A Cultura Popular no Campo da Historiografia
Por Luciano Agra | 23/11/2008 | HistóriaRESUMO: É possível definir o conceito de história cultural como sendo uma tendência historiográfica contemporânea que propõe uma nova forma de interrogar a realidade?Este artigo contextualiza, intertextualiza, esclarece e discutir algumas reflexões relacionadas à modalidade da História Cultural nos estudos microanalíticos e macroanalíticos, enfatizando mais especificamente a perspectiva da História Cultural proposta por Edward P. Thompson, Eric J Hobsbawm, Carlo Ginzburg, Roger Chartier, Michel de Certeau, Mikhail Bakhtin e entre outros. Discute, ainda, diversos conceitos envolvidos na perspectiva da História Cultural dessa prática historiográfica. O artigo remete a obra recentemente publicada pelo autor deste texto, cujo principal objetivo foi o de elaborar uma visão panorâmica das diversas modalidades da História nos dias de hoje. PALAVRAS-CHAVE: História Cultural – Historiografia – Escrita da História.
Existem inúmeras abordagens e maneiras de compreender o popular na historiografia contemporânea. Dentre incontáveis possibilidades, observemos aqui como alguns importantes autores do debate acadêmico formularam suas idéias sobre cultura popular. Nos livros de Peter Burke, Carlo Ginzburg, Mikhail Bakhtin, Michel de Certeau e Roger Chartier variam as perspectivas e acepções, entretanto, é comum em todos eles a observação de que é delicada e arriscada a tarefa de definir o conceito de cultura popular. Cultura popular seria então um conjunto de práticas culturais levadas a cabo pelos extratos inferiores, pelas camadas mais baixas de uma determinada sociedade.O termo cultura nos parece, concordando com Peter Burke, ainda mais controverso. Burke nos fala de uma ampliação do conceito em tempos mais ou menos recentes. Escreve o historiador que até o século XVIII:
"O termo cultura tendia a referir-se à arte, literatura e música (...) hoje contudo seguindo o exemplo dos antropólogos, os historiadores e outros usam o termo "cultura" muito mais amplamente, para referir-se a quase tudo que pode ser apreendido em uma dada sociedade, como comer, beber, andar, falar, silenciar e assim por diante." (BURKE,1989, p. 25).
É nesse mesmo ensaio que Peter Burke, em seu livro "Cultura Popular na Idade Moderna", apresenta toda a complexidade do termo "cultura popular", que ele define num primeiro momento como sendo aquela não oficial, a da "não-elite", a das classes subalternas. Burke coloca a necessidade de se pensar nos artesãos e camponeses dos inícios da Europa Moderna a partir de um mundo totalmente diferente do atual, despido de conceitos e valores contemporâneos; conselho esse, aliás, não menos pertinente ao tratamento da sociedade colonial. É evidente que ele apresenta sua hipótese, a de que a cultura popular, nos inícios do período moderno, não era estranha à minoria culta da ocidentalidade européia, essa a tinha como uma espécie de segunda tradição. Em outras palavras, tanto a maioria da população, quanto sua pequena parcela erudita, compartilhavam de uma cultura popular comum. Percebe-se por essa leitura que até pelo menos a primeira metade do século XVII, as elites participavam das festas de rua e carnaval, juntamente com os grupos menos abastados. Isto significa dizer que ao longo dos tempos modernos, a renascença, as reformas religiosas, a revolução científica e a ilustração fizeram com que a cultura erudita se transformasse, ao passo que entre pequenas e grandes tradições, uma imensa distância foi estabelecida.
Em suma, a cultura popular tradicional passou aos olhos da minoria letrada como algo tão diferente, a ponto de ser exótico, e por isso atraente. No século XIX, essa cultura tradicional se transforma em folclore. Na realidade, as elites intelectuais redescobrem a cultura popular no século XIX, a partir da perspectiva do folclore. Como causa, ou conseqüência de tais transformações, Burke afirma que a reforma Tridentina, assim como as reformas protestantes de um modo geral, empreenderam um esforço de reformulação da religiosidade popular na Europa a partir do século XVI, visando moldar suas extravagâncias carnavalescas e exterioridades.
No que diz respeito, Burke entende que o significado do conceito está em função da hierarquização da sociedade em classes, entre a classe da elite e a classe da não-elite. Assim, a cultura popular seria como uma cultura não oficial, como a cultura da não-elite, das classes subalternas; do outro lado, a cultura oficial pertenceria à elite. Então, para o autor, tal definição chamaria a necessidade de analisar a sociedade, decompondo-a em classes, para, então, entender quem é o "povo comum" detentor da cultura popular. Apesar de manifestar que é vaga a fronteira entre o que se chama de cultura de elite e de cultura popular, e que as duas culturas, em verdade, não permaneceriam estanques, mas em interação, Burke deixa nas entrelinhas que enxerga a cultura basicamente separada em blocos: o bloco da cultura da elite e o bloco da cultura do povo.
Esta abrangência do conceito de cultura mencionado por Burke, não parece gozar dos louros da unanimidade. É possível perceber nessa conceituação uma tendência culturalista, que opondo praticamente, cultura a natureza, faz da primeira uma ocorrência universal, ou seja, todos os povos possuem cultura, e podemos ainda pensar que como desdobramento desse raciocínio, se coloca a questão do relativismo cultural, ou em outras palavras: as culturas são únicas e não passíveis de serem comparadas valorativamente.Dessa maneira, o autor compreende a cultura como produto de uma situação de classe, de modo que a separação da cultura entre elite e povo seria um rígido reflexo da hierarquia social. Contrariando o que ele mesmo denominou de "concepção aristocrática de cultura".
Essa visão sobre a cultura popular, segundo Burke, tornou-se bastante aceita e rapidamente os setores cultos da sociedade passaram a se interessar por coleções de poesia popular, contos populares e música popular. Esse movimento foi denominado pelo historiador inglês como "a descoberta do povo", e ele via uma série de razões para que isso estivesse acontecendo naquele momento histórico. Eram elas: razões estéticas, que se referiam a uma insubordinação contra o artificial na arte culta e conseqüente valorização das formas simples; razões intelectuais, que tinham a ver com uma postura hostil para com o iluminismo, enquanto pensamento valorizador da razão em detrimento do sentimento e das emoções. Havia também ainda com relação ao aspecto intelectual um desprezo para com as regras clássicas da dramaturgia, herdadas do pensamento aristotélico.
Burke lembra, no entanto, que algumas edições de coleções populares de canções, foram largamente utilizadas com o fito de produzir sentimentos nacionalistas. Foi o caso da publicação de uma coleção intitulada Wunderhorn, publicada concomitantemente a invasão napoleônica na Alemanha. Havia a pretensão expressa dos editores em transformar aquela coleção em estímulo para a consciência nacional alemã. Houve também a recomendação de um líder prussiano, de que aquela publicação era um auxiliar na luta contra o invasor.
Podemos entender a partir do que vimos até aqui, que a cultura popular pôde servir de elemento constituinte básico para a formação de uma unidade nacional, oferecendo a esta uma memória a ser compartilhada e símbolos capazes de produzir um eficiente nível de coesão social. Por outro ela também pôde ser um empecilho, no sentido de que a constituição do estado - nação, se consolidou se sobrepondo às unidades culturais existentes tentando homogeneizá-las, transformando-as em parte dessa nova estrutura nacional. Nesse sentido podemos perceber que a cultura popular serviu, contraditoriamente, como resistência cultural ao processo de unificação nacional. Esse talvez seja o caso de determinadas práticas culturais levadas a cabo pelas "nações sem estado" , como catalães e bascos na Espanha, que acabam por se constituir como enclaves dentro da estrutura hegemônica do estado nacional espanhol.
Vimos anteriormente como românticos e iluministas se configuraram como par antitético quanto à abordagem da questão da cultura. No que diz respeito ao tema do popular não será diferente. Os iluministas valendo-se de concepções herdadas de períodos anteriores viam na figura do povo uma realidade ambígua. Ele representava a legitimação do governo civil nos ideais republicanos e dava corpo à democracia por um lado, e por outro representava ameaça a estabilidade política com seu ímpeto anárquico e desestabilizador. O programa iluminista deixava clara a sua contradição, no que tange a presença do povo no novo cenário político que iria surgir a partir do final do século XVIII.
Do ponto de vista dos estudos históricos, além do historiador inglês Peter Burke, gostaríamos de citar o italiano Carlo Ginzburg. Ginzburg faz na introdução do seu já consagrado "O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela inquisição", um exame crítico de vários autores e obras que versaram sobre o tema da cultura popular. Para esse historiador os desníveis culturais existentes nas ditas sociedades civilizadas foi o pressuposto necessário para o surgimento de disciplinas tais quais: Folclore, Antropologia social, História das Tradições Populares e outras. No entanto, o uso da palavra cultura no intuito de descrever crenças, atitudes e modos de comportamentos próprios das classes subalternas para assim chegar em um conceito histórico antropológico, foi de ocorrência relativamente tardia e emergiu do âmbito da Antropologia Cultural. Através de um movimento duplo reconhece-se como cultura tanto os fazeres de povos "exóticos", quanto às práticas das classes subalternas dos povos civilizados. Assim ele se expressa que:
"Só através do conceito de "cultura primitiva" é que se chegou de fato a reconhecer que aqueles indivíduos outrora definidos de forma paternalista como "camadas inferiores dos povos civilizados" possuíam cultura. A consciência pesada do colonialismo se uniu assim à consciência pesada da opressão de classe." (GINZBURG, 1987, p. 17).
Neste mesmo ensaio Ginzburg se defronta com a questão das provas, que foi por esse duplo movimento de descoberta ou de valorização do outro, ainda que de forma "paternalista" e através de uma "consciência pesada", que se podem superar as antigas concepções de folclore como simples coleções de curiosidades, ou concepções que viam as práticas culturais das camadas subalternas como sombras das ruínas da cultura erudita. Ginzburg constata que só recentemente a história vai se aproximar da temática do popular. Isso se deveu em seu entendimento a duas motivações, a saber: uma ideológica e outra metodológica. A primeira diz respeito a certa concepção elitista que considera as "crenças e idéias originais" apenas e exclusivamente originadas no âmbito das classes superiores, e que por um processo de difusão essas idéias são transmitidas às classes subalternas. Essa transmissão ocorre, por essa visão, com tais perdas e deformações, que a descredibiliza a ser estudada seriamente.
Outro aspecto metodológico fica por conta de que as culturas das classes subalternas são predominantemente orais, e mais ainda se recuarmos em séculos passados. Diante da impossibilidade de entrevistar camponeses do século XV, só restaria ao historiador se valer de fontes escritas por indivíduos que não pertenciam aos quadros dessas classes, e que muitas vezes se encontravam em franca oposição a elas. Inevitavelmente o historiador terá em mãos aspectos da cultura popular mediado por filtros e intermediários. A partir dessa constatação elenca uma série de iniciativas que tentam superar essa problemática metodológica, e vemos exemplo disso no seu próprio trabalho em torno dos processos sofridos por um moleiro do século XVI na região do Friuli, na Itália. Para esse trabalho foram utilizados exclusivamente como fonte os documentos da inquisição que era então, a autora do processo. Carlo Ginzburg escreveu "O queijo e os vermes" para tratar das idéias de um moleiro que foi perseguido e queimado pela Inquisição no contexto do desenvolvimento da imprensa e da Reforma. Neste livro, o autor mostra como o moleiro alfabetizado foi acusado pelos inquisidores de ter idéias impróprias; tais idéias, argumentou Ginzburg, seriam provenientes das assimilações que o moleiro fazia em suas leituras.
Nesta passagem, nota-se claramente, diferente da maneira como entende Burke, Ginzburg observa que a cultura não é estanque e estática. Ao contrário, a cultura teria o caráter dinâmico e possuiria a faculdade de "circular" entre os setores da sociedade. O autor italiano defende, também, que é possível e necessário trabalhar com a produção cultural que não é proveniente das classes superiores. Para ele, existe uma visão distorcida que é resultante de uma "desconfiança" ideológica a qual prega que a cultura superior mecanicamente "retrocederia" às classes subalternas, "vulgarizando-se", e que, desse processo, a cultura erudita sairia deformada ou deteriorada, ou seja, de acordo com Ginzburg, a cultura não deveria ser entendida como um artefato exclusivo de uma classe superior, visto que a categoria popular não se definiria pela classe social dentro da qual os textos seriam produzidos, mas pelo uso que se faz deles, pelo seu modo de assimilação.
Segundo Ginzburg a cultura popular se define antes de tudo pela sua oposição à cultura letrada em oficial das classes dominantes, tendo ele uma recusa dos conceitos vagos de mentalidade, propondo recuperar os estudos sobre os conflitos de classes numa dimensão sociocultural globalizante. Assim, ele vai trabalhar as oposições culturais das classes. Para tanto, Ginzburg apresenta uma história, no qual estuda a circularidade cultural, partindo de um personagem da Idade Média por nome de Menocchio que alugava moinhos, tendo em vista, ele pertencia a "Classe baixa" da camada social e que, por ter idéias diferentes de sua época principalmente diante da Igreja Católica, foi condenado pelo Santo ofício, ou seja, pela Santa Inquisição.
Sendo assim, o que Ginzburg quis mostrar com os seus estudos partindo do conceito de Circularidade cultural é que, é possível existir uma pluralidade de pensamentos diferentes em qualquer determinada época da história. A exemplo foi o próprio Menocchio que pensava diferente da Igreja católica. Contudo quebra com a idéia de existir dentro de Ginzburg uma sociedade de pensamentos homogêneos mesmo que seja sobre "força de pressão", onde ele parte do próprio conflito de classes para entender os diferentes modelos de história cultural onde cada um passa filtrar através de valores culturais de cada um indivíduo social. Portanto, Carlo Ginzburg propõe o conflito de circularidade, noções somente implícita em Bakhtin que se preocupava mais com as oposições do que com as interpretações culturais entre as classes, no qual em Menocchio se pode percebe os fragmentos da cultura livres da misturada com ingredientes da tradição oral.
Podemos perceber, então, que o conceito de circularidade na obra de Ginzburg obedece à maneira como Mikhail Bakhtin escreveu sobre o riso e a cultura popular no contexto de Rabelais, e sobre as leituras que fizeram dele nos anos, décadas e séculos seguintes. Circularidade, em ambos autores, designa o movimento de infiltração dos produtos culturais entre os setores hierárquicos da sociedade, ou seja, o conceito permite verificar que os discursos dos setores representativos da cultura erudita e letrada podem permear e moldar as práticas de outros grupos sociais iletrados; e que, da mesma forma, mas em sentido inverso, os setores subalternos atravessam a cultura hegemônica com as praticas discursivas que elaboram, fundadas na oralidade, e que, desse modo, também exercem influência nos setores chamados de portadores da cultura erudita. O conceito de circularidade, em suma, diz respeito à constante permeabilidade cultural dentro da sociedade hierarquizada.
Mikhail Bakhtin, em seu livro "A Cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais", Bakhtin tenta enfocar o perfil de como a cultura popular foi direcionada por um intelectual do porte de Rabelais. Para Bakhtin, eram os membros das elites que conseguiam captar os costumes das classes populares os elementos que também lhes eram comuns, ou seja, ele analisa a cultura medieval e na época do Renascimento através da obra de Rabelais, que à época do Renascimento escreveu sobre os costumes da sociedade em que viviam. Segundo Bakhtin as classes subalternas possuíam uma visão do mundo que se contrapunha ao dogmatismo e a seriedade cultural das classes dominantes, sobretudo de forma cômica ou carnavalesca. Era a carnavalização dos valores da elite medieval. Mas mesmo assim, essa elite era a única capaz de criar modelos a serem seguidos pela plebe "rude e ignara", formando uma mentalidade coletiva e interclassista, que, de certa forma não sofria a ação das massas a não ser pela sua inversão carnavalizante. Influenciado por Mikhail Bakhtin, Carlo Ginzburg, também de origem marxista, ampliará o conceito de cultura popular para uma discussão sobre o processo de circularidade cultural.
É importante chamar atenção para o fato de que a cultura erudita costuma ser muito valorizada nos estudos de períodos históricos como o medievo e o Renascimento. Ainda discorrendo sobre isto, Bakhtin coloca que a cultura popular é acessível ao maior número de pessoas e nem sempre tem igual tratamento, pois privilegia-se a história oficial e das elites. Neste livro, Bakhtin trabalha com o universo da cultura popular da Idade Média e do Renascimento retratado por François Rabelais, autor que viveu durante o Renascimento, crítico dos costumes da sociedade e da burguesia nascente."Rabelais foi o grande porta-voz do riso carnavalesco popular na literatura mundial. Sua obra permite-nos penetrar na natureza complexa e profunda desse riso" (BAKHTIN, 1999, p. 16). É nesse ponto que o baixo corporal, o corpo grotesco, o riso, o sério-cômico, a imagem do banquete, a comida, a bebida, o corpo, a sexualidade, enfim, o elemento corporal e material caracterizam o universo rabelaisiano.
Outro aspecto importante acerca da memória é o carnaval na Idade Média e no Renascimento era uma festa popular onde se invertia o que era tido como oficial e predominava o hiperbólico e o grotesco. É certo que, o carnaval era uma festa para ser vivida pelo povo - e não assistida por ele. Desta maneira, pode-se entender, que, o palco destruiria o carnaval, pois, era o povo que representava, que invertia, que fazia a festa, o espetáculo. Vale lembrar que o riso carnavalesco, riso festivo que inclui aquele que ri dentro de um mundo em evolução, é aquele que, com a morte, renasce, ressuscita, renova-se. A visão carnavalesca do mundo é dialética, marxista, transita entre o oficial e o "não-oficial", admite tensões que levam a uma nova vida, a um movimento cíclico que faz renascer.
Ressalte-se, ainda, que a carnavalização, outra via de acesso ao real, que pressupunha a predominância do "não-oficial", e inversão de valores que era, desfazia a hierarquia da sociedade feudal medieval e de transição, do feudalismo para o capitalismo, do Renascimento. É preciso destacar ainda que a festa carnavalesca, além das diferenças sociais que eram temporariamente abolidas, papéis sociais e de gênero também eram trocados, era o universo que sofria inversão, morte e que se renovava, renascendo para um novo tempo. Contextualizando e intertextualizando Bakhtin e sua análise da cultura popular da Idade Média e do Renascimento a partir da obra de Rabelais é mergulhar em um universo que, embora quase esquecido, permite-nos penetrar no imaginário e na polifonia do discurso que permeou a experiência humana de outros tempos. Embora Chartier discorda de inúmeros aspectos da história das mentalidades, a exemplo de seu apego demasiado à longa duração, do quantitativismo do viés psicologizantes.
Valorizar, portanto o dimensionamento da cultura em termos de classes sociais. Desde que não se procure delimitar as classes em qualquer âmbito externo ao da produção e consumo culturais. Assim, por Chartier se afastar não só das mentalidades como da tradição francesa da história social, que para ele essa "tradição francesa" é a tirania do social, ele vai sugerir e propor um conceito de cultura enquanto práticas nos estudos a partir da categoria da Representação e apropriação.Chartier faz para a produção de uma história cultural. A primeira delas é a noção de apropriação, tomada de empréstimo de Michel de Certeau para definir o consumo cultural como uma operação de produção que embora não fabrique nenhum objeto, assinala a sua presença a partir da maneiras de utilizar os produtos que lhes são impostos. As práticas de apropriação são o contraponto às operações que visam disciplinar e regular o consumo cultural. A segunda noção trabalhada por Chartier é a de representação. É uma noção que ele lança mão para designar o modo pelo qual em diferentes lugares e momentos uma determinada realidade é construída, pensada, dada a ler por diferentes grupos sociais. A construção das identidades sociais seria o resultado de uma relação de força entre as representações impostas por aqueles que têm poder de classificar e de nomear e a definição, submetida ou resistente, que cada comunidade produz de si mesma.
Em linhas gerais são esses os contornos mais gerais da história cultural que passam a orientar os estudos relativos à história da leitura. Na representação, segundo Chartier é pensado de maneira que se passa permitir "ver uma coisa ausente", quer como exibição de uma presença, é o conceito que o autor considera superior ao das modalidades da relação com o mundo social, em que nessas modalidades ele mostra como se deve trabalhar a história cultural através das delimitações e classificações das múltiplas configurações intelectuais, através das quais a realidade é contraditoriamente construída pelos diferentes grupos sociais. Contudo para Chartier a noção de representação é vista como a "pedra angular" da Nova História Cultural, tendo ele um conceito de "apropriação" que tem como objeto é de concentrar uma história social das interpretações remetidas para as suas determinações fundamentais, que são institucionais e até mesmos culturais. Tendo Chartier com isso de tentar livrar a história cultural de toda e qualquer conceituação esquemática, e isto, sem cair na determinação interclassista das mentalidades.
Sendo assim o conceito de representação de Chartier é de encontrar através de seus conceitos o social que só faz sentido nas práticas culturais e as classes e grupos só adquirem alguma identidade nas configurações intelectuais que constroem nos símbolos de uma realidade contraditória representada. Assim sendo, a História Cultural pode e deve servir-se aos conceitos de antropologia do que a sociologia, pois estes incidem justamente sobre o significado que os acontecimentos sociais que têm, enquanto isso, aqueles que se preocupam com as representações sociais e culturais do seres individuais ou até mesmo das coletividades que o fazem. Dando ênfase a isto, podemos perceber que alguns momentos a História Cultural pode e deve ser equivocada com a História Social, e a principal diferença entre ambas é que a História Social, mesmo quando trata-se de experiências específicas(como lembra muito bem no caso da Formação da Classe Operária Inglesa, com Edward P. Thompson), se preocupaem saber revelar como a sociedade se apropria das relações econômicas e sociais, enquanto que a História cultural se ocupa de ver como essas representações(por exemplo, Roger Chartier transformam-se em comportamentos sociais ou tradições culturais.
Com tal afirmação, Edward P. Thompson, em "A Formação da Classe Operária Inglesa", estudou o processo de fazer-se da classe trabalhadora na Inglaterra. Os trabalhadores antes de serem operários, reagiram para se manterem artesãos. Para ele, neste processo de transformação econômica, a classe trabalhadora estava em luta, querendo reagir à implementação do regime capitalista. Os tecelões e artesãos aproximaram-se por meio dos costumes, das tradições e dos valores que tinham em comum e reagiram coletivamente contra o trabalho assalariado. Para Thompson, é discutível a idéia de que foram os operários que formaram o verdadeiro núcleo do qual o movimento trabalhista retirou suas idéias, organização e liderança. Para ele, em muitas cidades inglesas, isso foi formado por sapateiros, tecelões, seleiros, livreiros, impressores, pedreiros e pequenos comerciantes. Como comenta Thompson que:"No princípio da década de 1830, os tecelões manuais do algodão superavam todos os homens e mulheres empregados nas fiações e tecelagens industriais de algodão, lã e seda somados" (THOMPSON, 1987b, p. 15).
Por volta entre 1780 à 1832 já haveria a formação da classe operária, por conta da consciência de uma identidade de interesses entre esses diferentes grupos de trabalhadores e por haver uma crescente organização política e industrial. É dessa forma, que a consciência da identidade de interesses entre os trabalhadores das diferentes profissões somente existia de forma fragmentária na Inglaterra de 1780, mas em 1832 já podia ser sentida em todo o país, revelando assim, segundo o autor, a formação da classe operária inglesa. Diz ele que: "A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus" (THOMPSON, 1987a, p. 10).
Pode-se vislumbrar, portanto, queThompson entende a formação de uma classe operária no período anterior ao cartismo e durante este movimento, porque ele não está preocupado com a situação madura da classe operária, nem com a forma como ela é percebida pelas outras classes. Segundo ele, a classe operária acontece exatamente quando os trabalhadores se juntam para lutar contra próprio estabelecimento de uma prática de trabalho inovadora, o trabalho assalariado. Assim sendo "O exame desse período ultrapassa os limites deste estudo, levando-nos a uma época em que a classe operária não se encontrava mais em seu fazer-se, já estando feita (em sua forma cartista)" (THOMPSON, 1987c, p. 323).
Diferente de Thompson, para Eric J. Hobsbawm, em "O Fazer-se da classe operária, 1870-1914", é possível delimitar historicamente a época em que as classes trabalhadoras transformaram-se na classe operária como sendo de 1870 a 1914. Veremos sob quais circunstâncias, segundo esse autor, as classes trabalhadoras passaram de substantivo plural para singular nessa época. Outra observação importante é que Thompson e Hobsbawm pesquisaram-se sobre a mesma questão, dizendo o seguinte: quando e como as classes trabalhadoras transformaram-se em classe operária? Para ambos essa transformação é um fenômeno histórico que ocorreu na sociedade inglesa, mas enquanto para Thompson a classe operária se formou de 1780 a 1832, para Hobsbawm isso somente ocorreu bem mais tarde, de 1870 a 1914. Dessa forma, há entre eles uma discordância no aspecto temporal que, como será aqui retratado, tem por trás uma interessante diferença teórica.Como Hobsbawm está preocupado não somente com a forma como a classe operária se vê, mas também com a forma como ela é vista pelos demais atores sociais, para ele "a classe trabalhadora não estará "feita" até muito depois do final do livro de Thompson" (HOBSBAWM, 1987, p. 275). Thompson aponta que: "O fazer-se da classe operária é um fato tanto da história política e cultural quanto da econômica. Ela não foi gerada espontaneamente pelo sistema fabril" (THOMPSON, 1987b, p. 17).Concluímos que as teorias de Thompson e Hobsbawm a respeito da época e das circunstâncias em que as classes trabalhadoras inglesas transformaram-se em classe operária.
Retornando ao pensamento de Roger Chartier veremos que ele se depara ainda com os problemas, ou seja, critica esse tipo de "bifurcação cultural" entre classes sociais argumentando que, sobretudo quando se trata de textos ou palavras, a existência das normas referentes à hierarquia social não significa que os indivíduos estivessem submetidos totalmente. Ou seja, tais normas não teriam tido eficiência absoluta na prática. "É preciso, ao contrário, postular que existe um espaço entre a norma e o vivido, entre a injunção e a prática, entre o sentido visado e o sentido produzido, um espaço onde podem insinuar-se reformulações e deturpações" (CHARTIER, 1995, p. 182).
Analisamos agora parte do artigo em "Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico", Roger Chartier faz suas próprias teorizações acerca do tema da cultura popular. Ele inicia suas análises de uma forma um tanto desconcertante, quando já na primeira frase afirma que a cultura popular é uma categorização erudita. Ao mesmo tempo em que a afirmação é óbvia, ela explicita o que muitas vezes se encontra em estado latente, como possibilidade, mas não devidamente claro. Para além de enunciar as clivagens sociais, ela também explicita o poder de determinados agentes ou grupos, de nomear e definir outros grupos. Chartier lembra que os realizadores das práticas nomeadas como populares não costumam se definir como tal, e nós aqui acrescentamos que isso só ocorre de maneira reflexa, como resultado da incorporação, por parte dos setores subalternos, de valores e conceitos oriundos dos setores hegemônicos da sociedade. Nesse momento a fina percepção advinda da prática do homem do povo, parecia ir ao encontro do historiador Roger Chartier quando afirma em seu artigo "Cultura popular: revisitando um conceito historiográfico", o que não podemos enfatizar:
"...considerar o leque das práticas culturais como um sistema neutro de diferenças, como um conjunto de práticas diversas, porém equivalentes. Adotar tal perspectiva significaria esquecer que tanto os bens simbólicos como as práticas culturais continuam sendo objetos de lutas sociais onde estão em jogo sua classificação, sua hierarquização, sua consagração (ou, ao contrário, sua desqualificação)." (CHARTIER,1995, p. 07)
Além disso, Chartier acredita que é inútil querer identificar a cultura popular através da distribuição supostamente específica de certo objetos ou modelos culturais entre setores da sociedade. Para ele, o que importa é a forma de apropriação da cultura por indivíduos ou grupos. Em outras palavras, os estudos da área de história e cultura deveriam tratar de apreender as formas históricas de apropriação dos textos, dos códigos e dos modelos compartilhados. Assim, o autor defende que o popular não está contido em conjuntos de elementos sociais que bastaria identificar, repertoriar e descrever. O popular qualificaria, em verdade, um tipo de relação e um modo de usar os objetos ou normas que circulam na sociedade. Desse modo, falar das formas de apropriação significaria tratar das formas de recepção, de compreensão e de manipulação. Logo, não há passividade no consumo de textos. Nesse sentido, podemos perceber que ao contrário, há uma produção:
"considerar a leitura como um acto concreto requer que qualquer processo de construção de sentido, logo de interpretação, seja encarado como estando situado no cruzamento entre, por um lado, leitores dotados de competências específicas, identificados pelas suas posições e disposições, caracterizados pela sua prática do ler, e, por outro, textos cujo significado se encontra sempre dependente dos dispositivos discursivos e formais – chamemos-lhes 'tipográficos' no caso dos textos impressos – que são seus." (CHARTIER, 1990, p. 25).
Daí que, para dar atenção aos processos e condições de produção de sentido, argumenta Chartier, é necessário esclarecer que não existem categorias invariantes, que nem as idéias e nem as interpretações são desencarnadas, e que, em última solicitação, as categorias devem ser pensadas em função da descontinuidade das circularidades históricas. Compreender o conceito de cultura popular, para Chartier significa situar, de um lado, os mecanismos de dominação simbólica que qualificam os modos de consumo dos dominados como detentores de uma cultura inferior ou ilegítima, e, de outro, "as lógicas específicas em funcionamento nos usos e nos modos de apropriação do que é imposto" (CHARTIER, 1995, p. 185).
É na tábua de Chartier que as idéias de Michel de Certeau podem ser bem compreendidas. Assim como Chartier, Certeau observou que a caracterização de um grupo não se deve ao tipo de cultura que ele produz, mas ao uso que esse grupo faz desse objeto. Dessa forma, Certeau também não delimita o conceito de cultura popular em função dos setores da hierarquia social, pois, para ele, só seria possível pensar a cultura no plural. Certeau caracteriza a cultura entre a esfera do dominante e a do dominado. Entretanto, não o faz da mesma forma que os autores mencionados até aqui. Para Certeau, a cultura dominante seria a daquele que detém os meios de controle, produção e disseminação cultural, enquanto que a cultura do dominado seria a daqueles que não possuem meios de empregar sua cultura, de torná-la oficial.
Para dar conta da tal tensão, entre o dominante e o dominado, Certeau criou dois conceitos, que são o de estratégia e o de tática. É neste pondo que esses conceitos estão ligadas à cultura dominante, as estratégias seriam as situações e os valores cotidianos criados por instituições que produzem objetos, normas e modelos sociais de comportamento. De forma similar, estão ligadas à cultura do dominado, as táticas seriam os modos de fazer e sobreviver daqueles que são desprovidos do lugar próprio e dos meios de emprego cultural; tática é o meio subversivo, de astúcia e de "antidisciplina" de participar do jogo social sem seguir todas as regras, e de continuar dentro dele, jogando e sobrevivendo. Desse modo, para Certeau, o popular não é definido em si pela hierarquização em classes sociais, mas pela sua lógica própria arte de fazer o cotidiano dentro de um ambiente social no qual os marginalizados constituem a maioria.
Decorrente deste tipo de análise é a compreensão entre produção e recepção, criação e consumo. Deste ponto de vista, o consumidor de uma obra de arte, de um texto, de uma imagem, estaria inerte diante dos aparelhos impositivos e prontos para aceitar esta produção. As pesquisas de Michel de Certeau colocam em questão esta antiga visão sobre a distância que existira entre criação e consumo:
"A uma produção racionalizada, expansionista e centralizada, ruidosa e espetacular, corresponde uma outra produção, qualificada de "consumo": esta é astuciosa, ela é dispersa, mas se insinua por todos os lados, silenciosa e quase invisível, pois não se marca por produtos próprios, mas em modo de usar os produtos impostos por uma ordem econômica dominante." (CERTEAU, 1990, p. XXXVII).
Em resumo, este estudo nos possibilitou ampliar sobremaneira a nossa visão em torno de um tema tão amplo, abrangente, polissêmico e complexo como o da cultura popular. Através de um método não cronológico e de cotejamento de textos, onde eles se cruzaram, se criticaram, possibilitou a iluminação de certos temas.
Percebemos, que o conceito de cultura sofreu uma ampliação no sentido de abarcar tanto as sociedades fora do mundo ocidental, quanto os grupos subalternos dentro dele, e que esse movimento de certa forma deu legitimidade aos estudos das práticas culturais das camadas subalternas. Podemos também compreender a partir da leitura do historiador Roger Chartier, a possibilidade de pensar a cultura popular para além de sua materialização em objetos, ou em modelos culturais. É preciso então, ao contrário disso, encontrar o popular nos modos de uso e nas apropriações feitas pelos grupos não hegemônicos.
É nesta idéia de circularidade cultural expressa por Ginzburg, nos parece bem interessante, uma vez que ela também rompe com aquele esquematismo mencionado por Chartier, como modelos recorrentes de interpretação da cultura popular. Esses modelos tomam a cultura popular como totalmente autônomas da cultura letrada, ou a vê "em suas dependências e carências em relação à cultura letrada" (CHARTIER, 1995, p.179).
Com relação à cultura popular no Brasil, vimos como as teses iluministas e românticas de desdobraram por aqui. A ambigüidade na apreensão da categoria "povo" é flagrante na medida em que esta categoria serviu de esteio para a construção de uma essência nacional, e por outro lado ele era percebido pela sua negatividade, pela sua ignorância e inconsciência, necessitando por isso uma ação externa orientadora.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA
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- CHARTIER, Roger. História Cultural, entre práticas e representações. Lisboa: DIFEL, 1990.
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