A canção no feminino

Por Natanael Vieira de Souza | 15/05/2012 | História

RESUMO

 

 

 

 

A CANÇÃO NO FEMININO: Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel

 

Texto de: Ana Carolina Arruda de Toledo Murgel

Resumo de: Natanael Vieira de Souza

 

“A música popular já nasceu sob suspeita no Brasil, e se para os homens do início do século XX canção popular era sinônimo de vadiagem, o ingresso das mulheres nesse campo foi muito difícil e acompanhado de profundas suspeitas sobre a “integridade moral” das que se aventuraram”.

Esta epígrafe foi retirada do início do texto “A canção no feminino” de Ana Carolina de Toledo Murgel, que de imediato mostra-nos como a sua prática pelos homens – músicos ou musicistas - já era vista pela elite com preconceito, era sinônimo de vadiagem, as mulheres ao adentrarem a este universo musical masculino, sofrerá todos os preconceitos já existentes e muitos outros que com o tempo virão a permear os discursos de outros artistas e ainda, articulistas e intelectuais; como se não bastassem os diversos preconceitos, as mulheres ainda passarão pela tentativa dos meios midiático, de provocar o esquecimento coletivo, que visava e/ou visa, o apagamento da memória nacional de cantoras e compositoras que deixaram suas marcas, mas, no entanto, nos dizeres de muitos, não são reconhecidas.

Jairo Severiano e Zuza Homem de Melo dirão que:

 

 [...] se os cantores eram escassos, inexistente era o naipe das cantoras. A rigor, não há no Brasil uma só cantora popular de sucesso antes da década de 1920. Deve-ser o fato, simplesmente, à não existência desse tipo de atividade profissional em nossa sociedade machista de então. O que havia eram atrizes do teatro musicado que às vezes gravavam. As exceções seriam talvez as duas moças que, no suplemento inicial de discos da Casa Edison, aparecem cerimoniosamente tratadas como Srta. Odete e Srta. Consuelo. Sobre essas moças, as primeiras brasileiras a gravarem, tem-se apenas uma informação biográfica: eram senhoritas. Sobre as cantoras do radio da década de 1920. (SEVERIANO; MELLO, 1997:18)

 

Vemos que a produção bibliográfica sobre a história da música é fortemente marcada pelo apagamento da experiência feminina. Na citação a seguir veremos que no campo da música era onde a mulher mais encontrava dificuldade de inserção:

[…] Haveria sempre aquela afirmativa – você não pode fazer isto, você é incapaz de fazer aquilo – contra a qual protestar e ser superada. Provavelmente, para uma romancista, esse germe já não surte grande efeito, pois tem havido mulheres romancistas de mérito, mas, para as pintoras, isso deve trazer ainda algum tormento; e para as musicistas, imagino, é ainda hoje ativo e venenoso ao extremo. (...) abrindo um livro sobre música, temos as mesmas palavras novamente usadas neste ano da graça de 1928, sobre mulheres que tentam escrever música. “Sobre a srta. Germaine Tailleferre, pode-se apenas repetir a máxima do Dr. Johnson sobre as mulheres pregadoras, transposta em termos de música: „Senhor, a composição de uma mulher é como o andar de um cachorro sobre as patas traseiras. Não é bem-feita, mas já surpreende constatar-se que de qualquer modo foi feita‟.” Com que exatidão a história se repete... (WOOLF, 1990: 67-68)

 

Pedro Alexandre Sanches, da Folha de São Paulo ao ecrever no “Caderno Mais” sobre a produção musical de Chiquinha Gonzaga, no início de 1860, até os anos de 1950, com as composições de Dolores Duram e Maysa “Matarazzo”, diz o seguinte:

 

[…] Com escassas exceções - Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran, Maysa -, a composição no Brasil foi um ofício levado a cabo pelos homens até que a guerrilheira Rita Lee viesse cravar novos rumos.  Foi ela quem abriu alas para que passassem Baby Consuelo -a mais completa simbiose de rock e samba que este país produziu- nos 70, Angela RoRo, Marina Lima e Paula Toller nos 80, Fernanda Abreu e Zélia Duncan nos 90. E o mercado não faz restrições contra a aventura feminina de compor. "Registros à Meia-Voz", de Marina, chega às 70 mil cópias em menos de um mês; "Intimidade", de Zélia, a 90 mil, em igual período. (SANCHES, 1996)

 

Carô Murgel procura mostrar as várias maneiras articuladas pela mídia de provocar o esquecimento da presença feminina da música brasileira, mas não é somente este o objetivo, pois mesmo quando é notada a presença feminina, tais discursos não dão a devida importância para as cantoras e compositoras. A autora, trabalhando com a Folha de São Paulo, mostra-nos alguns destes discursos; num texto chamado "Mulheres ficam marginalizadas" de Pedro Alexandre Sanches, publicado no referido jornal, diz o seguinte:

 

[…] Não sobrou muito para a ala feminina de compositores na enquete das músicas mais apreciadas da MPB. Rita Lee comparece isolada na 11ª posição (empatada com o bamba do samba Cartola) entre os autores mais lembrados.

Bem atrás (no tempo e na lista), Chiquinha Gonzaga e Dolores Duran empatam, com apenas quatro votos cada. Maysa, precursora da presença feminina na MPB moderna com Dolores, foi esquecida.

Seria machismo ou sinal de que as mulheres são mesmo menos ativas como autoras de canção popular? (SANCHES, 2001)

 

Indagadas pelos autores da reportagem sobre esta questão, Rita Lee responde:

 

[…] As mulheres são quantitativamente menos presentes em muitas áreas. Começamos a botar nossas asinhas de fora recentemente, enquanto o patriarcado existe há séculos [...] Chiquinha Gonzaga era do tempo em que os varões diziam: ‘Música é coisa para homem’. Dolores Duran era do tempo em que os caras falavam: ‘Mulher compositora é puta’. Eu sou do tempo em que o clube do Bolinha dizia: “Para fazer rock tem que ter culhão’. Cássia Eller é do tempo em que dizem: ‘Precisa ser mulher-macho para fazer música igual a homem’. Minha neta será do tempo em que vão dizer: “’Só mesmo uma mulher para fazer música tão boa’.

 

E Paula Toller arremata:

 

[…] Não sou pequenininha, não tenho mãe chamada Paula nem uso esse apelido, mas sempre me chamam de Paulinha. É Paulinha Toller e Fernandinha Abreu. Pergunte se existe Robertinho Frejat. Dá preguiça, mas se falo dizem que é mau humor [...] Deve ser preguiça, as pessoas esquecem mesmo. Há muito homem na música, ficar com mulherzinha deve ser mais difícil. É lógico que há machismo, é questão de maioria, de quorum. (TOLLER apud SANCHES, 2001)

 

Na pesquisa da autora, vários outros comentários não menos tendenciosos estarão citados para exemplificar, tanto o apagamento da memória feminina na música brasileira quanto a tentativa de desqualificar ou diminuir o papel desempenhado pelas cantoras e compositoras. Carô Murgel trará para si a tarefa de dar visibilidade a estas mulheres que foram silenciadas, principalmente no hiato temporal que compreende da década de 60 do século XIX, percorrendo a década de 50 do século XX.

Neste aspecto a autora mostra que muitas cantoras e compositoras de grande importância para a música popular brasileira, durante o recorte temporal acima citado, faziam suas canções e cantavam-nas, dentre elas são citadas: Carmem Miranda (1950), entre várias canções uma, intitulada “Os hôme implica comigo” em parceria com o mestre Pixinguinha; a compositora pernambucana Almira Castilho, autora de vários sucessos a partir dos anos de 1950 que foram gravados por seu marido, Jackson do Pandeiro. Almira compôs a letra de “Chiclete com banana”, musicada por Gordurinha e gravada pela primeira vez em 1958. Essa canção foi considera por Gilberto Gil como precursora do Tropicalismo, tendo sido gravada também por ele; Marília Batista, parceira de Noel Rosa nos anos de 1930 e autora de sambas de breque gravados por Moreira da Silva e Aracy de Almeida; Dilú Mello, autora do clássico “Fiz a cama na varanda” e Lina Pesce, autora de grandes sucessos nos anos de 1950; vale lembrar que, em 1958, ano da primeira gravação de uma música de Dolores Duran, a cantora e pesquisadora Inezita Barroso gravou um LP apresentando as compositoras Babi de Oliveira, Juracy Silveira, Zica Bérgami, Leyde Olivé e Edvina de Andrade, mostrando que o problema de se imaginar que só Dolores e Maysa surgiram com trabalhos autorais, depois de Chiquinha Gonzaga, era possivelmente pela centralização da indústria fonográfica e da difusão alcançada pelos artistas que atuavam no Rio de Janeiro.

Vale ressaltar que devem ser analisados também, em que contexto cada canção foi composta ou cantada, pois depois da contracultura novos atores e novos comportamentos vão permear os discursos musicais. Depois de 1960 as compositoras se multiplicaram e foram aos poucos tomando seu espaço: Joyce, Sueli Costa, Fátima Guedes, Luli & Lucina, Marina Lima, Ângela RoRo, Marisa Monte, Joanna, Ana Terra, Rosinha de Valença, Paula Toller, Bebel Gilberto, Anastácia, Thereza Tinoco, Alzira Espíndola, Tetê Espíndola, Alice Ruiz, Ná Ozzetti, Marlui Miranda, Simone Guimarães, Zélia Duncan, Ana Carolina, Klébi Nori, Adriana Calcanhotto, Cássia Eller, Dona Ivone Lara, Rosa Passos e Leci Brandão são alguns nomes que podemos citar (entre muitos outros) de mulheres com um relativo reconhecimento como compositoras, apesar de boa parte delas só se tornar conhecida apenas como intérprete, da mesma forma que Marília Batista nos anos de 1930.

Pensando com Deleuze, essas artistas buscam o devir mulher, diferente da construção do feminino feita no masculino. É um trabalho árduo e ainda em andamento.

Natanael Vieira de Souza: Acadêmico do 7º semestre do Curso de História/UNEMAT/CÁCERES-MT

natodesouza@hotmail.com.br