A crise
Por César Bueno Franco | 16/07/2009 | Contos
Acordou na sua grande cama de cobertas macias e lençóis importados de um desses países desconhecidos. A seguir o Sr. Smith preguiçosamente coçou sua barriga já saliente e cada vez mais perto de lembrar uma gestante; com a outra mão esfregou as unhas bem cuidadas na careca progressiva, causando uma agradável sensação de cócegas. Triste por ser domingo e conseqüentemente dia de folga de seus empregados – motorista e faxineira -, levantou pesado, pondo um pé de cada vez no carpete importado – um desses vindos de qualquer país exótico. Então precisou cruzar todo o apartamento luxuoso, cobertura daquele sofisticado prédio, para chegar até a cozinha e ajeitar a máquina de fazer café. Enquanto esperava a primeira xícara, foi pegar o jornal à sua porta e mais duas revistas que tinha pedido ao porteiro para comprar e lhe entregar. 'Tempos de crise, preciso me informar', pensou. Pegou a xícara cheia do escuro e amargo líquido preto - colombiano, do melhor tipo exportação – e foi até o banheiro; a mijada tradicional da manhã. Posicionou-se em frente a privada reluzente já pronto para o ato, mas quando abriu a tampa ficou em choque. Não acreditava no que via. Pensou estar dormindo e se tratar de um sonho maluco. 'O que uma mão faz aqui!?', perguntou perplexo.
Era uma mão, tal qual a humana em tamanho e forma, mas não dava para saber se era realmente de verdade. 'Será que é de plástico?', o Sr. Smith analisava. A agua cobria toda ela, o que dificultava notar claramente sua textura ou obter qualquer indício sobre sua natureza material. 'Mas sem dúvida, parece muito com uma mão de verdade, de gente', concluiu o homem estarrecido frente à privada. Pensou em encostar, tentar puxar, mas julgou ser nojento demais enfiar a mão na privada, por mais que essa tenha custado uma exorbitante quantia. Notou, com certo receio, que apesar de ver só a mão, parecia haver a continuidade dela como se um braço normal se estendesse para os confins da privada, se prolongando pelo antebraço, do qual Sr. Smith via só um pedacinho. Achou melhor pegar a vassoura e cutucar, para ver afinal o que era aquilo. Ele, executivo acostumado à gravatas, ternos, maletas e à politica empresarial, não tinha muita intimidade com a vassoura, mas enfiou o cabo dentro da privada e se colocou a cutucar a mão. Um cutucão, dois, três, e o susto. A mão se mexe.
Em pavor larga a vassoura que ao cair no chão faz um eco que se espalha por todo o apartamento, como se fosse uma biblioteca silenciosa reagindo à um agressivo barulho. A mão, que antes estava inerte, depois das cutucadas se mexe freneticamente. Sr. Smith, tão assustado quanto paralisado, não acreditava. 'Céus, é real, é humana!', exclamou em voz alta como se alguém fosse ouvi-lo, 'Isso não é possível, não é!'. A mão saracoteava, cada vez mais rápida e violenta; o antebraço, até então visto só um pequeno pedaço, começava a se expor mais e mais: a mão começava a puxar, para fora, o resto do braço. O homem, parado de pé, tinha os olhos tão arregalados que poderiam saltar da face à qualquer instante; a julgar pela forma como sua boca estava aberta, se os olhos saltassem, tinham a grande chance de rebater na parede, ricochetearem na sua enorme barriga, e irem direto para o céu da sua boca. Sr. Smith, não acreditava. Só quando o braço, agora quase completo, se precipitava para fora da privada, fazendo um tipo de alavanca para trazer à tona um possível ombro, é que o Sr. Smith pegou novamente a vassoura e instintivamente começou a tentar empurrar com ela tudo para dentro do vaso. Como se sentisse a dor das investidas da vassoura, a mão reagiu e conseguiu segurar raivosamente seu cabo puxando-a para dentro, para as profundezas misteriosas do vaso.
O barrigudo Sr. Smith, ainda só de cuecas, correu em pânico para o interfone e avisou o porteiro. 'Tem uma mão saindo da minha privada! Já é um braço todo!', desesperado gritou. O porteiro respondeu laconicamente que logo mandaria alguém, deixando o Sr. Smith ainda mais apavorado por ter de ficar ali, sozinho como era em sua vida sem tempo para família, com aquela coisa que ia saindo da privada. O braço já ia completo, e trazia um pedacinho do ombro; indicava também a existência de um pescoço. 'Meu Deus!', exclamou o homem que teve seu vaso invadido. Num gesto de bravura desesperada, empurrou com nojo o braço para dentro da privada, mas agora com suas próprias mãos; sentiu o calor na sua pele, tal como é o membro de qualquer ser vivo, mas não acreditava no que via nem no que sentia. Quando o braço recolhera-se um pouco, rapidamente o Sr. Smith tampou o vaso e sentou em cima; seu peso anulava as investidas surgidas de dentro da privada que pareciam dar murros na tampa. 'Chega logo, chega logo!', repetia em terror absoluto desejando que a ajuda prometida pelo porteiro entrasse a qualquer instante.
Para o alívio do careca em puro pavor sentado sobre a privada, a campainha tocou. Mas fez-se o dilema. 'Porcaria, se eu sair daqui, ela vai escapar', problematizou, e pela primeira vez odiou o fato de ter comprado um apartamento tão grande que era preciso perder quase um minuto para chegar até a porta principal. Mas não tinha remédio. Pegou fôlego para correr tanto quanto sua massa gordurosa permitisse e pôs-se em disparada até a porta. Mal a abriu, já desembocou a falar de toda a história e a apontar insanamente para o banheiro, tentando dar a dimensão real do problema. O homem que tocara a campainha, com um macacão e uma discreta caixa de ferramentas, não entrou na onda; caminhou lentamente para dentro do apartamento seguindo a direção indicada até achar o banheiro. Agora já eram dois braços, mas de cores diferentes, o que indicava que se tivessem corpos, seriam de corpos diferentes. O homem no macacão olhou de um lado, olhou de outro, e não demonstrou surpresa alguma.
-O que aconteceu aqui? - pergunta ao Sr. Smith.
-Quê!? Não tá vendo?
-Os braços?
-Sim! Os braços, caramba! - responde o irritadiço Sr. Smith.
O homem de macacão soltou um 'Humm', como se entendesse algo ou apenas não tivesse algo para falar. Abriu a tímida caixa de ferramentas; pegou uma de seus instrumentos de mecânico, olhou para os braços que se debatiam como tentáculos para fora da privada, soltou o instrumento; pegou outro, analisou ele, analisou os braços, mas desistiu também; o terceiro instrumento foi tirado do fundo da caixa, mas aparentemente também não serviria para aquela situação.
-Bem, meu senhor. Você deveria ter me chamado antes, bem antes. Agora tá complicado.
-E como eu ia chamar antes!? Acordei e vi uma mão aí dentro! - diz Sr. Smith apontando para a privada e quase explodindo em raiva diante da calma e do pouco caso do outro homem.
-Mas tem que chamar antes; se a mão aparecer, aí já deu problema. E dos grandes. Vou ter que chamar reforço - diz indo em direção à saída.
-Mas... mas e eu!? Faço o que?
-Olha, meu senhor, o melhor é deixar o banheiro fechado até a ajuda chegar daqui uns minutinhos. Mas não se preocupa não, vai vir gente especialista, bons nesse treco aí. Logo o pepino se resolve.
E sai pela porta, carregando sua pequena caixa de ferramentas e sua grande tranqüilidade, como se tivesse sido chamado para tratar de um cano entupido com uma bola de papel. Quanto ao Sr. Smith - ainda de cuecas, careca e barrigudo -, este ficou vendo o terrível espetáculo que tinha como palco o vaso sanitário. Os dois braços de cores diferentes pareciam ter travado um ao outro, eis então que pararam de se mexer, como se conversassem, e então um deles recua. O outro, que havia permanecido, usa de uma força descomunal aproveitando o espaço livre e, para multiplicar o espanto do Sr. Smith, traz à tona seu ombro, seu pescoço, e um cabeça de um homem; tudo de uma vez. O rosto tinha uma fisionomia sub-humana; seco, ósseo, de olheiras fundas, barba rala, como se a cara tivesse sido sugada de algum jeito e então murchado. A agua da privada escorria pelos olhos daquele ser que vinha saindo da privada; olhos injetados de sangue, pupilas dilatadas, tão arregalados quanto o do Sr. Smith. Neste instante, o pânico do Sr. Smith lembrou-lhe do conselho do homem no macacão e então correu para fora do banheiro, com a chave da porta na mão, e em seguida a trancou. Ainda espiou pela fechadura até ver, mas ainda relutando em acreditar, sair um corpo completo da sua privada; saíra dali, por fim, um homem.
Pelo lado de fora, se escutavam passos, barulhos de água caindo no piso e, por vezes, algum resmungo incompreensível. Parecia que agora existiam vários homens saídos da privada. O dono do apartamento, tão longe quanto podia ficar do banheiro mas evitando perde-lo de vista, sentia um medo indescritível. Temia que a qualquer instante a porta do banheiro viesse a baixo e saíssem vários daqueles seres desconhecidos-estranhos. 'O que eles querem?', se perguntava. 'De onde saíram!?', indagava. A campainha toca pela segunda vez no dia, interrompendo seus pensamentos. Atende e vê que agora são dois homens, também com macacões, mas diferentes daquele do primeiro homem; de cor mais escura, de corte mais sofisticado, denunciavam qualquer tipo de superioridade que aquele da tímida caixa de ferramentas não tinha. 'Onde?', perguntaram sisudos e sem delongas. Sr. Smith, à essa altura já cansado de se apavorar, só apontou a direção.
Os dois homens em seus macacões de luxo chegaram até o banheiro mas não abriram a porta ainda trancada; olharam pela fechadura, então se entreolharam, olharam a fechadura de novo, se entreolharam de novo, e fizeram um sinal discreto de afirmativo com a cabeça.
-O caso é pior do que pensávamos, senhor. Vamos interditar.
-E o meu banheiro? E o meu apartamento!?
-Positivo, senhor. Vamos controlar. - dizia o outro homem de macacão falando com, aparentemente, um supervisor via aparelho comunicador.
-O banheiro se perdeu, já era. Temos que agir rápido para não ter perda total do imóvel, afetar os outros apartamentos, ou mesmo o prédio todo.
-Meu Deus. Que prejuízo, que prejuízo! E o que vocês vão fazer?
-Negativo, senhor. Mas já estamos em andamento - continuava, o outro homem, no aparelho comunicador.
-Processo padrão de remoção e posterior bloqueio do canal. Cinco dias e o senhor poderá retornar.
Desiludido com tamanha tragédia para um domingo de manhã, entristeceu mas aceitou o inevitável destino. Fez as malas para passar uns dias no hotel onde sempre ficava quando queria trocar os ares, amansar os pensamentos conturbados. 'Ao menos tenho seguro', reconfortou-se. No elevador encontrou Dona Magda, a sua vizinha de andar; carregava seu poodle tosado à francesa.
-Onde vai assim tão cedo, seu Smith? E com essa mala enorme?
-Uma mão invadiu minha privada, aí logo era um braço, um ombro, e por fim uns tantos homens. - contou como quem desabafa um trauma.
-Oh! - Dona Magda tirou os grandes e ovalados óculos de sol que lhe cobriam a cara, como sinal de real interesse na situação. Semana passada minha cunhada teve o mesmo problema. Um horror, seu Smith, um horror! A pobrezinha ficou em choque, faz tratamento até hoje para poder usar o banheiro sem ter ninguém por perto. Não sei onde o mundo vai parar desse jeito, não sei mesmo. Mas e para qual o hotel o senhor vai?
-Aquele ali na orla.
-A suíte tem uma ótima hidromassagem.
-Certamente. A cozinha é fantástica também. - disse Sr. Smith sorrindo, já antevendo os suculentos pratos que degustaria.