A conduta dos anjos

Por Bruno Brandão | 07/02/2013 | Contos

Nos primórdios da humanidade, quando religião, comércio e organização social ainda não eram conhecidos, a divindade suprema – cuja forma, essência e conduta sequer se sabia – decidiu que a consciência humana devia ser consolidada, enviando à Terra alguns emissários de seu infinito conhecimento. Vieram diversos seres alados, envolvidos por uma energia de natureza incompreensível e capaz de se manifestar em diversas tonalidades, que externavam o humor daquele que as produzisse. Essas criaturas, embora estivessem num plano superior ao nosso, podiam adquirir formas humanas e interagir com as pessoas, determinando o curso da evolução social.

Seus nomes eram incógnitas, já que eram dotados de uma comunicação particular, que dispensava gestos, palavras e olhares. Eram comprometidos com uma única missão, disseminando seu caráter por onde passavam e acreditando fazer o melhor pelo futuro deste planeta. O que não sabiam, porém, era que sua presença motivava mais conflitos que prosperidade, mais perguntas que soluções, mais tristezas do que alegrias, mais sofrimento do que paz...

Num episódio particular desse processo de colonização, quando os domínios de dois emissários se sobrepõem, a busca pela exaltação de uma conduta cessa, e ambos tentam denigrir a imagem alheia a fim de conquistar mais seguidores. O mensageiro das águas, venerado como o mais atraente, mesmo que seus traços fossem idênticos aos dos demais, decidiu, com a cautela que lhe era de costume, promover um encontro pacífico entre as lideranças inimigas.

Com propósitos obscuros, no entanto, esperava que a mulher mais capacitada de seu reino iniciasse um ataque, envenenando o rival após comprometer sua guarda com a sensualidade. Enquanto preparava minuciosamente os passos dessa revolução, ele não tinha ideia de que seu maior adversário também conspirava, acreditando que levar o guerreiro mais forte e bem armado ao encontro garantiria a ascensão de seus hábitos.

Chegado o dia tão aguardado, os supostos símbolos de paz deixaram suas cidades com aplausos de multidões, que acreditavam no triunfo daquela jornada. Os emissários, porém, estavam dispostos a tudo pela vitória, acompanhando o trajeto do representante inimigo a fim de descobrir mais e mais fraquezas. Contudo, de nada adiantou tal esforço, pois ambos tiveram a mesma ideia e acabaram por saber da conspiração alheia, retornando, assim que percebida a vulnerabilidade de seu protegido.

Tarde demais para cancelar a operação. Defrontaram-se no ponto de encontro quando seus pupilos já podiam ver um ao outro. Mantendo o orgulho que lhes era comum, ergueram as asas com imponência, afirmando estarem com a vitória.

Eis que surge um terceiro anjo, este, porém, desvinculado a tal rivalidade. Olhando para os lados, como se não se importasse com o passar do tempo e iminente combate, disse aos demais:

_A vitória é minha, seus tolos! E repetiu com tom ainda mais esnobe: - Vocês falharam em depositar tanta confiança nessas criaturas! Deviam saber que seriam facilmente traídos por aqueles corpos sem emoção. Pagarão o preço por isso, cedendo, a mim, a vitória!

Intrigados com falas tão desconexas, os mensageiros da água e do fogo sequer retrucaram, refletindo sobre esse pronunciamento inesperado. Perguntaram, então, quase que em coro, o motivo da aparição do emissário da vida, renovando a expressão de fúria enquanto aguardavam a resposta. Ele, por sua vez, envolvido por uma serena aura esverdeada, disse que a humanidade não desejava o conflito, almejando por dias em que poderia evoluir em paz. Esse era o ciclo estabelecido pela natureza: progredir a todo custo.

Indagado por ignorar o bem-estar humano, garantiu que as metas coletivas trariam maior satisfação às pessoas, sendo o trabalho a única forma de realização plena. Abominando o prazer, fruto de uma atividade sem propósito, esperava preencher as lacunas de cada rotina, de forma que todos os homens trabalhassem por um futuro ao lado do ser supremo.

Entretanto, ainda incompreendido, decidiu revelar completamente a trama, assegurando que aquelas lideranças não passavam de um casal separado por uma irracional disputa. Ele havia prometido uma convivência pacífica sem precedentes e a mais pura saciedade, que pode ser alcançada apenas no esforço incessante.

Desconfiados de seus protegidos, os emissários rivais puseram-se a observar atentamente o desfecho daquele encontro, com esperança na lealdade de seus seguidores. Foram então decepcionados pelas pessoas de maior confiança, indecisos entre o desespero e a revolta. O outro mensageiro, porém, comemorava a agregação de uma extensa região ao promover a simples união de um casal. Nesse momento, os emissários do fogo e da água determinaram que não seriam prejudicados, concentrando sua energia para fins destrutivos, novamente em sincronia, enquanto desafiavam os demais. Logo, estavam todos prontos para um combate, munidos de um ódio jamais presenciado e prestes a sacrificar os traidores para recobrar a honra.

A ponto de quebrar a barreira do espaço-tempo e impor sua conduta violentamente, os três emissários foram envolvidos por feixes de uma luz divina, esta, proveniente do mais forte entre os anjos. Enviado para conter os conflitos, sua energia aproximava-se da divindade suprema e sua devoção era destinada à ética e generosidade, representando o caráter ideal com que se sonha hoje. Seus métodos, porém, foram forjados no combate, tornando sua presença um sinônimo de punição às condutas imperfeitas.

Sem dizer nenhuma palavra, levou seus prisioneiros até o céu, deixando-os como estrelas. Em seu contínuo esforço para nos manter no caminho correto, ele destinou uma constelação para encarcerar os anjos desvirtuados – conhecida como Cruzeiro do Sul – mostrando que há espaço para novos cativos, a fim de nos deixar atentos a seus ensinamentos. No entanto, o grande mal continua à solta, percorrendo a imensidão de nossos corações à procura de um espaço para se alojar e corromper os indivíduos. Esse é o emissário das sombras, que esteve sempre em conflito com a luz, mas que foi esperto o bastante para não ser dominado pela justiça, agindo sempre de forma sorrateira.

Permaneceu livre, também, outro intenso vício social: falar da vida alheia. Este, promovido pelo mensageiro do vento, foi facilmente recebido pela humanidade, que vê, na dor de outros, uma forma de sentir-se bem quanto às dificuldades enfrentadas. Restaram ainda muitos anjos com poucos adeptos, que não representam ameaça à ordem mundial, mas que podem, a qualquer momento, receber a visita do inquisidor.

Sendo assim, a pureza e a honestidade ficaram enfraquecidas pelo desejo de aplicar o julgamento divino, enquanto as sombras estavam livres para espalhar a discórdia por meio do ódio e da corrupção. O mensageiro da terra, por sua vez, procurou viver em paz, raramente chamando a atenção do juiz celestial, pois suas dispersas ações na sociedade limitam-se à manutenção da ignorância e da prepotência, atitudes cultivadas nas montanhas do egocentrismo.

Nos momentos de distração do emissário da ética, seus três prisioneiros livram-se do isolamento, enviando das estrelas a fúria, a futilidade e o cansaço para atormentar a população que, mesmo aderindo à integridade moral, idolatrava os ideais malignos, corrompendo aqueles que acreditam na bondade como caminho para a salvação. Com isso, a ordem, que deveria ter se estabelecido para o desenvolvimento da sociedade, deu lugar ao caos, tornando o trabalho mensageiro de anos, décadas ou séculos, inútil.

Contudo, assim como pode levar tímidos e fragmentados conhecimentos, o vento pode carregar extensas mentiras que ganham a eternidade, podendo fazer do que foi discutido um mero conto conveniente. No entanto, mesmo que realidade e imaginação tenham se misturado, não podemos escapar do trágico destino de perecer enquanto nossas palavras e ações trocam infinitamente de corpo, esperando que alguém as corrija e coloque no recipiente mais adequado: o respeito.