A CARNE NEGRA: A MAIS BARATA DO MERCADO AINDA...
Por Mabel Freitas | 18/05/2011 | EconomiaA carne
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que vai de graça pro presídio
E para debaixo do plástico
Que vai de graça pro subemprego
E pros hospitais psiquiátricos
A carne mais barata do mercado é a carne negra
Que fez e faz história pra caralho
Segurando esse país no braço, meu irmão.
[...]
E mesmo assim, ainda guardo o direito
De algum antepassado da cor
Brigar por justiça e por respeito
De algum antepassado da cor
Brigar bravamente por respeito
Carne negra
(Farofa carioca)
Desde a chegada nos tumbeiros no século XVI até a contemporaneidade, a mercadoria ? força de trabalho negra ? é vilipendiada no mercado de trabalho brasileiro. No período colonial, formando a classe de trabalhadores sem remuneração, amparo e proteção legal, os negros constituíram a brasilidade e a economia seiscentista e dirimiram os obstáculos discriminatórios, almejando a tão sonhada emancipação. Quando esse "sonho se torna realidade", a falta de uma significativa Política de Proteção Social e Trabalhista não lhes oportunizou o exercício pleno da cidadania.
Na transição do trabalho escravo para o assalariado, instaurou-se uma grave crise econômica que respinga até hoje no quadro das desigualdades: precariedade na saúde, educação, moradia além de desemprego, subemprego, má remuneração, intensas jornadas de trabalho... Os ex-cativos migraram no cenário hegemônico capitalista brasileiro, maquiado pela fábula das três raças e pelo mito da democracia racial, da imposição de uma rotina escrava e desumana para outra subjugada às necessidades da classe dominante: a "escravidão assalariada" (Marx apud Claus Offe, 1985), substituindo o tripalium pela pobreza. Carvalho (2004, p.52) reverbera:
Dezenas de anos após a abolição, os descendentes de escravos ainda viviam nas fazendas, uma vida pouco melhor do que a de seus antepassados escravos. Outros dirigiram-se às cidades, como o Rio de Janeiro, onde foram engrossar a grande parcela da população sem emprego fixo. Onde havia dinamismo econômico provocado pela extensão do café, como em São Paulo, os novos empregos, tanto na agricultura como na indústria, foram ocupados pelos milhares de imigrantes italianos que o governo atraía para o país. Lá os ex-escravos foram expulsos ou relegados aos trabalhos mais brutos e mais mal pagos.
Os elementos precários e os novos traços do mercado de trabalho brasileiro do século XX ? "a baixa proporção de vínculos protegidos, a predominância de postos de trabalho mal remunerados na estrutura ocupacional, a instabilidade dos vínculos, (...) o desemprego elevado e de longa duração e a intensificação da jornada de trabalho" (Borges, 2007, p.85) ? atingem veemente também a população negra liberta. Afinal, é ela quem ainda ocupa a pior colocação em todos indicadores de qualidade de vida. Infelizmente, até hoje, em pleno século XXI, o negro continua sendo "a carne mais barata do mercado", uma vez que as desigualdades socioeconômicas permanecem.
Segundo Carvalho (2004, p.52), "é a parcela menos educada da população, com os empregos menos qualificados, os menores salários, os piores índices de ascensão social". Como diz Santana (2010), "os negros ainda permanecem majoritariamente na condição de filhos bastardos de uma pátria-mãe pouco gentil, sem jamais usufruir do berço esplêndido reservado a um seleto grupo de eurodescendentes". No painel que debateu a situação dos negros (negros e pardos) no mercado de trabalho, em comparação com a enfrentada pelos não negros (brancos e amarelos), na 2ª Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CONAPIR), realizada em Brasília, em 2008, foram apresentados os seguintes dados do DIEESE (Costa, 2010):
? 60% dos trabalhadores negros têm rendimento de até dois salários mínimos;
? Os negros são a maioria nos setores de atividade econômica com maior jornada de trabalho (como emprego doméstico, 60,8%), com uso mais intensivo da força física de trabalho (construção civil, 59,5%) e historicamente menos protegidos pelo sistema previdenciário (setor agrícola, 60,4%);
? A maioria dos trabalhadores sem carteira assinada (55,3%) é negra;
? No conjunto dos trabalhadores com melhor remuneração e melhor condição de trabalho, a minoria é negra: dos empregados com carteira de trabalho assinada apenas 43,2% são negros, na administração pública são 41,3% e somente um quarto dos empregadores (empresários) é negro.
? 24,6% dos negros com mais de 15 anos não têm instrução alguma e 42,8% têm o ensino fundamental incompleto. No topo da pirâmide, com ensino superior completo há apenas 2,3% de negros, enquanto entre os não negros o percentual é de 8,8%.
Na esfera estadual, o panorama da DIIESE (SEI, 2010), no Boletim Especial da Pesquisa de Emprego e Desemprego da Região Metropolitana de Salvador ? A Desigualdade entre Negros e Não Negros no Mercado de Trabalho, é também entristecedor:
? Mesmo com o aumento de rendimento para os negros (13,9%) que para os não negros (12,3%), a redução da diferença entre esses valores não significou uma melhora consistente (0,6%) já que o rendimento dos negros em relação ao dos não negros era de 48,6% em 2004 e passou para 49,2% em 2008;
? Os negros responderam por 85,4% da PEA da Região Metropolitana de Salvador em 2008. A presença entre os ocupados foi de 84,5% e alçou a 89,2% entre os desempregados. Nesse ano, o contingente de negros economicamente ativos foi estimado em 1.567 mil pessoas, dos quais 332 mil encontram-se desempregados;
? As mulheres negras ? por uma questão não só de etnia, mas de gênero também ? detêm os resultados mais desfavoráveis: sua taxa de desemprego total era a mais elevada (25,2%, em 2008), enquanto a das não negras correspondia a 18,0%;
? Quanto aos níveis de qualificação e tipos de tarefas associados, a subserviência ainda permanece: houve elevação da participação de não negros em postos de direção, gerência e planejamento (27,2% - 28,4%), enquanto a de negros manteve-se estável (9,1%); aumentou a participação de negros em tarefas de execução (56,2% - 57,6%) e declinou a de não negros (43,1% - 42,6%);
? A escolaridade apresenta que as pessoas não alfabetizadas até as que possuem o ensino médio incompleto estavam classificados 43,4% dos ocupados negros e 18% dos não negros e as que consideram do ensino médio completo até o superior completo estavam 56,6% dos ocupados negros e 82% dos não negros.
? Quanto maior o nível de escolaridade, menor seria a distância entre os rendimentos dos negros e não negros; entretanto, um fato "curioso" foi verificado nesta análise: os negros com ensino médio completo e superior incompleto tiveram ganhos de 4,5% e os não negros tiveram acréscimo de 12,6%; para os negros com ensino superior houve redução de 9,7% e para os não negros acréscimo de 1,4%. Ou seja, até mesmo com qualificação, ora persiste a dificuldade de inserção produtiva ora a má remuneração pelos trabalhos prestados.
Logo, ainda há muito trabalho para a Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial ? SEPPIR. A promoção de ações continuadas com as três esferas governamentais (federal, estadual e municipal) já é bastante intensa, significativa e coesa, mas a tentativa de melhoria na qualidade de vida de uma população que herda os estigmas escravistas, indubitavelmente, não é uma tarefa fácil. Na área de trabalho, emprego e renda, esta luta pela equidade é ainda maior. Afinal, "o mercado de trabalho é uma relação de poder que tange, permeia e envolve todas as formas e esferas da vida social". (Claus Offe, 1985)
Enfim, urgem a promoção, o acompanhamento e a avaliação de ações afirmativas face à realidade desfavorável do mercado de trabalho para os negros no Brasil. Combater essa vergonhosa e precária situação social deve ser a luta ininterrupta das políticas de promoção da igualdade racial. Afinal, parafraseando a epígrafe do grupo Farofa Carioca, esta etnia que fez e faz história, que segura este país no braço, que brigou (e ainda briga!) sutil e bravamente por justiça e por respeito não é digna de continuar sendo a carne mais barata do mercado.
REFERÊNCIAS
BORGES, Ângela. Mercado de trabalho: mais de uma década de precarização. In: DRUCK, Graça. FRANCO, Tânia (org). A perda da razão social do trabalho: terceirização e precarização.São Pulo: Boitempo, 2007.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 5ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.
OFFE, Claus. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. São Paulo: Brasiliense, 1985.
SANTANA, Olívia. Disponível em http://www.faced.ufba.br/artigos/artigo_olivia1.htm. Acesso em: 06.12.10
SEI (Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia). Disponível em http://wi.sei.ba.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=523:ped-divulga-estudo-sobre-os-negros-no-mercado-de-trabalho&catid=1:latest-news&Itemid=243. Acesso em: 11.12.10