A CONDIÇÃO FUNDAMENTAL: A DECISÃO DA MULHER COMO MARCO INICIAL...

Por Thiago Wesley Costa Machado | 31/08/2016 | Direito

A CONDIÇÃO FUNDAMENTAL: A DECISÃO DA MULHER COMO MARCO INICIAL DA PERSONALIDADE JURÍDICA DO NASCITURO

 

INTRODUÇÃO

A questão do aborto e o embate entre as teorias que buscam a melhor interpretação do artigo 2º do Código Civil é tema controverso, e que ultrapassa as fronteiras do direito civil para encontrar repercussões no direito penal, no direito constitucional, e em reflexões abrangentes sobre o papel do Estado na imposição legislativa de convicções morais.

São três as correntes civilistas principais que procuram explicar o momento inicial de surgimento da personalidade civil do nascituro. Resumidamente, tem-se a corrente concepcionista, no qual a personalidade nasce na concepção. A corrente natalista, em que a mesma tem início no nascimento com vida. E a corrente da personalidade condicional, onde a personalidade se iniciaria na concepção, mas se subordinaria à condição suspensiva do nascimento com vida. Defender-se-á, neste trabalho, uma teoria condicional da personalidade, mas com uma distinção fundamental: não seria o nascimento com vida a condição suspensiva a partir do qual teriam eficácia os direitos civis do nascituro, mas sim a decisão da mulher em prosseguir ou não com a gravidez, segundo suas possibilidades e crenças filosóficas particulares. Esta é a condição fundamental ao qual estariam subordinados os direitos do nascituro.

Opta-se por essa corrente devido a uma conclusão definitiva da leitura de diversos artigos e obras sobre o assunto: por detrás dos extensos argumentos técnico-jurídicos sobre interesses do nascituro, esconde-se um aguerrido debate ético sobre a sacralidade da vida humana. Sacralidade essa que pode vir tanto de uma moral cristã quanto das verdades universais de um Direito Natural, mas que condena igualmente todo atentado contra a vida. Seria indigno de uma sociedade que se julgue civilizada, argumentam tais juristas, conceder permissão jurídica a um procedimento que pressupõe a descartabilidade da vida humana, e que nos aproximaria moralmente dos hediondos ordenamentos jurídicos dos estados totalitários do século XX. Seria sob esse prisma que deveria ser interpretado o caput do artigo 5º da Constituição Federal e o princípio do direito à vida, tornando inconstitucional toda forma de interrupção antecipada da gravidez.

Mas a legalização do aborto e o respeito à decisão fundamental da mulher, conforme se entende aqui, de forma alguma significaria uma indiferença ao valor intrínseco da vida, nem sua banalização. Negar que um feto em estágios iniciais tenha interesses jurídicos não é o mesmo que demonstrar desprezo pelo seu destino. A idéia do que é ou não sagrado é por demais subjetiva e íntima para que se pretenda adotar uma posição única e oficial sobre o assunto. Deixar para a mulher tal decisão reafirmaria a liberdade de cada um para seguir seu próprio caminho em questões morais controversas, constituindo uma violência que caiba ao Estado impor uma moral majoritária às vidas particulares de seus cidadãos.

Dito isso, como ficaria a interpretação da segunda parte do artigo 2º do CC/02: a personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro (grifo nosso)? A teoria aqui proposta entende esta parte do dispositivo não como uma afirmação de personalidade jurídica, mas como uma exortação à responsabilidade. Uma vez decidido pelo prosseguimento da gravidez, são os responsáveis obrigados a tomar todas as providencias para que o nascituro tenha uma gestação sadia e segura, assim como o usufruto imediato dos direitos que lhe garantirão um futuro digno.

Seria leviano que o Estado permitisse a uma mãe, uma vez decidida pelo nascimento do filho, agir de forma negligente ou imprudente em sua gestação, negando deliberadamente ao filho cuidados essenciais a sua saúde ou ao seu desenvolvimento futuro. Ou que seus direitos, inclusive patrimoniais, fossem desconsiderados, negando-lhe condições que talvez já sejam ofertados aos seus irmãos já nascidos.

A decisão da mulher, portanto, torna-se aqui o marco jurídico fundamental ao estudo da personalidade: uma vez decidida pelo prosseguimento da gravidez, o Estado reconhece que o nascituro, salvo eventos imprevisíveis, nascerá e será um membro ativo da sociedade, concedendo-lhe imediatamente os direitos que já reconhece a todos os seus outros cidadãos. Decidindo-se pelo não prosseguimento, o Estado respeitará a decisão individual da mulher, reconhecendo sua neutralidade em algo que envolve profundas questões e crenças pessoais, em que não lhe cabe intervir.

É fundamental que se faça uma distinção crucial entre duas afirmações: a de que o feto é uma pessoa, com interesses jurídicos próprios; e a de que a vida humana tem uma importância intrínseca, e é um imperativo humanista protegê-la. Quanto a esta última afirmação, não há discordância séria digna de nota. Seja a favor ou contra o aborto, ninguém defende que a vida seja despida de toda e qualquer consideração ética, ou que um embrião, por estar ainda em estágios incipientes de desenvolvimento, seja tratado como qualquer outra forma de vida orgânica de composição simples. Muito pelo contrário, o crescente conhecimento da humanidade sobre os mecanismos da Genética é diretamente proporcional à necessidade de uma bioética que reflita sobre os dilemas que advêm desse conhecimento tão profundo quanto potencialmente perigoso, assim como de uma legislação correspondente que acompanhe tais discussões. A divergência central, porém, está na primeira afirmação feita: a de que o feto é uma pessoa com interesses jurídicos constitucionalmente protegidos.

O próprio ordenamento jurídico brasileiro, no entanto, parece desmentir esta tese. O Código Penal, por exemplo, admite excepcionalmente o aborto nos dois incisos do artigo 128: os casos de aborto terapêutico e humanitário. Ainda que excepcionais, as duas hipóteses confirmam a tese de que a Constituição não é contrária a toda e qualquer forma de interrupção da gravidez, e que não considera o feto uma pessoa física tal qual uma criança já nascida. Do contrário, admitir-se-ia a hipótese de uma criança de 5 anos, fruto de violência sexual, ter a vida interrompida pela vontade da mãe, incapaz de se recuperar do trauma, hipótese odiosa e impensável sob qualquer ângulo. A criança e o feto gozam de status jurídicos diferentes. O princípio do direito à vida protegeria os direitos do indivíduo na seara civil, mas os negaria em matéria penal? Uma interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro não pode admitir que um mesmo alicerce sustente dois edifícios normativos distintos e antagônicos.

Temos ainda uma análise da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54 e a Ação de Inconstitucionalidade 3510, ambas julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, que decidiu sobre a legalidade da Lei de Biossegurança e o uso de células tronco embrionárias. Embora ambas não versassem sobre o aborto especificamente, levaram a profundas discussões éticas sobre os status jurídicos de embriões que revelam uma inclinação jurisprudencial a negar ao feto o status de pessoa com personalidade jurídica, assim como rejeita o princípio do direito à vida como princípio absoluto.

A interpretação radical e intransigente do caput do artigo 5º da Constituição Federal, longe de tutelar a vida, têm provocado situações de injustiça e violência institucional, em que mulheres se vêem coagidas pelo Estado a prosseguir em gestações que não têm condições, seja de qualquer ordem, de levar a termo. Em que concepções majoritárias do sagrado e da moralidade são impostas à totalidade dos cidadãos, ao invés de honrar a tradição liberal segundo a qual um Estado é tanto melhor quanto mais se abstêm de tutelar a vida privada de seus cidadãos. Que desconsidera que a interrupção prematura e voluntária de uma gravidez por uma mulher não se dá por desprezo ao milagre natural que é a vida humana, muito pelo contrário: ocorre pelo entendimento de que esta é tão intrinsecamente valiosa que é uma irresponsabilidade gestá-la sem as condições mínimas para que ela se desenvolva em sua plenitude.

Capítulo 1: O aborto e o direito civil

1.1: A concepção como início da personalidade

A teoria concepcionista, como o próprio nome já revela, afirma que a personalidade jurídica do nascituro se inicia no momento da concepção. A partir deste momento-chave o nascituro gozaria de imediato de todos os direitos inerentes a uma pessoa. Esta é a corrente preferencial dos civilistas brasileiros, como Silmara Juny Chinelato, Pontes de Miranda, Rubens Limongi França, Maria Helena Diniz, entre outros.

Tal preferência se dá pelo entendimento de que esta é a teoria que melhor se coaduna a um Direito Civil que retirou o patrimônio do centro de suas preocupações, para colocar o homem e seus direitos inerentes como eixo de sua normatividade. A partir da concepção o embrião se individualizaria como pessoa, um ser com patrimônio genético próprio, que não se confunde com a mãe nem com o pai. Ensina-nos Silmara Chinelato[1]:

A terceira corrente doutrinária é por nós denominada concepcionista ou verdadeiramente concepcionista, para diferenciar-se da teoria da personalidade condicional. Sustenta que a personalidade começa da concepção e não do nascimento com vida, considerando que muitos dos direitos e status do nascituro não dependem do nascimento com vida, como os Direitos da Personalidade, o direito de ser adotado, de ser reconhecido, atuando o nascimento sem vida como a morte, para os já nascidos.

Exemplificando ainda melhor a definição e defesa desta teoria, temos Flávio Tartuce[2]:

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