A caridade, os paulistas e os nordestinos
Por Jackson Filgueiras | 08/01/2010 | CrônicasDomingo, eu estava em casa, sem o que fazer. Liguei a TV.
Mas assistir a que programa?
Dúvida cruel. Nada me interessa tanto na TV que me impeça de fazer outra coisa (claro que em outra época não era bem assim). Mas ficar ocioso, letárgico, “coçando”, estava me dando nos nervos.
Então sintonizei na Record – porque é o canal que sintoniza melhor na minha casa (depois da Globo - sem comentários, né?).
Assisti a algum noticiário, um pouco desse produzido/ancorado pelo Paulo Henrique Amorim.
Começou a chegar gente e, como sou muito dispersivo, me afastei da TV. Algumas horas depois, me atraiu (pelo ridículo – do meu ponto de vista, e pela comoção causada em meus parentes) o programa do Gugu Liberato – no quadro De Volta para Minha Terra.
Puxa vida, doeu de novo. Sempre dói. Sempre vai doer.
É sempre a mesma coisa – a equipe encontra, na cidade de São Paulo, uma família nordestina em situação de miséria (pelo que eu leio nos blogs de política, não deve ser uma tarefa difícil), produz um vídeo contando a história dessa família, narrando os seus dramas, expondo toda sua situação miserável, reduzindo as pessoas a coisas (ou bichos), e depois entram os parceiros (publicidade, é o que é), se comprometendo a levar de volta essa família para sua terra.
Ah! Mas eu simplifiquei o processo! E o fiz porque não tenho saco para isso, é claro.
É indagado às pessoas o que vieram (foram) fazer naquela cidade, quais os seus sonhos, o que conseguiram, por que não conseguiram, o que aconteceu para dar errado. E as imagens. Afinal, elas são necessárias. O ambiente insalubre (sim, pois se não estiverem num ambiente insalubre, não farão jus à “ajuda humanitária”). E as pessoas – em frangalhos, pois “uma imagem conta mais do que mil palavras”, ou coisa assim. E o suspense – é, as pessoas não sabem se receberão a ajuda (pois essa ajuda depende somente da boa vontade do filantropo e do empenho daquela equipe que os achou e pretende salvá-los. Mas filantropia é isso mesmo, não é? não se pode constranger alguém a ser um filantropo; estender a mão depende de cada um, de estar predisposto); então, têm de pedir, de fazer cara de súplica, renunciar ao que restou de dignidade (se restou alguma).
E depois vem a caridade. E tome caridade. E mais caridade, até saturar.
É preciso deixar registrado que a alma caridosa vai transformar a vida dessas pessoas, e elas nunca mais experimentarão o desespero, a carência, o desconforto, a penúria.
A alma caridosa leva a família de volta para sua terra, no Nordeste – e a equipe da TV acompanha a volta dos filhos pródigos; e registra a surpresa, a ansiedade, a expectativa da família.
Mas é só?
Não, caro expectador. Tem mais. É preciso que outra equipe vá até ao destino, espicaçar os entes queridos (é, pois é; são queridos, ao menos na telinha; a telinha precisa que essas pessoas apareçam bem na foto) dos que fugiram do flagelo da seca (da desigualdade, da má distribuição de renda, dos privilégios, do mandonismo, do coronelismo oportunista, enfim). “Vocês têm um parente assim, assado, com nome tal? Onde está ele? Foi embora daqui? Para onde? Qual a última vez que voltou aqui? Qual a última vez que você falou com ele?” E, por fim, o desfecho – chegou o filho pródigo, que saiu em busca de melhora de vida, e “deu com os burros n’água”, piorando gravemente sua situação, não tendo condição de voltar para o que tivera antes (aliás, ninguém volta para o que fora ou tivera - apenas para lembrar a máxima atribuída aos estóicos: ninguém se banha duas vezes no mesmo rio, pois nem o rio é o mesmo, nem tampouco o sujeito).
E aqui, também é lícito invadir, devassar, espicaçar, especular, se intrometer, bisbilhotar (se não bisbilhotar não tem "veia artística"), registrar o encontro, o entusiasmo, a emoção, a explosão dos sentimentos, o alívio, a dor (sim, a dor. Da frustração, da saudade, da impotência. Não sei de que mais, mas há dor).
Terminou?
Não! Claro que não!
A caridade continua. Agora, entra em cena outro filantropo, que generosamente dá ao chefe da família retornada um kit de sobrevivência – consistente de material para explorar uma prestação de serviço, mais um treinamento básico.
E depois, os votos de sucesso, etc, etc.
Por que isso me agride, mesmo? Afinal de contas, não foram mais uns cinco nordestinos, pelo menos, roubados ao negrume da miséria?
Ah, cidadão, isso me agride por várias razões. Contudo, vou citar somente duas:
A primeira – pela espetaculização dos dramas pessoais.
Não fosse por as cenas de miséria renderem um bom material televisivo (e potencial de ganho publicitário), nenhum canal de TV iria investir em resgatar alguém da miséria.
Então para mim é isso – os meus conterrâneos são meras coisas (e bichos, como já falei – e como deixou bem registrado Graciliano Ramos em sua obra).
Afinal de contas, só dá ibope notícia ruim, tragédia, desgraça. Nesse contexto, mesmo fazendo caridade (ô palavra triste, pesada), há que espetaculizar o ato.
Mesmo porque esse é o negócio da empresa (claro que poderíamos falar de ética, de princípios; mas não sejamos piegas).
A segunda, pela imensa carga ideológica embutida no processo.
Nordestino tem de ficar no seu lugar – o Nordeste. São Paulo é terra de paulistas, gente valorosa.
Então, os nordestinos que ainda pensam que tem lugar em São Paulo pra pau-de-arara, baiano, cabeça-chata, que tirem o cavalo da chuva.
Está na miséria? Então volte pro seu lugar, verme! Aqui não tem lugar pra vadio não.
Não tem como voltar? Então que morra, desinfete.
Não é isso? Eu estou exagerando?
Nese caso, aqui vão duas perguntas:
- Tem ajuda para os nordestinos que não decidirem voltar para o Nordeste?
Ah, tem? Então por que isso não é divulgado nesse programa televisivo? Por que o nome é “de volta pra minha terra”? Por que não tem um programa com um nome tal "uma gota de esperança"?
- Só há miseráveis em São Paulo se forem nordestinos ou seus descendentes?
Não há miséria entre os paulistas do interior? Entre os mineiros, gaúchos, paranaenses?
Ou esses grupos não migram para a Paulicéia, como os nordestinos?
Se há migrantes oriundos dessas regiões, então o “de volta pra minha terra” também os retorna pra suas origens?
Eu nunca vi. (Claro, né? Eu quase não assisto mais a TV (ufa!))
Minha conclusão: os nordestinos (pobres) não são bem-vindos em São Paulo.
Mas São Paulo se orgulha de ser uma cidade construída (erguida) por imigrantes. E os migrantes (alguns) não têm vez no seu microcosmo.
Enfim, é isso: imigrante, sim; migrante não.
Isso pode ser um problema, pois uma das correntes migratórias mais intensas atualmente é a dos bolivianos. Mas fiquemos com os nordestinos.
Cidades vitalizadas por afluência migratória cuidam de integrar esses grupos de (i)migrantes. Isso aconteceu em São Paulo, com os italianos, japoneses, portugueses, espanhóis, alemães.
Todavia, se reluta em integrar os nordestinos (e os bolivianos – mas isso é outra história, teimoso!).
Por quê?
Não vale a pena integrar os nordestinos?
Seria porque eles falam cantado, arrastado?
Seria porque eles não falam chiando? E falam “x” onde os sulistas falam “s”?
Ou é problema de cor? De aparência?
No Brás se diz que as marcas deixadas pelos italianos são indeléveis. No Liberdade, idem para os japoneses. Mas os nordestinos também deixaram as suas, mesmo que mais intensamente na periferia. Os nordestinos também contribuíram para fazer São Paulo ser o que é hoje (e o que já foi alguns poucos anos atrás).
Por que esse preconceito? Esse racismo?
Sim, racismo.
A segregação de uma pessoa, ou um grupo de pessoas, a partir de critérios relacionados a noções de raça, origem, posição social, é considerada racismo.
Ah, racismo é muito pesado? Todo bem, fiquemos com xenofobia.
Xenofobia também não é adequado?
Não é adequado é ser xenófobo, meu caro.
E digo mais:
- O conceito de pureza racial, com muito prejuízo para as possibilidades futuras, se aceita na agricultura e na pecuária (veja o caso dos produtores de bananas e de cacau, acossado por pragas que vem dizimando os clones mais frágeis);
- Nas relações humanas é uma insanidade.
Exemplos há muitos, desde priscas eras:
Sabemos dos vikings (e outros povos gerreiros), que ao pilhar e saquear os bens dos povos subjugados (invadidos), “contribuíam” para melhorar a genética daqueles;
Sabemos, também, da política de apartheid, adotada pela racista África do Sul, onde cidadãos conviviam em até quatro mundos paralelos, a depender de suas origens (e aparência/compleição física): o dos “brancos” europeus, o dos negros, o dos indianos, e o dos “mestiços” (ou colored people);
Sabemos que o movimento de enfrentamento liderado por Martin Luther King levou à falência uma empresa de transporte coletivo em Atlanta, que atendia os cidadãos de forma diferenciada, conforme fossem negros ou “brancos” – apesar de esses pagarem o mesmo preço;
Sabemos que o ideal ariano de Hitler deixou em feridas profundas e ainda abertas – e deu aos israelenses um pretexto para adotarem, eles também, uma política racista, e posarem de vítimas (que realmente o foram).
Então, brasileiros, será mesmo que vale a pena defender que paulistas, gaúchos, paranaenses, catarinenses, são melhores do que nordestinos, amazonenses, maranhenses, índios, negros, caboclos, etc?
Integrar não seria mais proveitoso (em todos os sentidos)?
Postado originalmente em http://artigosecronicas.blogsome.com, 04.01.2010