A CRISE CARCERÁRIA E A CONTENÇÃO DE REBELIÕES: UM RETRATO DA VIOLÊNCIA E DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA PENITENCIÁRIO GOIANO.
Por PHILIPE ANATOLE GONÇALVES TOLENTINO | 30/08/2018 | DireitoA CRISE CARCERÁRIA E A CONTENÇÃO DE REBELIÕES: UM RETRATO DA VIOLÊNCIA E DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA PENITENCIÁRIO GOIANO.
Philipe Anatole Gonçalves Tolentino1
GOIÂNIA
2018
1. TEMA: A CRISE CARCERÁRIA E A CONTENÇÃO DE REBELIÕES: UM RETRATO DA VIOLÊNCIA E DO ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL NO SISTEMA PENITENCIÁRIO GOIANO.
1.1 DELIMITAÇÃO DO TEMA
Esta pesquisa visa discorrer sobre a manifestação do “estado de coisas inconstitucional” no sistema carcerário goiano a partir das ações de contenção das recentes rebeliões ocorridas no Estado de Goiás, em especial em Goiânia e no Vale do Araguaia, tendo como parâmetro a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da Medida Cautelar no ADPF 347, ressaltando as especificidades regionais.
1.2. CARACTERIZAÇÃO DO PROBLEMA ESPECÍFICO
As violações massivas e persistentes de direitos fundamentais que recaem sobre um número indeterminado de sujeitos, decorrentes de falhas estruturais e falência de políticas públicas e cuja modificação depende de ação conjunta entre os diversos órgãos, foi o que levou ao Supremo Tribunal Federal (STF) a caracterizar o sistema carcerário nacional como “estado de coisas inconstitucional”, no julgamento da Medida Cautelar do ADPF 347.
Como as violações aos direitos humanos e fundamentais, dado seu papel de centralidade no ordenamento jurídico e do discurso legitimador do Estado, são o núcleo da crise de legitimidade enfrentada pelo Estado Democrático de Direito?
Além de analisar as características gerais dessas violações massivas apontadas pelo referido julgado, em especial a superlotação e as situações degradantes de custódia, é essencial pensarmos também nas especificidades do sistema carcerário goiano sob a perspectiva da problemática da crise carcerária, para que possamos diagnosticar os sintomas dessa crise estrutural e de legitimidade e construir possibilidades pontuais, efetivas e necessárias de mudanças.
1.3. CARÁTER INTERDISCIPLINAR DA ABORDAGEM
A necessidade de ações conjuntas entre diversos órgãos que participam direta e indiretamente da execução penal e da custódia dos presos para sanar as condições características do estado de coisas inconstitucional revela o caráter interdisciplinar desse estudo, uma vez que a mera normatização de direitos e garantias constitucionais e processuais por si só não é suficiente para efetivação e proteção destes direitos e garantias (LIMA e MEDRADO, 2015, p.107).
Nesse sentido, o trecho abaixo retirado da obra “Derechos humanos, Estado de derecho y Constituición, de Perez Luño traduz com maestria a tensão entre o plano abstrato dos direitos humanos e fundamentais e o plano de sua efetivação que perpassa pela normativização jurídica mas não se encerra nela, devendo também ser pensada sob um caráter político e pedagógico.
Pretender desgajar el proceso de positivación de los derechos humanos fundamentales del largo y laborioso esfuerzo de los hombres en la lucha rror la afirmación de su dignidad libertad e igualdad como principios bésicoide la convivencia política, es tanto como privar a dicho proceso de su signifìcado. La propia sede habitual de positivación jurídica de tales derechos fundamentales, que no es otra que la de los principios rectores del orden constitucional, revela la constante tensión dialéctica entre el plano ideológico, si se quiere en el terreno iusnaturalista, de las aspiraciones políticas, y el plano técnico en el terreno de la positividad de las normas jurídicas. (LUÑO, 2010, p.133)
Por esse motivo é fundamental a compreensão de que a efetivação desses direitos e garantias encontra óbices de caráter social, econômico e político, sendo assim sua análise não pode se dar apenas a partir do campo epistemológico do Direito Positivo mas também das ciências políticas e da Sociologia, no que tange a implementação de políticas públicas e o desinteresse governamental em investir na execução penal, na Filosofia, para analisar a construção do pensamento moderno e desenvolvimento dos direitos humanos, da Criminologia e das Ciências Sociais para tratar da cultura do medo, do recrudescimento penal e do desenvolvimento do pensamento punitivista, entre outros aspectos, reforçando a necessidade de se construir um estudo multi e interdisciplinar dessa pesquisa.
2. JUSTIFICATIVA
Em 2017 eclodiu no sistema penitenciário brasileiro uma onda de rebeliões, que teve como marco inicial o dia 1º de janeiro, em que 60 presos morreram numa penitenciária em Manaus durante uma rebelião que durou mais de 17 horas. Na mesma semana outra rebelião, dessa vez em Roraima, acabou na morte de 33 detentos, e depois, no dia 14, no Rio Grande do Norte, na Penitenciária Estadual de Alcaçuz uma nova rebelião que acabou com a morte de 26 presidiários.
Após esse estopim, a onda de rebeliões se alastrou pelo Brasil, atingindo Goiás com especial rigor, passando por Itumbiara, Jussara, Itaberaí, Goiás, Rio Verde, Goiânia e outras cadeias do estado, escancarando para o público a fragilidade estrutural e o déficit de efetivo que o sistema carcerário goiano enfrenta, e ainda que os investimentos estatais não acompanham a crescente da massa de encarcerados.
As condições desumanas no sistema carcerário brasileiro é tema discutido há longa data pela academia e segundo o ministro Marco Aurélio está na “ordem do dia” no STF, tendo sido matéria de diversas ações constitucionais, como a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5170, que discute direito de indenização de presos por danos morais, o RE 592581, que discute a possibilidade de o Judiciário obrigar os estados e a União a realizar obras em presídios, e a ADI 5356, sobre a inconstitucionalidade de norma que estabelece o bloqueio de sinal de rádio e comunicação em área prisional, contexto em que se insere o ADPF 347.2
Essa debilidade estrutural e a falta de investimento foram alguns dos motivos que já em 2015 davam ensejo a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, proposto pelo Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), que dentre outros temas debateu o não contingenciamento dos recursos do Fundo Penitenciário Nacional e o reconhecimento da falência do sistema carcerário.
O julgamento da Medida Cautelar da ADPF 347 terminou por declarar a configuração do “estado de coisas inconstitucional” no sistema carcerário brasileiro e por consequência do sistema carcerário goiano, diante do quadro de constantes violações aos direitos humanos, técnica em que a conte constitucional, no caso o STF, impõe aos demais poderes do Estado medidas tendentes à superação de violações graves e massivas de direitos fundamentais, bem como supervisiona sua implementação.
Esse instituto tem sua origem na Sentencia de Unificación - SU 559, de 6/11/1997, proferida pela Corte Constitucional Colombiana numa demanda promovida por diversos professores que tiveram seus direitos previdenciários sistematicamente violados pelas autoridades públicas, e desde então foi aplicado em pelo menos nove julgados.
Segundo a Corte Constitucional da Colômbia para que seja caracterizado o estado de coisas inconstitucional é necessária a constatação das seguintes condições: (a) vulneração massiva e generalizada de direitos fundamentais de um número significativo de pessoas; (b) prolongada omissão das autoridades no cumprimento de suas obrigações para garantia e promoção dos direitos; (c) a superação das violações de direitos pressupõe a adoção de medidas complexas por uma pluralidade de órgãos, envolvendo mudanças estruturais, que podem depender da alocação de recursos públicos, correção das políticas públicas existentes ou formulação de novas políticas, dentre outras medidas; e (d) potencialidade de congestionamento da justiça, se todos os que tiverem os seus direitos violados acorrerem individualmente ao Poder Judiciário.3
Para o ministro Marco Aurélio há no sistema carcerário brasileiro violação generalizada de direitos fundamentais, em especial no tocante a dignidade da pessoa humana, devendo ser reconhecida a falência inequívoca do sistema4.
No mesmo sentido aponta Carlos Alexandre de Azevedo Campos, quando diz que estão configurados os pressupostos do estado de coisas inconstitucional, máxime a violação massiva de direitos fundamentais e o fator da falha estrutural, no caso do sistema carcerário brasileiro, ou seja, o sistema carcerário brasileiro é um estado de coisas inconstitucional (CAMPOS, 2015, p.43).
Frente a institucionalização da premissa de que o sistema carcerário brasileiro configura o estado de coisas inconstitucional, o que vincula por consequência o sistema carcerário goiano, torna-se necessário um recorte contextual desse sistema para retratar, além do quadro geral, suas especificidades.
Estudar especificamente o sistema carcerário goiano, a partir de seus momentos de crise latente (as rebeliões), sob uma perspectiva interdisciplinar, é de fundamental importância para apontar debilidades pontuais desse sistema regional, para além das características gerais apontadas na ADPF 347, elaborando um rol específico de violações e de medidas necessárias, a serem implementadas por uma pluralidade de órgãos, de acordo com a realidade pontual do Estado de Goiás.
O recorte contextual momentâneo, ou seja, a escolha do momento das rebeliões, se justifica por três motivos fundamentais, primeiramente por não se tratar de um fenômeno isolado ou raro, ao contrário, que ocorre pela soma de fatores internos e externos ao sistema carcerário. Em segundo lugar, por se tratar de um momento de crise latente que carece da ação imediata e quase que instintiva das autoridades estatais de segurança, as violações aos direitos e garantias fundamentais justificadas pela ordem e pelo interesse público saltam com muito mais clareza aos olhos que observam. E por fim o momento de crise escancara a fragilidade da infraestrutura e a falta de investimentos no sistema carcerário, ilustrando sua completa falência estrutural e administrativa.
Recortar tal momento, em que os conflitos, as violências e as fragilidades que cotidianamente estão presentes, já sendo considerados comuns, atingem seu ápice e todos os fatores que dão causa e que ao mesmo tempo são fruto da crise carcerária e do grande encarceramento se chocam, gerando medidas de resposta e contra resposta para manutenção, contenção ou gerenciamento de crise, é dar contornos concretos à violência, às violações e demais situações degradantes de direitos e garantias corriqueiras do falido sistema carcerário.
Além do quadro de violações de direitos e garantias fundamentais, constitucionais e processuais e das condições desumanas de custódia, não podemos nos esquecer da tortura institucionalizada no sistema carcerário como forma de contenção e gerenciamento de conflitos, operada por forças de segurança sem preparo tático e psicológico para lidar com uma situação de crise.
A crise sistêmica carcerária nacional e regional tal qual as violações massivas e constantes aos direitos de um número indeterminado de indivíduos que dela decorre é claramente objeto essencial ao estudo dos direitos humanos. Como muito bem exemplificado nas palavras dos advogados constituintes da Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ: “Não há, talvez, desde a abolição da escravidão, maior violação de direitos humanos no solo nacional”5; ou ainda: “Trata-se da mais grave afronta à Constituição que tem lugar atualmente no país”6, na petição inicial da ADPF 347 e também na tribuna do STF.
Compreender e criticar as ações e omissões estatais cerceadoras de direitos bem como propor novas políticas públicas ou meios de efetivação das que já existem mas são precariamente desenvolvidas, necessárias a sanar o quadro de violência sistêmica contra os direitos humanos, sob uma perspectiva emancipatória e pedagógica de ressocialização são alguns dos pontos a serem abordados pela pesquisa constituinte desse trabalho, para que a pena não mais seja o fim mas um novo início àquele indivíduo.
O objetivo do Direito Penal no Estado de Direito deve ser a redução e a contenção do poder punitivo dentro dos limites menos irracionais possíveis, garantindo sua atuação como instrumento do Estado Constitucional, que se encontra perenemente confrontado pelo Estado de polícia. O Direito Penal de garantias é inerente ao Estado de Direito. (ZAFFARONI, 2007, PÁGS. 172, 173).
Delineada a relevância do tema aos estudos dos Direitos Humanos e da importância de uma abordagem interdisciplinar, fica estabelecida a vinculação deste pré-projeto ao programa de mestrado a que se pretende cursar, especificamente ao projeto de pesquisa, CONFLITOS SOCIAIS E DIREITOS HUMANOS. DIREITOS HUMANOS COMO EXPRESSÃO PRIVILEGIADA DOS CONFLITOS SOCIAIS E SUBJETIVOS EMANCIPATÓRIOS: RECONHECIMENTO E AÇÃO PEDAGÓGICA, sob orientação do professor em pós doutoramento Ulisses Terto Neto.
Este pré-projeto coincide primeiramente com o objeto de estudo do projeto de pesquisa indicado, podendo, de acordo com o desenvolvimento da pesquisa, se adequar a dois de seus grandes eixos temáticos, o eixo número 1, que trata da caracterização de fundamentos teóricos dos direitos humanos e sua contextualização, dada a contemporaneidade do tema, ou ainda do segundo eixo temático apresentado, tendo em vista que os conflitos culturais, políticos e intersubjetivos e da violência estrutural, quando se problematiza a custódia dos presos por parte do Estado e a disputa entre facções rivais dentro do sistema carcerário.
Por outro lado, o desenvolvimento do tema também se enquadra dentre as possibilidades de pesquisa apresentadas, sendo seu foco a atuação estatal e sua práxis cerceadora de direitos e a necessidade de implementação de políticas públicas para sanar tais violações, analisando também a atuação das forças de segurança no ambiente prisional, em especial no que tange a falta de efetivo, de aparato e treinamento necessário.
Demonstrada a pertinência acadêmica do tema e seu debate recente e contemporâneo, me cabe agora estabelecer os objetivos que nortearão a elaboração, construção e concretização da pesquisa:
Objetivo Geral: Demonstrar como o estado de coisas inconstitucional se manifesta no sistema carcerário goiano a partir das ações de contenção de crises prisionais, ressaltando suas falhas estruturais e violações específicas.
Objetivos específicos: - Deliberar e contextualizar a aplicação do estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário;
- Analisar a repercussão discursiva e pratica do reconhecimento institucional de que o sistema carcerário brasileiro configura um estado de coisas inconstitucional;
- Contextualizar a crise do sistema carcerário a partir da onda de rebeliões de 2017;
- Contextualizar especificamente a crise do sistema carcerário goiano a partir das rebeliões que integraram o movimento citado anteriormente.
3. HIPÓTESES DE TRABALHO
O reconhecimento institucional de que o sistema carcerário brasileiro configura um estado de coisas inconstitucional, admitindo sua falência sistêmica, atinge como um míssil os pilares que sustentam o poder punitivo estatal, fazendo com que a crise carcerária, enquanto componente da crise do sistema penal, seja para além de uma crise estrutural, uma crise de legitimidade (ZAFFARONI, 1992, p.15).
João Cardoso Rosas aponta para a centralidade dos direitos humanos e fundamentais no sistema jurídico, especialmente no tocante a dignidade, ressaltando inclusive a possibilidade de intervenção externa em caso de violação desses direitos, adicionando uma nova dimensão nessa centralidade, a de legitimar, em última instância, o exercício do poder político, mediante o controle democrático. Ou seja, os direitos humanos, especialmente o princípio da dignidade da pessoa humana, ao nível da ordem jurídica interna, e enquanto direitos fundamentais, são, antes de tudo, proteções dos indivíduos em face ao Estado (ROSAS, 2013, p. 184 e 185),
As rebeliões são o clímax da tensão inerente ao cotidiano prisional, por esse motivo são o retrato explícito das violações aos direitos humanos que acontecem corriqueiramente de maneira velada na rotina prisional e ilustra concretamente as questões abstratas ressaltadas pelo ADPF 347, mais especificamente a superlotação e as condições desumanas de custódia, bem como a violência física, sexual, emocional e psicológica que acomete todos aqueles inseridos no sistema carcerário.
As medidas apontadas pelo min Marco Aurélio e instituídas desde o julgamento do ADPF 347 não são o suficiente para sanar esse quadro de violações aos direitos humanos, haja vista os diversos níveis de violação e ainda as realidades regionais específicas enfrentadas pelo sistema carcerário.
A normatização de direitos e garantias fundamentais constitucionais e processuais não logrou na proteção efetiva dos direitos humanos (LIMA e MEDRADO, 2015, p.107). O recrudescimento do punitivo do Estado não se demonstra efetivo para redução da criminalidade ou da reincidência, se tornando ineficiente na sua função precípua. Tais afirmativas apontam para necessidade da construção epistemológica e da proposição de ações interdisciplinares, com base especialmente na Antropologia, Filosofia, Pedagogia, Psicologia e Sociologia, complementares as construções no campo epistêmico do Direito.
4. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
A ideia de se estudar a crise do sistema penal a partir do sistema carcerário se dá com base no pensamento de Foucault, pelo fato de que seria na cadeia o local em que se concretiza a maior das faces do poder punitivo, ilustrado pelo trecho:
Não será que, de modo geral, o sistema penal é a forma em que o poder como poder se mostra da maneira mais manifesta? Prender alguém, mantê-lo na prisão, privá-lo de alimentação, de aquecimento, impedi-lo de sair, de fazer amor, etc., é a manifestação de poder mais delirante que se possa imaginar. (FOUCAULT, 2008, p.268)
A crise do sistema penal punitivista é um quadro geral, a seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social, não são características conjunturais mas estruturais do exercício do poder de todos os sistemas penais (ZAFFARONI, 1992, p.15), e o sistema penal brasileiro, no qual se insere o sistema carcerário brasileiro.
No sentido de apontar as falhas estruturais do sistema carcerário brasileiro, ilustrando as características gerais acima citadas, Carlos Alexandre de Azevedo Campos disse em sua tese de doutorado pela UERJ que:
(...) problemas de superlotação carcerária, instalações prisionais insalubres, tortura policial, falta de segurança interna, inexistência de medidas de divisão de presos, ausência de oferta de direitos básicos como saúde, alimentação minimamente saudável, educação e trabalho, número excessivo de prisões provisórias, assistência judiciária precária, entre outros, implicam tratamento desumano e condições indignas de sobrevivência dos presos. (CAMPOS, 2015, p.32)
O tratamento desumano e as condições indignas de sobrevivência constituem a realidade brutal do vergonhoso sistema carcerário brasileiro, que talvez seja atualmente aquele que produza o maior grau de violação de direitos humanos, decorrente de omissões e falhas estruturais agravadas pela inércia e incapacidade das autoridades públicas (CAMPOS, 2015, p. 31).
Tais condições, em especial no tocante a superlotação, foram matéria de discussão na tribuna do STF, no julgamento da medida cautelar do ADPF 347, tendo como uma de suas bases doutrinárias a referida tese de doutorado, que acabou por, dentre outras medidas, por confirmar que o sistema carcerário brasileiro configura um estado de coisas inconstitucional.
Esse descumprimento de preceitos constitucionais fundamentais de forma generalizada reforça a premissa de que o sistema penal não respeita legalidade, exercendo seu poder dentro de um modelo de arbitrariedade e seletividade, deturpando os dispositivos legais, além disso a legalidade é também violada de forma aberta e extrema pelo altíssimo número de fatos violentos e de corrupção praticados pelos órgãos do sistema penal (ZAFFARONI, 1992, p.29).
Sobre a deturpação do aparato jurídico legal, bem como das margens abertas a arbitrariedade do estado pela lei, são válidos os ensinamentos de Boaventura de Sousa Santos:
As leis têm assim um carácter probabilístico, aproximativo e provisório […] a simplicidade das leis constitui uma simplificação arbitrária da realidade que nos confina a um horizonte mínimo para além do qual outros conhecimentos da natureza, provavelmente mais ricos e com mais interesse humano, ficam por conhecer. (SANTOS, 2008, p. 51)
O reconhecimento institucional, por parte do STF, de que o sistema carcerário brasileiro é um estado de coisas inconstitucional concretiza a grave crise de legitimidade que infringe o sistema penal brasileiro, ou seja, uma brusca aceleração do descrédito do discurso jurídico-penal (ZAFFARONI, 1992, p. 15).
Essa crise de legitimidade se dá pela incoerência desse discurso, bem como por sua ineficiência social, uma vez que postula garantias, as quais não efetiva e prevê institutos, os quais não consegue sustentar. Nesse sentido Zaffaroni nos diz que:
É importante esclarecer que não acreditamos que a coerência interna do discurso jurídico-penal esgota-se em sua não contradição ou complexidade lógica, ao contrário, requer também uma fundamentação antropológica básica com a qual deve permanecer em relação de não-contradição, uma vez que, se o direito serve ao homem – e não ao contrário – a planificação do exercício de poder do sistema penal deve pressupor esta antropologia filosófica básica ou ontológica regional do homem. (ZAFFARONI, 1992, p. 16)
Apesar do nítido esvaziamento do discurso jurídico-penal, o direito penal continua atuando como seu reprodutor dentro das instituições jurídicas e de ensino, velando esse seu descrédito, como demonstram os autores:
O discurso jurídico-penal é elaborado nos âmbitos que, dentro do sistema penal, cumprem a função de reprodução ideológica (universidades) e transferido – com certo atraso – para as agências judiciais, apesar de estas, às vezes, tomarem a iniciativa e depois as primeiras lhe proporcionarem maior organicidade discursiva. O paradoxo que implica construir um discurso legitimador de um enorme poder alheio e redutor do próprio é explicável porque os segmentos jurídicos privilegiaram o exercício de seu poder através do discurso em detrimento do direito do mesmo. O poder do discurso – neste caso, do direito penal – é muito mais importante do que usualmente se reconhecia: todo poder gera um discurso e também – o que é fundamental – condiciona as pessoas para que só conheçam através desse discurso e de acordo com o mesmo. (ALAGIA, et al., 2015, p.72)
Ainda reforçando o cuidado que se deve ter com os saberes difundidos nas escolas tradicionais de direito, cabe frisar outra passagem dos mesmos autores:
Daí o fato de que o direito penal tenha criado seu mundo, pretendido conhecer a operatividade criminalizante segundo este seu mundo, e querido impedir o ingresso no discurso jurídico-penal de todo dado social que pudesse questioná-lo. Com isso exerce o poder que lhe confere proporcionar o discurso legitimador de todo o poder direto das demais agências do sistema penal. (ALAGIA, et al., 2015, p.72)
A cultura jurídica de legitimação das violações de direitos humanos configura a atuação de um poder simbólico no âmbito do penal, contribuindo para assegurar a dominação das instituições penais sobre aqueles sujeitos selecionados, caracterizando uma violência simbólica, “dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a domesticação dos dominados” (BOURDIEU, 2007, p. 11).
Observando a forma como o direito penal em suas correntes majoritárias atua como legitimador do perverso sistema penal, nos cabe buscar em outras áreas de conhecimento os conceitos, fundamentos e soluções de questões no que se refere aos direitos humanos.
Quem aponta para uma nova construção dos direitos humanos sob uma perspectiva de crise no paradigma dominante, são Aline Medrado e Ricardo B. Lima, trazendo a construção interdisciplinar como um paradigma emergente, conforme o trecho:
Entendemos que a luta pelos direitos humanos requer novas metodologias capazes de orientar uma nova construção do saber, que permita não só realizar uma análise integral do real, como propor uma alternativa a essa realidade. Uma alternativa que promova a construção de uma cultura de participação capaz de criar um novo momento histórico, no qual as questões sociais não sejam substituídas por questões unicamente normativas, formuladas por uma pretensão científica unicamente instrumental. (LIMA e MEDRADO, 2015, p.110)
Repensar a construção dos direitos humanos a partir de uma perspectiva interdisciplinar é dar efetividade ao seu aparato teórico, uma nova metodologia de aplicação e proteção de direitos que enquanto meras normatizações não se efetivam.
5. METODOLOGIA
A ideia inicial é que a pesquisa seja construída a partir de três frentes metodológicas: (I) levantamento bibliográfico e revisão da literatura; (II) análise de um banco de dados inicial; (III) Construção de um Diagnóstico Rápido Participativo através da realização de entrevistas semiestruturadas com agentes e autoridades inseridas no contexto das recentes rebeliões e de observações participantes na Penitenciária Odenir Guimarães e nas Unidades prisionais da Cidade de Goiás, Itaberaí e Jussara.
Inicialmente, o levantamento bibliográfico e a revisão da literatura constituirão a base teórica da abordagem do tema, com o objetivo de analisar os institutos e conceitos estruturantes e correlatos, especialmente: (a) a crise de legitimidade do sistema penal punitivo; (b) a política do grande encarceramento; (c) o estado de coisas inconstitucional e o sistema carcerário; (d) violações aos direitos humanos no âmbito do cárcere.
A primeira frente pragmática da pesquisa se dará a partir da demonstração e análise do banco de dados coletados pelo Projeto Além das Grades. Trata-se de um grupo de pesquisa e extensão composto por alunos e professores da Universidade Federal de Goiás que teve como objetivo propiciar a estudantes de Direito, Serviço Social e Administração, uma vivência real e prática sobre execução penal, em especial, sobre o descumprimento de direitos e garantias dos encarcerados e a identificação de grupos vulneráveis nos estabelecimentos prisionais.
A execução do projeto se deu através da análise dos processos de execução penal nas secretarias das varas de execução penal, visitas orientadas aos estabelecimentos penais dos municípios da Cidade de Goiás, Itaberaí e Itapuranga, construção de possíveis estratégias para acesso aos benefícios e a aplicação de questionários com mais de cem presos nos municípios indicados, para estimular aos estudantes os desafios relacionados a construção de estratégias para superação da condição de vulnerabilidade imposta e das violações constantes aos direitos humanos desses encarcerados.
Além disso, na busca pela redução do viés de confundimento que a pesquisa possa trazer, haja vista a subjetividade do olhar deste pesquisador nos fenômenos pesquisados, será feito um levantamento de dados obtidos em âmbito internacional (ONU), nacional (DEPEN) e regional, sendo assim haverá previamente uma falseabilidade dos dados para posterior apresentação das constatações da pesquisa.
Por fim, a construção de um DRP fecha a produção de dados a serem utilizados na pesquisa, a ser realizado com autoridades e agentes prisionais na Penitenciária Odenir Guimarães, em Aparecida de Goiânia, e nas unidades prisionais da Cidade de Goiás, Itaberaí e Jussara, através da realização de entrevistas semiestruturadas com o intuito de se reconhecer as debilidades estruturais pela perspectiva desses agentes, bem como seus posicionamentos quanto as garantias constitucionais e aos direitos humanos, e também da realização de observações participativas da rotina carcerária, utilizando a vivência profissional de Vigilante Penitenciário7, Assessor da Defensoria Pública do Estado de Goiás e também acadêmica de aluno pesquisador.
A redução da escala e o recorte contextual da pesquisa são propositais, o que não submete a metodologia aos limites do objeto inicialmente observado. A delimitação do foco tem como fim a possibilidade de estabelecer o contato experimental, sem, no entanto, deturpar ou alterar a macro realidade.
O Diagnóstico Rápido Participativo (DRP), é uma técnica inicialmente elaborada para diagnósticos rurais, mas, que pode ser, da mesma forma, utilizada em comunidades urbanas, em especial quando se trata de pesquisas no âmbito do cárcere. Busca obter os dados a partir das impressões e perspectivas dos atores locais que compõem a comunidade focal atribuindo a pesquisa a perspectiva protagonista a partir de sua percepção do contexto de cada comunidade.
Diferentemente dos métodos convencionais de pesquisa, o DRP pretende instigar, nos membros das comunidades diagnosticadas, a autoanálise e uma percepção da sua atuação como sujeito naquele meio, bem como a integralidade de informações, com a produção rápida, mas, completa, de dados que possibilitem o estudo. Pode ser desenvolvido por meio de entrevistas, mapeamentos, observações participantes, diagramas, entre outras ferramentas, o que o torna ideal para a pesquisa, dado seu caráter interdisciplinar e construção multirefencial.
Os três métodos comporão, ao final, uma pesquisa com base teórica sólida e riqueza de dados, contemplando o caráter empírico e pragmático que se pretende atingir, na expectativa de que seja realizado no seguinte período:
6. REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de Coisas Inconstitucional. 2015. Tese (Doutorado em Direito) – Universidade Estadual do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro–RJ. Disponível em: . Acesso em: 02/12/2017.
CARNELUTTI, Francesco. Misérias do Processo Penal. Tradução de José Antônio Cardinalli. Campinas: Edicamp, 2002.
ABRAMOVAY, Pedro V.; BATISTA, Vera M. “Depois do grande encarceramento”. Rio de Janeiro: Revan, 2010.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 26ª ed. Rio de Janeiro: Ed. Graal, 2008.
LIMA, Ricardo; MEDRADO, Aline. Interdisciplinaridade como necessidade de articulação dos conhecimentos no campo dos Direitos Humanos. Ano 2. Número 2. Goiás, ARACÊ: Direitos Humanos em Revista, 2015.
Notícias STF – Inicia o julgamento ADPF 347. Disponível em <http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=298600>. Acesso em: 05/12/2017.
Petição inicial ADPF 347. Formulada pela Clínica de Direitos Fundamentais da UERJ. Disponível em: <http://www.jota.info/wp-content/uploads/2015/05/ADPF-347.pdf>. Acesso em: 05/11/2017.
SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. 5ª ed. São Paulo, Ed. Cortez, 2008.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. Em busca das penas perdidas: a parda da legitimidade do sistema penal. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1992.
ZAFFARONI, Eugênio Raul. O Inimigo no Direito Penal. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2007.
1 MESTRANDO PELO PROGRAMA DE PÓS GRADUAÇÃO INTERDISCIPLINAR EM DIREITOS HUMANOS
2 STF inicia julgamento de ação que pede providências para crise prisional, Notícias do STF, 27/08/2015. Disponível em acesso em 02/12/2017 as 13:23.
3 A síntese é de Carlos Alexandre de Azevedo Campos. Da Inconstitucionalidade por Omissão ao Estado de
Coisas Inconstitucional. Op. cit., pp. 134-138 apud Petição Inicial ADPF 347 formulada pela Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ.
4 STF inicia julgamento de ação que pede providências para crise prisional, Notícias do STF, 27/08/2015. Disponível em acesso em 02/12/2017 as 13:23.
5 Petição Inicial ADPF 347 formulada pela Clínica de Direitos Fundamentais da Faculdade de Direito da UERJ em que representavam o Partido Socialismo e Liberdade. Disponível em <http://www.jota.info/wp-content/uploads/2015/05/ADPF-347.pdf> acesso em 02/12/2017 às 14:52.
6 Ibidem.
7 Este pesquisador foi Vigilante Penitenciário por 2 anos, motivo que aguçou seu interesse pelos direitos humanos inseridos no sistema carcerário, tendo em vista a importância do protagonismo e do fator subjetivo na construção dos direitos humanos frente a esse novo paradigma epistemológico.