A chuva e o escrivão de órfãos

Por Bernard Gontier | 01/12/2011 | Crônicas

 

 

Devido as fortes chuvas desta madrugada, toda a freguesia ficou encharcada. A típica população, com fama de aventureira e arredia, isolada que vive por causa das dificuldades, pranteou por toda a manhã junto ao Escrivão de Órfãos, esclarecendo ser muito difícil fazer fortuna nessa situação, sobretudo quando tem de assistir à passagem de outros numerosos concidadãos, que partem com suas famílias e seus agregados, em busca de ouro e riquezas.


Litígios foram inevitáveis e ficou acordado que a
quantidade de impostos devidos à União torna necessária a criação de novos impostos.

O ordenamento da natureza, entretanto, entusiasma o Escrivão de Órfãos, que planeja touceiras de bambus e rede de irrigação, apesar de que a água, nesses idos, dá a impressão de jamais rarear. Mas nunca se sabe.

A casa do Escrivão é perfumada à custa de um braseiro com folhas de alfazema e açúcar.

A multidão pranteia. Finge-se que são silvos, e que o conteúdo desse pranto nasceu de ideologias tortas de classes abastadas, sendo assim preferível ignorar.

Parte da freguesia está sendo dividida amigavelmente, e doações de terras submersas feitas pelo Escrivão e seus correligionários já acenam para um futuro onde moças animadas poderão cantar e tocar violão na varanda.

Mesmo assim, até o presente momento, é muito difícil imaginar tal cenário.

Impossibilidades de comunicação dificultam a ordem estabelecida, impedindo que homens de valor e posição sejam escolhidos entre a população da freguesia, que, como já se disse, pranteia.

O Escrivão de Órfãos contratou, a toque de caixa, doze carpinteiros, quatro ferreiros, um oleiro, um alfaiate e dois sapateiros e os incumbiu de formar uma força local urgente, com prazo de até quinze dias, para solucionar os problemas da freguesia e dos prantos.

Batalhões permanentes e da reserva foram convocados.

Felicio, ex-secretário, que trabalhou para o avô do Escrivão e hoje ajuda a perfumar a casa com essências de jasmins, madressilvas, malva cheirosa, damas da noite e manacás, se recusou a prestar qualquer tipo de depoimento, repetindo apenas que foi um aguaceiro natural da estação e que os pranteadores devem prantear noutra freguesia.

A esposa do Escrivão, que não quis se identificar, disse posteriormente que o mundo diário é demarcado por ritos familiares e políticos, cujas regras normais de dominação e trabalho certificam-se da manutenção da hierarquia, mesmo debaixo d‘água.

Uma secular ribanceira, próxima a casa do Escrivão, passou a ser o ponto de encontro de seus correligionários, desde o início da estação.

O Escrivão de Órfãos, preocupado com a qualidade e a variedade das plantas da região, disse apenas que com toda essa água, grandes são as chances da freguesia tornar-se um paraíso.