A CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA: CONSTRUÇÃO FICCIONAL DA HISTÓRIA PORTUGUESA E DO BRASIL
Por Roseli Gonçalves | 08/09/2009 | LiteraturaA carta de Pero Vaz de Caminha diz respeito ao estudo do principal cânone do Brasil ela que é utilizada para “esclarecer” a historia e a literatura brasileira por meio de uma ficção. Este artigo esclarece algumas dúvidas a respeito desta carta muito utilizada nas escolas e nos livros didáticos para explicar o inicio da colonização e literatura brasileira. Neste trabalho será feito uma análise levando em consideração os pensamentos de Flávio Kothe, dando ênfase às questões que a tornaram um dos cânones brasileiros, relacionando seu papel ficcional e histórico principalmente na literatura brasileira. Mostrando a necessidade de uma desmistificação na formação tanto da literatura brasileira como também na historia do povo brasileiro.
INTRODUÇÃO
A chegada de portugueses em terras americanas no ano de 1.500 desencadeou diversas controvérsias entre elas a legitimidade ou não da exploração das terras americanas pelos portugueses. Muitas outras nações européias reivindicavam a exploração das novas terras. A solução encontrada pelos portugueses foi a criação de um documento que legitimasse a posse da terra. Se tratando de um documento oficial era um relatório de prestação de contas dos fatos públicos que afirmava historicamente, já que nessa perspectiva a história trabalha com documentos, a posse portuguesa. A Carta escrita por Pero Vaz de Caminha tem como principais pontos o mapeamento das condições e possibilidades da terra e a segurança de tornar a nova terra em propriedade portuguesa, além de tornar a posse pública.
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* Graduanda do curso de Letras Língua Portuguesa da Universidade Federal do Pará.
Desmistificando a Carta de Caminha
Na história da Literatura Brasileira, um dos textos em torno do qual se identifica grande teor polemico é a carta de Caminha, tratada pelos manuais de história e de literatura como documento que atesta a presença da esquadra de Pedro Álvares Cabral no Brasil, legitimando-se a posse da terra, bem como vínculo cultural que nos faria herdeiros diretos da tradição lusitana. Sendo que os cânones jurídicos e literários nos impõem esta carta como documento que plasma a certidão de nascimento do Brasil, fato que levou muitos dos brasileiros acreditarem que realmente foi o que aconteceu, ou seja, os portugueses descobriram o Brasil e salvaram os índios e isso nos fez herdeiros dos portugueses.
No entanto, no sentido totalmente oposto, isto é, desmistificando a carta de Pero Vaz de Caminha (e seu conteúdo), Flávio Kothe em o Cânone Colonial, desconstruiu a ficção literária que a Carta de Caminha engendrou, denunciando seu papel ideológico, mostrando que os traços heróicos referente à carta, marcam posse fictícia, que no plano fático fez-se pela força das armas.
A inclusão da carta de Caminha no Cânone literário, se apoiaria na tese de Terry Eagleton, no sentido de que textos literários não sejam somente textos ficcionais, como quer a teoria convencional, mas para KOTHE (1997) "A Carta de Caminha, que não foi escrita para ser publicada e cuja primeira edição é somente de 1817, tinha características adequadas para ocupar posto estratégico no que se queria que fosse a formação e a determinação do cânone da literatura brasileira, onde costuma ser vista como o seu grande momento inaugural. Isso é estranho, pois a Carta sequer é um texto literário nem de autor brasileiro. Descoberta no século XIX, ela não estava 'no início': este foiconstruído, inventado (...)". Para kothe, a carta de Caminha é documento jurídico português, e não um texto literário brasileiro,isto é, foi uma ficção jurídica, não uma ficção literária que protagoniza três finalidades muito claras: a) promove a filiação do Brasil à formação portuguesa; b) mantém a hegemonia da oligarquia lusa sobre minorias étnicas aqui encontradas, e para aqui posteriormente deslocadas; c) impõe visão do Brasil como uma utopia.
A Carta de Caminha é uma construção ficcional da história portuguesa e do Brasil, no primeiro momento ela era tida como um documento com o objetivo de informar, no entanto houve a passagem para o plano literário (Cânone), ou seja, há uma saída do documento para o ficcional (o texto é alterado por meio da arte de composição) tornando a carta como texto literário.
Ao utilizá-la como objeto de analise, identificamos elementos culturais que a compõe. Na Carta, conforme se constata, há bastante indicativos que sinalizam o olhar eurocêntrico e de superioridade que permeia a descrição de Caminha:
Eram pardos, todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. [...] (p. 93).Bastará dizer-vos que até aqui, como quer que eles um pouco se amansassem,logo duma mão para a outra se esquivavam, como pardais, do cevadoiro. Homem não lhes ousa falar de rijo para não se esquivarem mais; e tudo se passa como eles querem para os bem amansar [...]. E naquilo me parece ainda mais que são como aves ou alimárias monteses, às quais faz o ar melhor pena e melhor cabelo que às mansas, porque os corpos seus são tão limpos, tão gordos e formosos, que não pode mais ser. [...] (2003 p. 107).
Ainda mais, a busca do paraíso perdido outorga um falso poderio, que garante aos navegantes a conquista e apropriação da Terra nova. Caminha assegura que só a dominação das riquezas não lhes é suficiente. Necessário se faz também tornar-se dono, conquistar e cristianizar aquela gente.
E tomou dois daqueles homens da terra, mancebos e de bons corpos, que estavam numa almadia. Um deles trazia um arco e seis ou sete setas; e na praia andavam muitos com seus arcos e setas; mas de nada lhes serviram. [...] (p. 94-95). E hoje, que é sexta-feira, primeiro dia de Maio, pela manhã, saímos em terra, com nossa bandeira; e fomos desembarcar acima do rio contra o sul, onde nos pareceu que seria melhor chantar a Cruz, para melhor ser vista. [...] (p. 114) Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha da Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de Maio de 1500. [...] ( 2003 p. 119).
A terra achada, deveria justificar tamanho esforço. O texto de Caminha enuncia riquezas e possibilidades. É que a conversão das almas, em território imprestável, suscitaria falta de propósito que (aos olhos de hoje, bem entendido) desmascara todo o esforço evangelista. Assim, Caminha em seguida dá os contornos e características da terra achada:
" Esta terra, Senhor, me parece que da ponta que mais contra o sul vimos até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas por costa. Tem, ao longo do mar, nalgumas partes, grandes barreiras, delas vermelhas, delas brancas; e a terra por cima toda chã e muito cheia de grandes arvoredos. De ponta a ponta, é toda praia parma, muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande, porque, a estender olhos, não podíamos ver senão terra com arvoredos, que nos parecia muito longa. Nela, até agora, não pudemos saber que haja ouro, nem prata, nem coisa alguma de metal ou ferro; nem lho vimos. Porém a terra em si é de muito bons ares, assim frios e temperados como os de Entre Douro e Minho, porque neste tempo de agora os achávamos como os de lá. Águas são muitas; infindas. E em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem. Porém o melhor fruto, que nela se pode fazer, me parece que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar." (2003, p. 123)
A palavra de Pero Vaz de Caminha se comunica magicamente e transmite um sentimento de realismo. A terra é cheia de graça. É uma visão do paraíso. Assim, lendo-se o texto de Pero Vaz de Caminha sob viés normativo tem-se (como adiantado por Flávio Kothe) documento cartorial, que nos filia à tradição portuguesa, relegando-se as minorias étnicas que aqui viviam à hegemonia lusa, em passo substancial que relega ao Brasil a condição de terra de utopia, para a qual todos os sonhos foram sonhados, mas na qual, e na vida real, todos os pesadelos são vividos.
Segundo Kothe, "fundamental não era o 'descobrimento', mas a apropriação jurídica da terra"(KOTHE, cit., p. 201). E continua em passo que revela crítica literária que apreende o entorno jurídico de modo muito preciso:
"A Carta de Caminha participa da ficção legitimadora da presença portuguesa, e ela mesma é uma ficção, mas uma ficção jurídica: um ato de posse, em nome do rei de Portugal, como se, ao invés de maçados, índios e papagaios, o universo inteiro estivesse a contemplar a apropriação dentro de um cartório, conforme a partilha do planeta feita pelo papa como intérprete oficial do 'testamento de Adão e Eva'. A ficção impregna e domina essa realidade. O sentido de tal ficção é conferir um direito divino aos portugueses em relação ao Brasil, ficção que os brasileiros tendem a assumir como legitimação de sua identidade, a começar pela língua que usam. Não se trata, em primeiro lugar, de uma ficção literária, que justificaria a participação de tal texto no sistema de uma literatura nacional: trata-se, sobretudo, de uma ficção jurídica, com todo o aparato da cena montada por ocasião da Primeira Missa" (KOTHE, cit., p. 202).
CONCLUSÃO
Depois de toda essa analise, percebe-se que a carta de Caminha considerada fundadora da Literatura Brasileira, foi escrita sob a visão de um português, sustentando a ilusão de que a terra "descoberta" era o próprio paraíso perdido descoberto justamente pelos portugueses, definindo assim, uma nacionalidade que não corresponde, porém, a formação étnica e cultural do país tornado-se uma imposição de uma minoria sobre a maioria. O descobrimento do Brasil foi, sobretudo, uma ficção histórica, pois ia se descobrir o já descoberto? O fundamental não era o "descobrimento", mas a apropriação da terra. No entanto, no sistema escolar a Carta de Caminha que fala sobre esse acontecimento, é ensinado como documento único, configurando o encontro luso-índio como pacífico, agradável e proveitoso, ou seja, é ensinada uma ficção como se fosse a realidade, fazendo com que a historiografia passe a ser a historia que o sistema dominante quer que tenha sido, tornando o cânone Literário Brasileiro uma falha. Pois se o que está escrito na carta de Caminha foi verdade, teríamos outros textos que sustentassem à ela, no entanto a carta é ensinada como se fosse verdade única.
BLIBIOGRAFIA
CARTA DE PERO VAZ DE CAMINHA.
KOTHE, Flávio R. O Cânone Colonial: ensaio. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.