A Crônica
Por Wilson Roberto Rodrigues | 08/11/2024 | CrônicasA Crônica
Caiu-me nas mãos por acaso um livro de crônicas do Fernando Sabino*. Encontrei-o em um velho armário na casa de minha mãe, hoje habitada apenas casualmente em nossas raras passagens por Bauru. É um daqueles livros em que as páginas parecem ter sido datilografadas em máquina de escrever, denunciando ser anterior ao emprego do computador para editar textos. Não está entre seus títulos mais famosos e acredito ser uma compilação de crônicas que o autor publicava diariamente em jornais.
A leitura dos primeiros textos motivou-me a escrever este. Afinal, sonhar é de graça! Imaginei também um dos meus textos caindo assim, aleatoriamente, nas mãos de alguém daqui a 50 anos. Conseguirei, como Sabino, produzir momentos de gostosas lembranças, pelo simples prazer da leitura, a partir de qualquer fato, qualquer assunto, ou mesmo da falta de assunto? Pois foi isso. Passeando por histórias de amenidades “colhidas do cotidiano” fui parar nos anos 70.
Em uma das crônicas ele comenta o então atualíssimo surgimento das calculadoras eletrônicas, redenção dos alunos que, como ele, odiavam matemática. Fez-me lembrar da primeira vez que vi uma. Foi de longe, mostrada pelo professor que a segurava com cuidado e anunciava a mais nova aquisição da EsPCEx: uma máquina capaz de informar imediatamente o logaritmo e as funções trigonométricas de qualquer número. No início eram caríssimas, mas poucos anos depois todos tínhamos uma. Mais um tempinho e a gente comprava até no camelô. Hoje vem como brinde no celular.
Como homem das letras, ele não se interessou pelos logaritmos, senos ou cossenos. Comentou aquela brincadeira que fazíamos, ao perceber que alguns números, quando lidos de ponta-cabeça, tinham a forma de letras. O passatempo era formar palavras. Quem, dentre os que vivemos aquela época, não brincou disso? 0517 era “LISO”; 0735 era “SELO”. Essas ele citou. Eu sabia mais uma: 735139 era o nome do Presidente. Talvez ele também soubesse, mas reservou outras crônicas para brincar ou fazer ironias com as autoridades da época, respeitando, é claro, os limites então permitidos.
Em seus momentos saudosistas, como este meu, falou da passagem do gramofone para as vitrolas e ironizou o hábito que nós, jovens da época, tínhamos de chamar nossos equipamentos musicais simplesmente de som. Usávamos frases do tipo comprei um som que é um barato. Diante delas, sugeriu que “a comunicação vai se empobrecendo em favor da música — ou a música, a todo volume, vai acabando com a comunicação entre os que não têm o que comunicar”.
Que exagero gastar uma frase como essa para qualificar nossos amplificadores rudimentares! Que termos nos restarão para os atuais pancadões e autofalantes sobre rodas que hoje nos destroem os tímpanos, invadem nossos poros e provocam aquelas ondas de choque que estremecem o peito?
Falou com naturalidade sobre o hábito de acender um cigarro dentro de um avião, incapaz talvez de imaginar que isso viria a se tornar heresia. Compartilhou com muito bom humor seus conflitos internos na luta para largar o cigarro.
Ante à colocação do ex-fumante Rubem Braga, que via o cigarro como uma mulher a quem se amou e hoje, ao vê-la, questiona-se a si mesmo “como pude gostar dela um dia?”, contra argumenta que “a mulher por quem se foi apaixonado engorda, enquanto que o cigarro continua sempre o fino que satisfaz”. Duvido que teria coragem de repetir isso hoje! Quanto à expressão “o fino que satisfaz”, se você, leitor, não quiser revelar sua condição de sexagenário, não conte a ninguém que se lembra de que ela fazia parte de certa propaganda de cigarro.
Em outro texto delicioso usou bom humor e fez confidências a respeito dos truques usados pelos cronistas para contornar a falta de inspiração e produzir a crônica diária, às vezes tirando leite de pedra.
Brigou com secretárias eletrônicas, novidade da época. Declarou amor a sua máquina de escrever manual na despedida pela substituição por uma elétrica. Contou sobre o início conflituoso da relação com esta última. Aí pouca surpresa. Vivemos algo semelhante nas mudanças de Windows X para Windows Y.
E assim naveguei de texto em texto. Embora seja leitor de crônicas de longa data, tive olhos diferentes para essa obra. Meu gosto recém adquirido por escrever crônicas amadoras fizeram-me, desta vez, vê-la como uma cartilha e refletir sobre o significado do gênero.
A crônica, pensando bem, é um texto sobre qualquer assunto, às vezes nenhum e às vezes a própria crônica. Com o passar do tempo os temas, que frequentemente já eram banais, podem ficar ainda menos significativos, mas nem por isso ela morre. A razão da sobrevida da crônica não está no assunto, mas na alma do cronista, camuflada nas entrelinhas. Essa sim, fica e resiste ao tempo. Aí está a motivação para escrever.
Deliciosa leitura! Deixou a sensação de um bate papo com um velho amigo, daqueles de quem a gente nunca se esqueceu e reencontra depois de muitos anos. Um verdadeiro presente do Mestre Fernando Sabino!
(*) A Falta que Ela Me Faz, Fernando Sabino, Ed Record, 1980.