as idades: de 5 e 10 anos e até os que já são avós, mas tem os mais recentes: de 6 meses a um ano. São ainda bebês, porém são muitos. Por todas as ruas que Manuel vai, aí estão os buracos, todos de boca arreganhadas pro ar, sorrindo. De vez em quando fazem tombar um carrinho, ou quebrar a perna de uma velhinha. Buracos é a marca registrada dos políticos. Coitado do Manuel! Não sabia mais se andava de ônibus ou no lombo de um burro. Pára de ônibus.

Um barzinho? Pega bem. O Manuel se adentra no bar. Quanta bebida! Mas o Manuel não tem dinheiro. Não importa. Convém sentar por aí como quem não quer nada. Daqui a pouco deve chegar um amigo e o Manuel serra um traguinho dele. Mas um amigo não chega. Vem um montão. Papo vai, papo vem, Manuel começa a beber. Bebe uma, bebe duas, três e... perde a conta. Começa a conversa fiada, fala besteira, canta alto demais. O engraçado mesmo é que Manuel gosta de contar piadas, cada uma mais sem graça que a outra. Todo mundo já conhece Manuel. Não é má pessoa.

Meia noite. Quê! Tudo isto? Mas parece que foi agora mesmo. Manuel tem que voltar. Amanhã é segunda-feira. Manuel tem que trabalhar. Sai errando do bar e vai para casa. Manuel está tonto? Dá três passos pra frente e dois pra trás. É perto a casa. São apenas três quilômetros. Está escuro, mas o Manuel não está vendo nada mesmo. Vai firme em zigue-zague pela rua. Que diabo! Por que fizeram esta rua tão estreita? Manuel segue com calma. Choveu muito, a rua é esburacada. Não tem luz por ali. Manuel tem que desviar das possas d?água. Aquele lugar está bem limpo. O Manuel desvia por lá. Que azar! Limpo porque era a poça d?água. E as cobras? Têm muitas na rua. Manuel mora um pouco afastado da cidade. Caminha o Manuel. Aquela ali é a casa do João. A casa do João já estava avisada: quando o Manuel passasse por ali, era pra ela sair da estrada. Bom amigo! Enquanto agradecia a casa do João pela gentileza, topa de cara e tudo com a casa do Dito. Mas então a casa do Dito não estava sabendo que o Manuel iria passar por ali? Que malcriada! E ainda tenta passar por cima dele.

Opa! Manuel dá um salto enorme: uma cobra. Cobra nada, era apenas um cipó. Lá vem a casa do Nestório (melhor desviar: ninguém sabe as intenções dela). Cachorro? Se a coisa estava preta, agora enegreceu. Manuel corre, pula, salta daqui pra acolá e o cachorro atrás. Morde todo o traseiro dele.

Em casa. Desta vez chegou rápido. Entra pela cozinha, a porta está somente encostada. Todo molhado, Manuel tira a roupa, entra no banheiro, toma um banho. Olha-se no espelho. O mundo todo está rodando. Prepara-se para deitar, mas ele sabe que a velha, sua avó, guarda um copo de pinga no armário pra tomar de manhã ao acordar. Ele vai lá de mansinho e vira o copo. Que pinga estranha! Percebe, mas engole tudo. Retira o copo da boca e grita desesperadamente: já bebi tanto na vida, mas de chegar a cair os dentes ainda não. Mas Manuel: então você não sabe que a velha, antes de se deitar, coloca pinga num copo e a dentadura no outro? Só então o Manuel descobre. Vai dormir e até se esquece do outro copo.