A conspiração grega (substituição)
Por Ivani de Araujo Medina | 16/02/2010 | HistóriaA conspiração grega
Quando algo acontece, a primeira pergunta é “O que houve?”, a segunda “Como aconteceu?” e a terceira “Por que aconteceu?”. Quando distantes do evento, apenas as duas últimas perguntas continuam a fazer sentido. Sabemos que há dois mil anos atrás, houve no mundo uma mudança radical com o advento do cristianismo. No entanto, as duas perguntas finais para este advento continuaram sem resposta. A força do fenômeno religioso se impôs a elas.
Contudo, para a melhor compreensão do cristianismo como um fenômeno político e cultural, precisamos levar em conta dois aspectos reveladores, que ficaram de fora das considerações da cultura dominante oferecidas nos estabelecimentos de ensino. O primeiro é o sentimento anti-romano dos gregos. Diga-se de passagem, que nesse sentido os anatolianos eram os mais articulados entre eles. O segundo é a guerra cultural que se travava entre o helenismo e o judaísmo no primeiro século.
“Como aconteceu?”
Levados para Roma como escravos e em grande quantidade, altamente valorizados pelas suas especializações, além de revolucionarem as artes e os ofícios e dominarem a cultura, o ensino e a educação naquela cidade, já no final da Era Antiga, os anatolianos formavam uma grande percentagem da classe média em Roma. O domínio cultural grego progredia tanto, que a criação de um império romano sugere uma resposta natural aos interesses daquela gente.
O Senado Romano era um entrave aos propósitos desses novos “romanos” e dos patrícios que ficaram por lá, no Oriente. Um imperador divinizado, à moda oriental, lhes seria mais gratificante. Ao contrário, os romanos legítimos e menos favorecidos queriam a restauração da república e dos antigos costumes. Mas, aquela gente bem articulada sabia conseguir o que desejava. Nesse campo de batalha os romanos eram inexperientes demais. Não estavam preparados para esse novo tipo de confronto no campo das idéias.
O imperador Cláudio (41-51) introduziu o costume de chamar para seus ministros e principais conselheiros políticos esses cultos, talentosos e abastados libertos anatolianos, que possuíam um poder jamais atingido por um senador. Os três secretários de Estado: Palas (Finanças), Narciso (Secretaria de Estado) e Calisto (Petições), são bons exemplos de tal situação. Também Nero (54-68) esteve envolvido por poderosos e temido libertos, como Paris, Hélio e Epafrodito.
A guerra cultural entre o helenismo e o judaísmo ─ os judeus resistiam à proposta grega de adesão ao ideal universal helenístico, para a formação de uma Humanidade constituída por um único povo, sob uma única cultura e sob um único governo ─ estalou com absurda violência, no primeiro século, instigada pela difamação de escritores gregos que disseminavam o ódio anti-judaico.
Palas, o ministro das Finanças, já havia nomeado seu irmão Félix como procurador naquela região. Instituiu-se, então, uma ardilosa tradição de corrupção e maus tratos junto aos judeus. A chamada guerra romano-judaica, 66-70/3, vendida até hoje como uma reação dos judeus contra o domínio romano, foi provocada pelo ódio grego e teve a sua deflagração resultada dos abusos do oficial grego nomeado procurador, Géssio Floro, vindo da Anatólia ou Ásia Menor (como a chamavam os romanos).
Diante desses fatos, o que poderia justificar o súbito interesse grego pelas crenças judaicas no século II, uma vez que esse ódio não se abrandou?
O judaísmo encontrava-se espalhado em bairros nas periferias das cidades. A crescente curiosidade por aquele estranho modo de vida, cuja obediência e fidelidade a um único deus, que prometia prosperidade aos seus seguidores, contra os deuses pagãos que prometiam nada, fazia com que se registrassem conversões por toda parte. Sobretudo as mulheres formavam uma categoria de meio-convertidos, os sebómenoi (os que temem a Deus), dividindo a família. Muitos homens evitavam a conversão por considerarem a circuncisão repugnante.
“Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, [...]” (Gn 2, 28) era para a cultura helênica uma dificuldade difícil de contornar. Para os gregos, religião sempre foi coisa de mulheres e escravos. Um instrumento do Estado para manter a pressão interna daquelas sociedades paroquiais do período clássico. Mas, o ideal universal helenístico mudara tudo! Como conter as conversões, a proliferação e a conseqüente expansão judia em seus domínios? Temiam pelo próprio futuro e o da sua devotada cultura.
Tudo isso, quando o poder de Roma havia lhes acenado com grandes possibilidades. As legiões romanas eram a segurança das riquíssimas cidades da Ásia Menor contra o perigo persa. A pirataria havia sido aniquilada dos mares e o comércio se intensificara. Os maiores centros industriais e comerciais eram gregos: Ásia Menor, Síria e Egito. A arrecadação romana era grata ao empenho deles. Se não pode vencer o inimigo, se junta a ele e se torne necessário.
Este mesmo princípio ou a “força da impotência” valeu também na luta contra o judaísmo. A sanguinolência iniciada com a guerra de 66-70/3 e a destruição do templo não resolveu o problema e ainda o agravou com a dispersão. Os teimosos judeus não abriram mão da sua tradição, que se espalhara ainda mais pelo mundo. Só mesmo um antídoto para resolver a questão.
“Por que aconteceu?”
Todavia, o sentimento anti-judaico continuava intenso, especialmente em Alexandria. Os anatolianos sabiam que era preciso mudar para permanecer. A religião era o único caminho, inclusive para reunir povos de costumes diferentes no cumprimento do velho ideal universal helenístico, que era a perpetuação da memória grega. Até mesmo o prestígio ao culto das divindades locais muito havia lhes ensinado sobre a prosperidade das indústrias anatolianas. Recursos não poderiam faltar no financiamento desta empreitada. No entanto, como os gregos não possuíam uma política religiosa para tocar enfrente seus objetivos, o jeito foi tomar a dos seus maiores desafetos ─ o Antigo Testamento. Assim estariam resolvidos dois problemas de uma vez só.
Para tanto, precisavam criar um atalho. Uma tarefa para filósofos e historiadores, pois um elo histórico precisava uni-los ao Antigo Testamento. Por outro lado, o sentimento anti-judaico, que envolveu alguns imperadores, precisava de arrefecimento. Foi justamente na segunda metade do segundo século, sob o imperador Antonino Pio (138-161), soberano muito tolerante com os cultos estrangeiros, que o judaísmo saiu da ilegalidade. Coincidentemente, os primeiros propagandistas cristãos começaram a chegar à capital do Império, vindos em sua maioria da Anatólia. Marcião (Ponto, norte da Anatólia) chega em 140, Justino (Samaria, via Anatólia) em 150, Policarpo (Anatólia), em 155 e Hegesipo (Anatólia), em 160, entre outros. No final do século II são muitas as escolas cristãs de Roma para a formação dos homens que espalhariam o cristianismo pelo mundo. Note-se que os pais da igreja eram todos gregos e na maioria anatolianos.
O judaísmo grego foi mais tolerante com o modo de vida helenístico. Aboliu rigidez mosaica e a circuncisão. Reuniu a família abrindo os braços para todos, não haveria mais meio-convertidos nas periferias das cidades. Para o ideal universal helenístico não existia “os outros”. A aspiração por uma Humanidade unida em um só povo, se via obrigada a coexistir com aqueles que se negaram a ela. Os judeus jamais foram perdoados por isso. Assim se explica o anti-judaísmo do pseudo-judaísmo dos evangelhos, que veio desembocar no anti-semitismo do mundo moderno.
A inexistência de escritores cristãos no século I é compensada pelas referências “históricas” dos escritores cristãos do século II, III e IV. Sabidamente, nenhum escritor do século I ou da primeira metade do século II fez qualquer referência ao cristianismo, exceto as fraudes, naturalmente. Necessidade que, por si só, já mostra tudo. Do lado judeu verificamos a total inexistência das alegadas evidências. O cristianismo do século I é puramente literário, nada daquilo que assegura o Novo Testamento existiu.
“O grego era poeta e artista, apto para imaginar fábulas e formas cheias de encanto, de graça e vida. Era sábio e filósofo, inclinado a levar até a extrema audácia a reflexão sobre o universo, sobre a natureza e sobre si mesmo. Repartiam-se entre uma tendência racionalista, que o conduzia às mais ousadas negações, e uma tendência mística, que seu antigo e ininterrupto contato com o Oriente sempre alimentara, mas à qual a simbiose criada pela conquista de Alexandre atribuía vigor especial.” (AYMARD; AUBOYER, 1974, t. II, vol. III p. 200.)
Segundo o historiador Edward Gibbon, o cristianismo teria sido o mais forte motivo de transformação e, portanto, de decadência do império romano. Voltaire também havia se referido a isso. A conspiração grega supera a ficção hollywoodiana com seus efeitos especiais. Hoje vivemos das heranças gregas e nem nos damos conta disso. A propósito, a cultura ocidental é heleno-judaica (o primeiro nome indica a origem) e não judaico-cristã, como se ilude até hoje.
Bibliografia
AYMARD, André; AUBOYER, Jeannine. História geral das civilizações. São Paulo: Difusão Européia do Livro. 1973.
DANIÉLOU, Jean; MARROU, Henri. Nova história da Igreja: dos primórdios a São Gregório Magno. Petrópolis: Vozes, 1966.
FERRERO, Guglielmo. Grandeza e decadência de Roma. vol. I, Porto Alegre: Globo, 1965.
GIBBON, Edward. Declínio e queda do Império Romano. Ed. abreviada. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
GRANT, Michael. História das civilizações: o mundo de Roma. Lisboa: Arcádia, 1977.
LÉVÊQUE, Pierre. O mundo helenístico. Lisboa: Edições 70, 1967.
TOYNBEE, Arnold J. Helenismo – História de uma civilização. Rio de Janeiro: Zahar, 1983.