A Criminalização dos Ilícitos Tributários

Por Ana Ellis Carneiro Rios | 23/11/2016 | Direito

 

1.1 Breve evolução histórica

Tem-se por certo que a imposição de tributos foi concomitante, se não antecedeu, à formação do próprio Estado, pois, nas aldeias tribais, já eram devidos pagamentos compulsórios pelo integrante da tribo que usufruísse das terras para plantio ou pastoreio do gado e caçasse ou explorasse seus recursos1, de forma que parte da produção obtida era “ofertada” ao chefe da comunidade também em decorrência dos serviços prestados pelo líder.

O Estado desenvolveu-se, de acordo com a esquemática elaborada pela história ocidental, em quatro idades, Antiga, Média, Moderna e Contemporânea, e, em todas elas, há registros da tributação imposta à comunidade. Já se percebe, aliás, nesses registros, o excesso de imposições tributárias, que, muitas vezes, levaram a revoltas. Senão vejamos.

Na Antiguidade Clássica, a Bíblia traz relatos acerca de que, no governo de Salomão, foram instituídos tantos tributos e tão altos a ponto de o povo não mais suportar. Seu sucessor no trono, o filho Roboão, ao assumir, mesmo diante das reclamações do povo para que amenizasse a gravidade das contribuições, persistiu com a alta carga imposta, levando a comunidade a retaliar violentamente os cobradores.2

Institucionalizado como estavam os impostos, na Roma Antiga, tem-se também a primeira relação entre inadimplência tributária e penalidade criminal, quando se estipulou que aquele que enganasse o censor, responsável por analisar a situação patrimonial dos cidadãos e estipular o quantum devido a título de tributo, seria punido sobre seu corpo e sua vida.3

Durante o longo período medieval, marcado pela divisão geográfica do poder, os senhores feudais exigiam vultuosas contribuições de seus servos, não apenas em forma de alimentos in natura, como em dias de serviço nas terras do seu senhorio. Ricardo Lobo Torres resume "no feudalismo o senhorio cobrava tributos e rendas patrimoniais, pois o feudo se caracterizava principalmente como "um conjunto rentável de direitos"4.

Seguiu-se a Idade Moderna. Época da centralização estatal e das Monarquias Absolutistas. Nessas, os reis impuseram contribuições de forma excessiva e com finalidade não democrática (leia-se, para custear o luxo da vida no palácio), resultando na afamada Revolução Francesa em 1789.

Ainda durante tal época, no Brasil, enquanto era colônia de Portugal, a lista de imposições devida à Corte era extensa (cite-se, a título de curiosidade, o quinto da exploração do ouro, o imposto sobre consumo que recaía sobre fumo, carne, aguardente; dízima dos pescados e das colheitas; foros, rendas, entre outros). Assim, não era, no entanto, diferente a situação dos países colonizados se comparada à dos demais países europeus que eram colonizadores. A situação posta gerou, inclusive, insurreições, como a Inconfidência Mineira, cujo estopim foi a instituição da derrama, mecanismo confiscatório no intuito de aumentar a arrecadação portuguesa.

Quanto à Idade Contemporânea, tornam-se desnecessários maiores comentários acerca da existência e quantidade de tributos pagos aos Estados, pois o dia-a-dia não deixa falhar a conclusão lógica da exorbitante carga tributária existente.

Pois bem, não se questiona a reconhecida necessidade de os governados proverem o governo dos meios bastantes para a realização das mais diversas atividades a que se incumbiu o Estado quando da sua criação. Assim, considerando as necessidades prementes de promover o bem-estar social e a dignidade e justiça a todos, assim como toda a estrutura funcional e a fonte de recursos econômicos indispensáveis para alcançar tais objetivos, conclui-se pela legitimidade ética e jurídica dos tributos, sendo, portanto, ônus da vivência em sociedade.

Aliás, relata Aliomar Baleeiro5 que o tributo é receita pública, “é a entrada que, integrando-se no patrimônio público sem quaisquer reservas, condições ou correspondência no passivo, vem acrescer ao seu vulto, como elemento novo e positivo.”, em clara alusão à fonte de receitas provedoras das atuações estatais.

Nada obstante, cabe tecer críticas não só acerca da significativa tributação que assola os contribuintes (realidade que não se observa somente nos dias atuais ante o breve histórico acima esposado), como da ineficiência estatal pela má gerência dos recursos destinados, disponibilizando serviços públicos inapto aos fins que se prestariam porque ofertados tardiamente ou de maneira parcial. Talvez por isso Ives Gandra da Silva Martins defina a imposição fiscal como uma “norma de rejeição social”6 e vai além ao afirmar que a verba tributária “presta-se a toda sorte de desperdícios, corrupção, favorecimentos, multiplicação de cargos e funções desnecessárias (...), a sonegação se justifica por exteriorizar resistência a uma carga tributária que gera efeito perto do confisco.”6 e vai além ao afirmar que a verba tributária “presta-se a toda sorte de desperdícios, corrupção, favorecimentos, multiplicação de cargos e funções desnecessárias (...), a sonegação se justifica por exteriorizar resistência a uma carga tributária que gera efeito perto do confisco.”7

Lado outro, convém ainda analisar em poucas linhas, apenas por amor à introdução histórica apresentada, a evolução da criminalização brasileira perpetrada no âmbito do direito tributário, considerando a importância deste diante da sua presença permanente na sociedade.

As Ordenações Afonsinas e Filipinas (século XV e século XVI/XVII, respectivamente), as quais consubstanciavam a ordem jurídica portuguesa e, em razão disso, tinham vigência nas suas colônias, previam uma certa proteção penal ao regular recolhimento dos impostos. O destaque das mesmas para a tutela criminal, no entanto, dirigiu-se ao patrimônio do senhorio real, pois havia a previsão de penas privativas de liberdade e até de morte (no caso, a Ordenação Filipina) para aqueles que “retirassem do senhorio real, sem mandado e carta, ouro ou prata, em pasta ou moeda, cavalos, rocins, éguas, armas, pão ou farinha, sob pena de corpos e haveres.”8

Já no Brasil Império (1822 a 1889), com o Código Criminal do Império de 1830, em seu art.1779, adveio a criminalização do descaminho, ilícito este referente ao não pagamento dos tributos devidos em decorrência de transações comerciais de importação e exportação. Tal opção foi seguida pelo Código Penal Republicano de 1890, no art. 2659, adveio a criminalização do descaminho, ilícito este referente ao não pagamento dos tributos devidos em decorrência de transações comerciais de importação e exportação. Tal opção foi seguida pelo Código Penal Republicano de 1890, no art. 26510, e pelo Código Penal de 1940, no art. 334.

Observa-se que o atual Código Penal brasileiro não tipifica crimes tributários, isoladamente apenas insere, no Título XI-Dos Crimes contra a Administração Pública, dentre diversos ilícitos que possuem repercussão fiscal, mas não o são propriamente ilícito fiscal, o crime de descaminho e, mais recentemente, com a alteração promovida pela lei n° 9.983/2000, passou a prever o crime de sonegação de contribuição previdenciária, art. 337-A, e o de apropriação indébita previdenciária, art. 168-A.

No Brasil Republicano (a partir de 1889), a Lei n° 4357/64, em seu art. 11, ampliou a hipótese de tipificação da apropriação indébita do art. 168 do Código Penal Brasileiro, incluindo a ação de não recolher, dentro de noventa dias do término do prazo, o Imposto de Renda retido na fonte pagadora.

Contudo, o advento da Lei n.º 4.729/65, de fato, foi o marco inicial que transformou os ilícitos meramente administrativos em crimes de sonegação fiscal, pois definiu e compilou, à época, todas as condutas relacionadas ao não recolhimento de tributos. Hoje, a matéria encontra-se regulamentada pelo capítulo I da Lei n° 8.137/90 e pelos três tipos penais frisados no Código Penal Brasileiro já citados.

1.2 A Lei n° 8.137/90

O regulamento referido trata dos crimes contra a ordem tributária nos arts. 1º e 2º, quando tais ilícitos são praticados por particulares, constituindo-se em crimes comuns, pois “pode ser praticado por qualquer pessoa”11, e no art. 3º, o qual define ilícitos praticados por funcionários públicos, sendo crime próprio, uma vez que “exige determinada qualidade ou condição pessoal do agente”11, e no art. 3º, o qual define ilícitos praticados por funcionários públicos, sendo crime próprio, uma vez que “exige determinada qualidade ou condição pessoal do agente”12, no caso, de acordo com a definição do art. 327 do Código Penal Brasileiro, exercer cargo, emprego ou função pública, ainda que transitoriamente ou sem remuneração.

Além disso, a Lei nº 8.137/90 também discrimina os crimes contra a ordem econômica e as relações de consumo (art. 4º ao art. 7º), estabelece multas para os crimes contra a ordem tributária (art. 8º ao art. 10 - capítulo III) e dá demais disposições gerais no capítulo IV.

No presente artigo, destaque-se, será feito um recorte temático da legislação que trata sobre crimes tributários para fins práticos de abordagem. Assim, os arts. 334, 337-A e 168-A, todos do Código Penal Brasileiro, e o art. 3º da Lei n° 8.137/90 (crime funcional contra a ordem tributária) serão de planos excluídos da apreciação, não por desmedida insignificância, mas sim por limitação pedagógica. Ressalte-se, contudo, a contumaz crítica da doutrina13 acerca da opção legislativa brasileira de previsão das normas incriminadoras em redundância, visto que os tipos definidos no art. 3º da Lei 8.137/90 já estavam dispostos no Código Penal Brasileiro (Título IX – Capítulo I, entre eles: extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento, art.314; corrupção passiva, art. 317 e advocacia administrativa, art. 321), sendo desnecessária outra tipificação pela novel lei com a única diferenciação de exigência de dolo dirigido ao fim de acarretar pagamento indevido ou inexato de tributo ou de evitar o lançamento do mesmo. Caso não haja tal elemento subjetivo específico, o delito enquadrar-se-á em um dos ilícitos funcionais previstos no diploma penal brasileiro, que os abrange.

Quanto aos arts. 1º e 2º da Lei n° 8.137/90, far-se-á explanação sobre aspectos comuns dos referidos crimes, todavia, só se fará a diferenciação das ações-meio do tipo penal estabelecido no art. 1º, qual seja, supressão ou redução de tributo.

1.3 Ilícito penal, Ilícito administrativo e bem jurídico tutelado

Inúmeras são as tentativas doutrinárias de diferenciar os ilícitos civis, administrativos e penais. Paulo José da Costa Júnior em parceria com Zelmo Denari14 já invocaram:

Enquanto os ilícitos penais traduzem turbação da ordem pública e social- substractum do Estado soberano-, os ilícitos administrativos implicam a violação dos deveres de colaboração com a Administração Pública; e os civis são aqueles próprios da relação de direito privado.

Em verdade, o princípio da unidade ontológica do ilícito impossibilita a existência de diferentes ofensas a searas tidas autônomas do direito (civil, administrativo, tributário, penal, ambiental...). Isso porque o ilícito é um só. Ora, o ilícito significa o descumprimento a um preceito normativo geral, ou seja, dado um fato descrito na norma hipotética, prevê-se conduta tal; caso essa conduta não seja obedecida, ter-se-á o ilícito. Ou ainda, a hipótese de incidência da norma já é um comportamento descritivo15, que se, por ventura, não seguido, gera a ilicitude.

Não há, assim, verdadeira distinção entre “ilícitos administrativos” e “ilícitos penais”. A classificação vergastada é somente fruto da estratégia do legislador que condiciona a tutela penal a determinados bens jurídicos e a tutela do direito civil lato sensu a outros valores, ou seja, de acordo com a relevância da ordem de valores eleitos, será imposta diferente forma de proteção pelo mesmo ordenamento jurídico.

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