A Carne
Por Josenildo Santos Rodrigues | 20/03/2011 | ResumosCarne
A Carne é uma obra do autor brasileiro Júlio Ribeiro, é um dos mais vigorosos romancistas brasileiros. Polêmico, abolicionista, anticlerical e ardoroso representante do naturalismo, movimento fundado pelo francês Émile Zola. A Carne foi publicada em 1882, esse é seu romance mais conhecido, possivelmente a sua obra ? prima .O enredo narra a ardente paixão entre a jovem Lenita e o Engenheiro de meia ? idade, Manuel, filho do coronel Barbosa.
O livro provocou escândalo por abordar temas até então ignorados pela literatura da época, como amor ? livre divórcio e um novo papel da mulher na sociedade. A Carne é um livro sobre as paixões humanas, onde mostra claramente o ser animalesco que é o ser humano. O romance tem como principais personagens Lenita e Manuel. Lenita uma jovem muito bonita, inteligente e culta, a moça recebera uma formidável educação. Aprendeu gramática, aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, além de natação, equitação, ginástica e música, seu pai Lopes Matoso deu lhe uma ótima instrução.
Aos quatorze anos, era uma rapariga desenvolvida, forte, de caráter formado e sabedoria muito elevada. Enquanto que Barbosa já era um homem de mais de 40 anos, bem vividos, era um intelectual que já tinha percorrido toda a Europa, fora casado com uma mulher francesa, mas já tinha se separado algum tempo. Ele vivia a maior parte do tempo caçando animais no mato da fazenda.
Após a morte do pai, a bonita Lenita vai morar na fazenda de Barbosa, que fora no passado tutor do seu pai. Quando Lenita tinha 22 anos de idade, seu pau começa a queixar ? se de um mal ? estar indescritível, de uma pressão fortíssima no peito, sobreveio um acesso de tosse, e ele morreu de repente sem haver tempo de chamar um médico, sem coisa nenhuma, matara - o uma congestão pulmonar.
A nobre senhorita quase enlouqueceu de dor, dias e dias passou a infeliz sem sair do quarto, recusando ? se a receber visitas. Mas por fim, reagiu contra a dor: pálida, muito pálida nas suas roupas de luto, ela apareceu aos amigos do pai, recebeu os pêsames fastidiosos do estilo, procurou por todos os meios afazer ? se á vida solitária que se lhe abria , vida tristíssima, erma de afetos, povoada de lembranças dolorosas.
A moça resolveu escrever ao coronel Barbosa, avisando ? o de que se retirava temporariamente para a fazenda dele. Uma semana depois estava Lenita instalada na fazenda do velho tutor do seu pai. Tinha levado consigo o seu piano, alguns bronzes artísticos, e muitos livros. Pior do que na cidade, horrível foi a princípio o isolamento de Lenita na fazenda. Lenita comia quase sempre só na vastíssima varanda, depois de almoçar ou de jantar ia conversar com o coronel, e fazia esforços incríveis para conseguir fazer ? se ouvir da velha que, resignada e risonha, aumentava com a mão trêmula a concha de orelha para apanhar as palavras. Ao voltar para o quarto tomava um livro, deixava , tomava outro, deixava, era impossível a leitura. Apertava ? lhe, constringia ? lhe o ânimo a lembrança do pai. E tido lhe fazia lembrar uma passagem marcada a unha em um livro, uma folha dobrada em outra.
O coronel Barbosa dera a Lenita uma sala independente, um quarto amplo com duas janelas e uma alcova, pusera ? lhes ás ordens para seu serviço especial, uma mulatinha esperta, de alta trunfa e cor deslavada, e também um molecote acaboclado, risonho de dentes muito brancos. A senhorita Lenita, às vezes, passava horas e horas á janela, contemplando as dependências da fazenda. Com o passar do tempo começou a sair, passear pelas cercanias, ora a pé, acompanhada pela mulata, ora a pé, acompanhada pela mulata, ora a cavalo, seguida pelo rapazinho. Mas o exercício, a pureza do ar, a liberdade do viver da roça, nada lhe aproveitou.
Uma languidez crescente, um esgotamento de forças, uma prostração quase completa ia se apoderando de todo o seu ser: não lia, o piano conservava ? se mudo. Com a morte do pai, parecia ter ? lhe transformado a natureza: já não era forte, já não era viril como em outros tempos, tinha medo de ficar só, tinha terrores súbitos. Em uma linda manhã, a linda Lenita não pode levantar, acudiram apressados o coronel e a mulher do administrador, abeiraram ? se do leito, instando com a enferma para que tomasse um chá de erva ? cidreira, um remédio qualquer caseiro, enquanto não vinha o médico que se tinha mandado chamar a toda pressa. Quando este chegou estava Lenita abatidíssima: emaciada, lívida, com os olhos afundados em uma auréola cor de bistre, compria o peito, estertorava sufocada. Seu sistema nervoso estava irritadíssimo: O mais ligeiro ruído, o jogo de luz produzido pelo abrir da porta arrancava ? lhe gritos. O doutor Guimarães, médico já velho de fisionomia inteligente e bondosa, aproximou ? se da cama, examinou a enferma detidamente, em silêncio, sem tomar ? lhe o pulso, sem incomodá ? lá na mínima coisa, baixando ? se muito com as mãos cruzadas nas costas, para ouvir ? lhe a respiração, para escutar ? lhe os gemidos, para atentar ? lhes nas contratações da face.
- Sei o que isto é ? disse o médico ? tenho pela frente um conhecido velho, não me dá cuidado, volto já.
E saiu. Poucos minutos depois reapareceu, trazendo uma seringuinha de pravaz.
- Dê-me o braço, minha senhora, vou fazer ? lhe uma injeção, e verá como daqui a pouco nada mais há de sentir.Lenita apesar de seu estado de irritabilidade nervosa, nem pareceu sentir a agulha da injeção. O efeito foi instantâneo. Dentro de pouco tempo as faces descoraram, cessaram as crispações nervosas dos membros, cerraram ? se os olhos, e um suspiro de alívio entumesceu ? lhe o peito, Adormeceu.
- Deixemo ? La assim, - disse o médico, deixemo ? La dormir , quando acordar estará boa, todavia vou receitar: não dispenso para estes casos o meu brumoreto de potássio. E saíram nos bicos dos pés. Junto de Lenita ficou a mulher do administrador. Após um comprido sono, Lenita acordou calma, com os nervos sossegados, com os músculos distendidos, soltos. O apetite foi voltando aos poucos, e suas refeições foram sendo tomadas com prazer, há horas regulares. A moça se sentia ? se outra feminilizava ? se. Passou a ter uma vontade esquisita de dedicar ? se a quem quer que fosse, de sofrer por um doente, por um invalido. Por vezes lembrou ? lhe que, se casasse, teria filhos, criancinhas que dependessem de seus carinhos, de sua solicitude, de seu leite. E achava possível o casamento.
Lenita sentia ? se fraca e orgulhava ? se de sua fraqueza. Atormentava ? a um desejo de coisas desconhecidas, indefinido, vago, mas imperioso, mordente. Antolhava - se ? lhe que havia de ter gozo infinito se toda a força do gladiador se desencadeasse contra ela, pisando ? a machucando ? a, triturando ? a, fazendo ? a em pedaços.
Conhecera que ela, a mulher superior, apesar de sua poderosa mentalidade, com toda a sua ciência, não passava, na espécie, de uma simples fêmea, e que o que sentia era o desejo, era a necessidade orgânica do macho. Lenita rolava com delícias no eflúvio magnético do seu olhar, como na água deliciosa de um banho tépido. Tremores súbitos percorriam os membros da moça, seus pêlos todos hispidavam ? se em uma irritação mordente e lasciva, dolorosa e cheia de gozo. A tonicidade nervosa, o erotismo, o orgasmo, manifestava ? se em tudo, no palpitar dos lábios túmidos, nos bicos dos seios cupidamente retesados.
Lenita voltava à saúde a olhos vistos, levantava ? se cedo, tomava um copo de leite, dava um passeio pelo campo, almoçava com apetite, depois do almoço sentava ? se ao piano, tocava com brio peças marciais, alegres, movimentadas, de ritmo sacudido.
Um dia calmoso, depois do almoço, tomou uma espingardinha Galand de que habitualmente usava, atravessou o pasto, enfiou por um carreadouro sóbrio, através de um vasto trato de mata virgem. Depois de muito caminhar, Lenita retirou a blusa, e levou as mãos a nuca para prender as tranças do cabelo, enquanto fazia, remirava complacente no cabeção alvo, os seios erguidos, duros cetinados, betados aqui e ali de uma veiazinha azul.E aspirava com delícias por entre os perfumes da mata , o odor de si própria, o cheiro bom de mulher moça que se exalava do busto. Era uma formosa mulher, morena ? clara, alta, muito bem lançada, tinha braços e pernas roliças, musculosas, punhos e tornozelos finos, mãos e pés aristocraticamente perfeitos, terminados por unhas róseas, muito polidas. Seus cabelos pretos com reflexões azulados caíam em franjinhas curtas sobre a testa, indo frisar ? se lascidamente na nuca. O pescoço era proporcionado, forte, a cabeça pequena, os olhos negros vividos, o nariz direito, os lábios rubros, os dentes alvíssimos, na face esquerda tinha um sinalzinho de nascença, uma pintinha muito escura, muito redonda. Lenita contemplava ? se com amor ? próprio satisfeito, embevecida, louca de sua carne.
Depois de várias semanas, Lenita pergunta ao coronel Barbosa quando chegará seu filho que está em Paranapanema.
- O coronel respondeu ? eu sei Lá? Aquilo é um esquisitão, sempre foi. Mete ? se com os livros e fica meses sem sair do quarto. De repente vira ? lhe a mareta, e lá se vai ele para o sertão, põe ? se a caçar e adeus! Não se lembra mais de nada. Lenita pergunta.
- é casado, parece ? me ter ouvido dizer.
- desgraçadamente.
- Onde está a mulher?
- Na terra dela, em França.
- Com que, então, é francesa?
- É ele casou ? se por extravagância em Paris, no fim de um ano nem ele podia suportar a mulher, nem ela a ele. Separaram ? se.
Daí em diante pensou sempre Lenita, nesse homem excêntrico que, tendo vivido por largo espaço entre os esplendores do mundo antigo, a ouvir os corifeus da ciência, a estudar de perto as mais subidas manifestações do espírito humano, que tendo desposado por amor, de certo, uma das primeiras mulheres do mundo, uma parisiense, se deixara vencer de tédio a ponto de se vir encafuar em uma fazenda remota do oeste da província de São Paulo, e que, como isso lhe não bastasse, lá ia para o sertão desconhecido a caçar animais ferozes, a conviver com bugres bravos. A moça ansiava por que lhe chegasse à notícia de que ele vinha vindo, de que já tinha pedido os animais para transportar ? se da estação á fazenda.
De tanto pensar na chegada de Barbosa, Lenita estava preguiçosa. Internava ? se na mata, e quando achava uma barroca seca, uma sombra bem escura, reclinava ? se aconchegando o corpo na alfombra espessa de folhas mortas, entregava ? se a moleza erótica que estilava das núpcias pujantes da terra. Pensava constantemente, continuamente, sem o querer, no caçador excêntrico do Paranapanema, via ? o a todo o momento junto de si, robusto, atlético como o ideara, dialogava com ele.
Depois de vários dias de uma espera ansiosa, Barbosa estava para chegar. Lenita tratou ? se de se arrumar. Penteou ? se com desvanecimento, ergue os cabelos, prendeu ? os no alto da cabeça, deixando a nuca bem a descoberto. Espartilhou ? se, tomou um vestido de merino afogado, muito singelo, mas muito elegante.Pôs brincos, broche , braceletes de ônix, calçou sapatinhos Luís XV, cuja entrada muito baixa deixava ver a meia de seda preta com ferradinhas brancas em relevo.No peito , a esquerda , pregou duas rosas pálidas, meio fechadas, muito cheirosas.
Chegaram os viajantes. Ouviu ? se o tinir de freos sacudidos nervosamente pelas cavalgaduras, depois o chapinhar pesado de botas ensopadas, enlameadas, e o arrastar sonoro de esporas no pedrado do alpendre. O coronel correu ao encontro do filho, perguntando logo sobre sua saúde e suas caçadas. Barbosa responde.
- Caçadas esplêndidas, hei de lhe contar. Saúde de ferro, a não ser a maldita enxaqueca que me não larga, e que neste momento mesmo me está atormentando de modo horroroso. Vou lá dentro ver minha mãe, e sigo para o meu quarto. Antes de ir para o quarto, o coronel Barbosa apresentou Lenita ao seu filho Manuel.
- Vem cá, Lenita, vem ver o meu filho. Lenita veio da sala, adiantou ? se para o recém ? chegado, cumprimentou ? o com uma inclinação da cabeça. Ele tirou o seu chapéu alagado, retribuiu o cumprimento.
Manuel era um homem de boa altura, um tanto magro. A roupa molhada colava ? se ? lhe ao corpo, acentuando ? se as formas angulosas. Cabelos desmesuradamente grandes, empastados, escorrendo água, cobriam ? lhe a testa, escondiam ? lhe as orelhas. As barbas grisalhas, crescidas davam ? lhe um aspecto inculto, quase feroz. Com a enxaqueca estava pálido, muito pálido, baço, terroso. Piscava muito os olhos para furta ? se a ação da luz. Tinha as pálpebras batidas, trêmulas, e muitos pés de galinha encarquihavam ? lhe os cantos extremos dos olhos. Lenita, desapontadíssima, mirava - o com uma curiosidade dolorosa.
A moça recolheu ? se ao quarto, bateu as janelas, não quis jantar, não quis cear, respondeu quase com desabrimento ao coronel, que insistia com ela para que fosse á mesa comer uma asa de frango, uma talhadinha de presunto, algum doce ao menos.
No outro dia pela manhã, Barbosa bem trajado : chega ? se a Lenita polidamente, graciosamente.
- Minha senhora, triste juízo há de vossa excelência ter feito de mim ontem à noite. Quando estou com enxaqueca deixo de ser homem, torno ? me urso, torno ? me hipopótamo. Olhe, de ? me licença, eu sou um velho, podia ser seu pai. E com uma familiaridade prendeu a flor no cabelo da moça. Depois, afastando ? se dois passos, mirou ? a, entortando a cabeça, com ares de entender, e disse: - Que bom que vai esse vermelho vivo nos seus cabelos pretos. Está linda.
A partir desse dia passaram a conversar e passear muito pelos vastos campos da fazenda. Barbosa estabeleceu um confronto detalhado entre a flora do velho mundo e a do novo, entrou em apreciações técnicas, desceu a minudências de sua própria observação pessoal. A alternativa matemática das estações do ano na Europa contrapôs a magnificência monótona da primavera eterna brasileira.Lenita o acompanhava com muito interesse, revelando conhecimento aprofundado da matéria, fazendo ? lhe perguntas de entendedora.
Em seguida, quando aproximaram da casa. Avistaram o coronel que os chamavam para o almoço. Daí em diante, Lenita e Barbosa não se deixaram: liam juntos, estudavam juntos, passeavam juntos, tocavam piano a quatro mãos. Barbosa e Lenita, ocupados, embebidos em experiências trocavam palavras rápidas, quase ásperas, com dois velhos colegas. Davam ? se um ao outro ordens breves e imperiosas. De repente um deles batia o pé, contraía o rosto, piscava duro, sacudia o braço: era que tinha havido um descuido, punido logo por um choque. O coronel espiava da porta, os experimentos científicos dos dois, e dizia que a sua sala estava convertida em senzala de feitiçarias, afirmava que de repente havia de vir um raio e espatifar aquelas burundangas todas. Satisfeita a curiosidade cientifica de Lenita quanto ao estudo experimental da eletrologia, que ela dantes só aprendera teoricamente, passaram à química e a fisiologia. Ambos passam o dia inteiro a fazer experimentos científicos. Quando cai a noite, depois de despedir ? se de Barbosa, Lenita entra para seu quarto, e passa a pensar e refletir sobre o seu estado de espírito, achava ? se feliz, notava que tinha afetos brandos por tudo que a rodeava que via a natureza por um prisma novo. Sentia, com uma ponta de remorso, que lhe ia esquecendo o pai. E parecia ? lhe interminável o que restava da noite, o que ainda faltava para tornar a ver Barbosa. Deitava ? se, aconchegava ? se, procurava adormentar o cérebro, repelindo, baralhando as idéias que se apresentavam. Adormecia.
Cedo, muito cedo, ao amiudar dos galos, acordava: erguia ? se de pronto, alegríssima, escovava os dentes cuidadosamente, mirava ? os com desvanecimento ao espelho, chegando muito a luz a boca, arregaçando muito os beiços para ver as gengivas, refrescava a epiderme do busto com uma larga ablução de violetas, penteava ? os com esmero, substituía a camisola de dormir por uma camisa finíssima de cambraia crivada, apertava ? se vestia ? se com garridice, limava, espontava, alisava, coloria, brunia as unhas. E tudo isso pensando em Barbosa, antegostando a delícia do momento de vê ? lo, de ouvir ? lhe a voz em um ´´ bom dia ´´ afetuosíssimo, jubiloso, de apertar ? lhe a mão, de sentir ? lhe o contato quente.
Barbosa já não era moço, pouco dormia poucas horas de sono lhe bastava. Deitava ? se, procurava ler, mas debalde, a imagem de Lenita interpunha ? se entre ele e o impresso. Barbosa passou várias noites a pensar em Lenita, tentava entender que tipo de sentimento ele tinha por ela. Amor verdadeiro, com objetivo definido, carnal, também não era: ao pé de Lenita ainda não tivera desejo algum lascivo, ainda não sofrera o pungir do espinho da carne.
Tivera tempos atrás uma paixão que o levara a tolice suprema do casamento, mais isso passara, tinha ? se até divorciado da mulher com cujo gênio se não tinha podido harmonizar. Casto, era ? o até certo ponto: Só procurava relações genésicas, quando as exigências fisiológicas do seu organismo de macho se faziam sentir, imperiosas, ameaçando ? lhe a saúde. E não ligava a isso mais importância do que o exercícios de uma outra função qualquer, do que satisfação de uma simples necessidade orgânica.Então o que sentira por Lenita?
Amor ideal, romântico, platônico? Era de certo isso. Mas que ridículo Santo Deus? Que oceano de ridículo! Quebradeiras sentimentais na casa dos quarenta, quando a enduração do cérebro já não permite fantasias, quando a luta pela vida já tem morto as ilusões? O caso era que não podia estar longe da moça, que só junto dela vivia, pensava, estudava, era homem. Estava preso, estava aniquilado.
Quebrara em Santos uma casa comissária importantíssima. O coronel perdia na quebra cerca de trinta contos. Ficou decidido que Barbosa partiria no dia seguinte para Santos, a ver se conseguia salvar alguma coisa do naufrágio. Ao dizer adeus Barbosa a Lenita, a moça sentiu ? se fazer em torno dela um vácuo imenso, certa muito embora de que a ausência era só até a tarde. A idéia de outra ausência, da ausência futura, da ida para Santos, torturava ? a. Como lenitivo a sua mágoa, quis ela própria fazer a mala de Barbosa, pretextando que não ficaria bom o arranjo pelas mãos descuidosas de uma escrava. Entrou pela primeira vez no quarto de Barbosa, entrando, Lenita sentiu ? se tomada de embaraço inexplicável. Seu pudor revoltava ? se, parecia ? lhe que respirava indecência naquele aposento de homem.
Barbosa despediu ? se do pai e da mãe: não os queria ir acordar de madrugada, e contava partir antes de amanhecer. Entrou para o quarto, mas não pôde dormir. A viagem que tinha de fazer contrariava ? o imenso, não sábia como passar ausente de Lenita.
Às três horas da manhã, ergueu ? se sem ter conciliado o sono, chamou o Pajem, mandou ? o encilhar os animais, lavou ? se, vestiu ? se, calçou botas, calçou luvas, envergou o guarda ? pó pôs o chapéu , tomou as pressas uma xícara de café, que uma preta lhe trouxe, saiu, montou a cavalo e, acompanhado pelo pajem, seguiu jornada.
Lenita também não dormia. Tinha anseios, tinha desejos, mas anseios, desejos acentuados, visando a objetivo certo. Ela ansiava por Barbosa, ela desejava Barbosa. Enquanto Barbosa viajava para Santos, para resolver problemas para seu pai, Lenita fazia inúmeros passeios pelas redondezas da fazenda. A nobre senhorita contemplava o amplo cenário, abstrata, distraída, imersa em cisma, olhando sem ver. De repente algo lhe chamou atenção, fora um mugido fero, ao perto, chamou ? a realidade.
O touro tinha ? se aproximado de uma vaca muito gorda, cuja cria terneira alentada, pastava já longe, deslembrada quase da teta. Chegara- se farejando ansioso, cheirava o focinho da vaca, cheirava ? lhe o corpo todo: Erguera a cabeça aspirando ruidosamente o ar, mostrando, no arregaçar luxurioso da beiça, a gengiva superior desdentada, soltara um berro estrangulado. Fora o que Lenita ouvira.
O touro lambeu a vulva da vaca com a língua áspera, babosa, e depois, bufando, com os olhos sanguíneos esbugalhados, pujantes, temeroso, na fúria do erotismo, levantou as patas dianteiras, deixou - se cair sobre a vaca, cobriu ? a, pendendo a cabeça à esquerda, achatando o perigalho de encontro ao seu espinhaço.
A vaca abriu um pouco as pernas traseiras, corcovou ? se, engelhou a pele das ilhargas para receber a fecundação, Consumou ? se esta em uma estocada rubra, certeira, profunda, rápida. Era a primeira vez que Lenita via, realizado por animais de grande talhe, o ato fisiológico por meio do qual a natureza viva se reproduz.
Espírito culto, em vez de julgá ? lo imoral e sujo, como se faz a sociedade hipócrita em representá ? lo , ela achou ? o grandioso e nobre em sua adorável simplicidade.
Havia muitos dias que Barbosa partira, e apenas tinha escrito uma carta ao coronel, sobre negócios, na qual lhe dava esperanças de salvar trinta por cento do material comprometido. Somente depois de alguns dias, Lenita recebeu uma carta de Barbosa, relatando sobre a cidade de Santos.
Lenita leu a carta com bastante euforia e emoção:
Minha prezada companheira de estudos, aqui estou pela primeira vez em vida, no porto de mar de nossa província, em Santos, terra cálida, úmida, sufocante. Pelas ruas vai e vem, encontra ? se, esbarra ? se num enxame de gente de todas as classes e de todas as cores .......
Lenita leu a carta com detalhes, os dados exatos, as apreciações cientificas de Barbosa sobre Santos, sobre a serra, enfim sobre tudo.Lenita pensava: O fatos que Barbosa consignava eram exatos, as explicações que deles oferecia eram plausíveis. A senhorita admirava ? lhe cada vez mais a flexibilidade do talento, que a tudo se abalançava que para tudo tinha criterium, que de tudo decidia com justeza.
A admiração pelas faculdades intelectuais elevadíssimas de Barbosa envolvia ? se mansamente, naturalmente, para uma admiração pelas suas formas, para um desejo de seu físico que a dementava a ela, que a punha fora de si. Depois de alguns dias, Barbosa chega de volta de sua viagem a santos.
Enquanto Barbosa não chegara, a senhorita Lenita aproveitava para caçar com a mucama da fazenda. Durante uma dessas caça a mucama vez um comentário.
- Que caçadão D. Lenita, dezenove pássaros grandes e uma lebre. Não perdeu um tiro.
- Eu nunca perco tiro ? respondeu a moça com fatuidade.
- Então é como eu ? disse uma voz por trás de ambas ? também não perco tiro. Era Barbosa.
A espingarda caiu das mãos de Lenita: com o coração relaxado, incapaz de injetar sangue nas artérias, descorada, quase sem ver....
- Que é isso, minha senhora, que é isso, Lenita?
Acudiu Barbosa , segurando ? a solìcito.
- Tive um tal susto ... ? murmurou a moça a mal recobrada. ? Perdoe ? me, fui imprudente. O desejo que tinha de vê ? La, o prazer de causar ? lhe uma surpresa... E tomou - lhe as mãos frias de Lenita e apertou as suas. Lenita respondeu:
- Perdoar ? lhe? Se eu lhe agradeço tanto o ter- me antecipado um pouco o gosto de vê ? lo. Era imensa a alegria de Lenita, a gratidão mesmo em que se achava para com Barbosa por tê ? La vindo surpreender na mata, por não tê ? La esperado em casa.
Sentia ? se lisonjeada em seu orgulho de mulher.
Com a volta de Barbosa a fazenda, as caçadas retornaram ? se com maior intensidade e desnumbramento, em uma dessas caçadas, Lenita sofreu uma picadura de uma cobra cascavel. Barbosa empalideceu, ao vê ? La pálida, sentada no chão da ceva, por um momento ficou atordoado. Dominou ? se, porém, logo ajoelhou ? se, tomou o pé de Lenita entre as mãos, examinou detidamente.
- Não há de ser nada, disse, Nenhuma veia importante foi tocada. Tirou do bolso um charuto, trincou ? o nos dentes, mascou ? o, encheu a boca de tabaco dissolvido em saliva, tomou de novo o pé de Lenita, com respeito, com adoração quase, chegou ? lhe a boca, entrou a sugar ? lhe a ferida a sorvas vagarosas, contínuos, fortes. Cuspiu, renovou o tabaco, repetiu a operação.
Barbosa a leva para casa, quando chegaram Lenita despiu ? se, deitou ? se. Tinha firo, sentia sonolência. Barbosa foi ao seu quarto e de lá voltou com uma garrafa de rum: abriu ? a, encheu um cálice grande, fê ? lo beber a Lenita, inteirinho de uma vez. Em seguida, assentou ? se a beira da cama levantou discretamente uma parte das cobertas, tomou o pé ferido da moça, desfez o atilho da perna.
Durante a noite, Lenita chama Barbosa:
- A minha convicção é que morro e eu não quero morrer sem lhe contar um segredo. ? Digam Lenita, diga o que quiser, confie em mim, sou seu amigo. Amo ? o, Barbosa, amo ? o muito .........., Barbosa teve um deslumbramento.Dominou ? se , curvou ? se , beijou Lenita na testa, castamente, paternalmente. Barbosa velou ? lhe a cabeceira quase a noite toda: de meia em meia hora, desfazia - lhe o atilho da perna, depois de ter restabelecido a circulação por um pouco, tornava a apertá ? lo: a moça não dava acordo.
Inconscientemente, a dormir, murmurando palavras desconexas, ingeriu mais dois cálices de rum que lhe fez beber Barbosa, meio á força. Pela madrugada despertou, chamou a mucama. Barbosa retirou ? se discretamente, Lenita tornou logo a adormecer. No outro dia amanhecera Lenita bem melhor da picadura, graças aos procedimentos de Barbosa. Entraram no quatro, Lenita estava sentada na cama, com as pernas encruzadas a chinesa, por debaixo das cobertas. Alegre, radiante, tinha esse ar de triunfo que têm todos os doentes escapos de moléstia grave ? Lenita volveu para Barbosa um olhar doce, repassado de gratidão. Barbosa, por sua parte, tornara ? se reservado, a confissão de amor que Lenita lhe fizera acanhava ? o a ele.
Amava a Lenita doidamente, perdidamente, sabia que era dela amado, ouvira ? lho a ela própria. Que mais? Ou cortar de vez tudo, fazer as malas, embarcar ? se para a Europa, ou tornar ? se abertamente amante da rapariga. A flirtation sentimental, platônica, naquele caso, era uma imbecilidade, um cúmulo de ridículo. Barbosa pensava, pensava:
Que mal adviria ao mundo de que se enlaçassem, de que se possuíssem, de que se gozassem um homem e uma mulher que se amavam? Não se podia casar com Lenita? Que tinha isso? Que é casamento atual senão uma instituição sociológica, evolutiva como tudo o que diz respeito aos seres vivos, sofrivelmente imoral e muitíssimo ridícula?
O amor é filho da necessidade tirânica, fatal, que tem todo o organismo de se reproduzir, de pagar a dívida do antepassado segundo a fórmula bramática. A palavra amor é um eufemismo para abrandar um pouco a verdade ferina da palavra cio. Fisiologicamente, verdadeiramente, amor e cio vêm a ser uma coisa só. Depois de muito pensar, Barbosa decidiu que seria o amante de Lenita.
Lenita ansiava por encontrar Barbosa. Ela queria Barbosa, desejava Barbosa. Durante a madrugada, a moça ergueu ? se, descalça, em camisa inconsciente, louca, abriu a porta, atravessou a sala, abriu a outra porta, saiu na ante ? sala, enfiou pelo corredor, parou junto a porta do quarto de Barbosa, a escutar. E nada ouvia. Dentro, fora, dominava um silêncio profundo, quebrado apenas pelas pulsações violentas do seu próprio coração. Lenita perdeu a cabeça, entrou: em bicos de pés, sem fazer rumor, escorregando, deslizando, como um fantasma, abeirou ? se da cama de Barbosa. Barbosa deu um estremeção, acordou sobressaltado, sentou ? se, estendeu as mãos, encontrou ? a, asiu ? a, perguntou assustado: - quem é? Quem é?
A cútis morna, cetinosa da moça, a macieza da cambraia que a envolvia em parte, o perfume de peau d´ Espagne que de seu corpo alava, não lhe permitiam dúvidas, mas ele recusava a evidência dos sentidos, não podia crer. Achava absurda, monstruosa, impossível a presença de Lenita em seu quarto, àquela hora, naquela nudez. E, contudo, era real, ali estava: ele sentia ? lhe a carne quente, dura, palpava ? lhe a pele híspida pelo desejo, escutava ? lhe o estudar do sangue, e o pulsar do coração.
Um tropel de idéias desordenadas agitou ? se ? lhe, confundiu ? se ? lhe no cérebro excitado, o raciocínio ausentou ? se, venceu o desejo, triunfo a sugestão da carne. Lenita tomou ? se de um sentimento inexplicável de terror, quis fugir, fez um esforço violento para desenlaçar ? se, para soltar ? se. Era o medo do macho, esse terrível medo fisiológico que, nos pródomos do primeiro coito, assalta a toda mulher, a toda a fêmea. Cada vez mais fora de si, mais atrevido, ele desceu a garganta, chegou aos seios túmidos, duros, arfantes. Osculou ? os, beijou ? os, a princípio respeitoso, amedrontado, como quem comete um sacrilégio, depois insolente, lascivo, bestial como um sátiro. Crescendo em exaltação, chupou ? os, mordicou ? lhes os bicos arreitados. Barbosa pensava
- Eis que a fatalidade das coisas lhe atira no meio do caminho uma mulher virgem, moça, bela, inteligente, ilustrada, nobre, rica. E essa mulher apaixona ? se por ele, força ? o também a amá ? lá, cativa ? o, aniquila ? o. No início, Barbosa teve medo, mas depois foi um tempestuar infrene, temulento de carícias ferozes, em que os corpos se conchegavam se fundiram, se unificavam em que a carne entrava pela carne, em que frêmito respondia a frêmito, a beijo a beijo, dentada a dentada. Desse marulhar orgânico escapavam ? se pequenos gritos sufocados, ganidos de gozo, por entre os estos curtos das respirações cansadas, ofegantes. Depois um longo suspiro de um longo silêncio. Depois a renovação, a recrudescência da luta, ardente, fogosa, bestial, insaciável.
Após essa noite de muito amor entre Lenita e Barbosa, os dois passaram a se amar assiduamente. Havia momentos em que não se podia conter: com um grito rouco, áspero, sufocado, de bode em cio, atirava ? se, ela atirava ? se também, e ambos caíam sobre um sofá, sobre o assoalho, estreitando ? se, mordendo ? se, devorando ? se. A pretexto de caçar, Barbosa ia com Lenita todos os dias, afundava ? se na mata. Durante o passeio Lenita prestava ? se a tudo com docilidade de rainha complacente, de deusa satisfeita, deixava ? se adorar, recebia contente o culto de latria dirigido a sua carne.
Barbosa mirava ? a, remirava ? a, voltando ? lhe em torno, os círculos concêntricos que descrevia iam ? se estreitando com os de um açor em volta da preia: chegava ? se, ajoelhava ? se, e trêmulo, como a respiração açodada, beijava ? lhe as unhas róseas e a pele branca dos pés, erguia o busto, alteava ? se ousado, osculava ? lhe as coxas roliças, pousava a cabeça de encontro ao ventre liso, aspirando, sorvento, de olhos semicerrados, as emanações sãs, provocantes, da carne feminina irritada.
Nervosamente, brutalmente, foi despindo a Lenita: Não desabotoava, não desacolchetava, arrancava botões, arrebentava colchetes. Quando a vista nua, fê ? La reclinar ? se sobre o musgo, dobrou ? lhe a perna esquerda, apoiou ? lhe o pé em uma Saliência de pedra, dobrou ? lhe o braço esquerdo, cuja mão, em abandono, foi tocar o ombro leve, com as pontas dos dedos, estendeu ? lhe o braço e a perna direita em linha suave e frouxa, a contrastar com a linha forte, angulosa, movimentada, do lado oposto. Desceu um pouco, deitou ? se de bruços e, arrastando se como um estélio.... Lenita desmaiou em um espasmo de gozo.
Havia muito que tinha começado a nova moagem: ia ela já quase em meio, quando se deu um desastre.Um crioulinho deixou ? se prender nos cilindros do engenho e teve um braço esmagado.Ouviu ? se um grande estalo metálico, um tinir sonoro de ferros partidos, o engenho parou.Ficou assentado que , no outro dia, Barbosa havia de seguir para o Ipanema a entender ? se com o Dr. Mursa, sobre planos e dimensões para a nova máquina que urgia ficasse pronta dentro de poucos dias. Lenita, ao saber da viagem, teve um sobressalto, ficou pálida, quase desmaiou: Lembrava ? lhe o muito que ele não era ainda seu amante, quando ela nem sabia sequer ao certo que o amava. Nas senzalas, porém o viver excêntrico e liberdoso que ela levava com Barbosa já começava a servir de pábulo a maledicência...., os pretos e principalmente as pretas murmuravam, comentavam as caçadas improdutivas, sublinhavam ditos, aventavam torpitudes.
Com a viagem de Barbosa, Lenita fica a pensar sobre sua relação com ele. E entra em seu quarto e descobre alguns objetos dentro de uma gaveta, esses objetos a deixaram enciumada e decepcionada com Barbosa. Ela pensava.
- O homem não entrava em linha de conta, não passava de mero instrumento: fora Barbosa, poderia ter sido o administrador, poderia ter sido o velho coronel. Enquanto quisera, gozara, estava saciada........
Com pasmo grande, sem poder dar a razão por que via que Barbosa já lhe não inspirava admiração. As tiradas, as dissertações cientificam, aliás, corretas, que lhe fazia enfastiavam ? na: ela achava ? o desajeitado, vulgar, pretensioso, ganhava ? lhe aversão, cria até perceber ? lhe no corpo e na roupa um cheiro esquisito, enjoativo, como se fosse catinha de rato.
Lenita descobre que está grávida, e resolve deixar a fazenda, e vai embora para São Paulo, deixando para sempre Barbosa. Seis dias depois da partida de Lenita, chegou Barbosa. De nada sábia ele: o coronel não lhe tinha escrito. Quando chegou na sala de Lenita, sentiu um grande aperto no coração ao ver os consolos despidos, sem um bronze, sem um estatueta, sem uma jarra de sévres, sem um defumador de satzuma.
Foi a porta do quarto de dormir, empurrou ? a , estava fechada a chave, foi ao outro quarto, vazio.Empalideceu- se , encostou ?se á ombreira da porta para não cair.Refletia: Lenita ali não estava, não estava na sala, não estava no quarto, não estava no terreiro, não estava no pomar, não estava na fazenda.Ele não a veria mais, não lhe ouviria mais a voz suave, não lhe beijaria mais os lábios corados, não lhe beberia mais a frescura do hálito ..... só.......... só.......... estava só!
Barbosa, em total desespero se suicida com envenenamento. Ele morria por amor dessa mulher, morria porque ela lhe quebrantara o caráter, morria porque ela o prendera nos liames da carne, morria porque sem ela a vida se lhe tornara impossível.
Conclusão
Esse romance aborda de maneira muito clara, como é de fato as relações humanas, infelizmente nos criamos ilusões a respeito da nossa espécie, criamos um mundo de fantasias, um mundo de sonhos, um mundo irreal. O humano não difere sexualmente em nada dos animais, é idêntico, suas necessidades sexuais, são necessidade da espécie e não do individuo, como é pensado pelo humano.Quando um casal faz sexo, ele esta a serviço da natureza, é a natureza exigindo da espécie a sua contrapartida na procriação, não existe nada mais além disso, o amor que inventamos é uma desculpa para encobrir os verdadeiros objetivos do sexo.Seu único objetivo é a procriação, e mais nada, mais nada.